terça-feira, 27 de abril de 2010

Passeio pelos Impérios VI - ESSAOUIRA, CIDADE AZUL

Foi em ambiente festivo que Essaouira nos recebeu. Corria-se a cerimónia de encerramento do Rally dess Gazelles, uma prova de todo-o-terreno a celebrar 20 anos de existência, e que conta exclusivamente com a participação de mulheres. As motos ficaram, por coincidência, no mesmo parque que albergava dezenas de jipes das concorrentes, sob a poeira que o chão de terra não segurava. Mas Essaouira não é apenas lugar de actividades desportivas e de lazer, como tão bem é conhecida pela prática de kite e windsurf. A actividade cultural estende-se às artes, onde a música tem lugar cativo. Sabê-lo-íamos mais tarde, a par do passeio que demos pela medina, onde deparámos frequentemente com lojas de pintura e escultura.

Escusado será dizer que o acesso ao interior da medida, onde se situava o nosso riad (espécie de hotel de charme e turismo de habitação), estava mais prejudicado, pelo que tivemos de alancar com a bagagem ao longo de meia dúzia de ruas curtas mas animadas. E voltar para completar a transferência. Alguns recorreram à oferta de transporte de carga em carros de mão. Ainda tentámos arrumar as motos numa garagem, mas já não havia pachorra para as recuperar da teia de veículos que, entretanto, se formara à sua volta.

Ficámos alojados num riad, uma espécie de hotel de charme, em que o exterior não prometia nada, mas o interior revelava tudo. Apesar de, inicialmente, não nos terem sido atribuídos os quartos correctos, depois transferiram a bagagem para outros. Nós ficámos num triplex pintado de um verde seco quase terapêutico. Essaouira foi uma surpresa agradável. Uma medina simpática, aberta e coquete, com lojas e galerias de arte, vestuário e artesanato, aliando arquitecturas tradicionais a outras mais recentes. Notável, a profusão de estrelas de seis pontas (e de outros símbolos cristãos, como rosáceas ou pombas estilizadas) nas ombreiras das portas, a denunciar a existência de um mellah, bairro judeu, a provar que a coexistência pacífica entre alegados rivais é possível.

A parte marítima está defendida por muralhas de estilo manuelino, construídas pelos portugueses no início do século XVI. Com efeito, a presença portuguesa alarga-se às peças de artilharia e ao pequeno forte existente na ilha de Mogador, em plena entrada da baía.
Um dos detalhes das muralhas da fortaleza portuguesa é a abertura circular na ameia, de onde se entrevêem as da cidade. Perpendicularmente, vislumbra-se outro adarve, também ele pleno de antigos canhões de proveniência espanhola e inglesa. Não vi referências, indicações ou informações respeitantes à história da fortaleza. Aqui não há guias, apenas guardas de viaturas.
Um dos produtos pelos quais Essaouira é conhecida, os trabalhos em madeira executados pelos artesãos marceneiros de Thuya - uma espécie de madeira de cedro - está patente em muitas das bancas da medina. Eram sobretudo as caixas e os tabuleiros, trabalhados quer em madrepérola, madeira de ébano, ou fios de metal prateado, que sobressaiam. Muito requeintado. Mas a criatividade não ficava por aqui.
A Medina estende-se até ao porto de pesca no qual visitámos a pequena lota. Curioso, o facto da maioria dos barcos não ter nomes escritos em árabe. Singular, o caso de todos os barcos terem como cor dominante o azul. Corajosos, mas pouco saudáveis, os mergulhos de miúdos mais audazes para uma infecta espécie de lagoa próxima da doca. Um dos grupos almoçou em pleno souk (mercado). Escolhemos sobretudo douradas e sardinhas na banca do peixeiro e pedimos para os cozinharem num restaurante improvisado no mesmo espaço. Salada, pão, azeitonas, refrigerantes, alguns talheres, uma espécie de guardanapos e… podia ter sido pior, já que o peixe era saboroso… depois de lhe juntar sal. Eu fui o único que confessou ter trincado uma bactéria ruim que me obrigou a recorrer às instalações sanitárias do riad. Mas não foram necessários antieméticos e a hidratação ficou por conta do bar, mais tarde. O dia estava óptimo. O sol dava mais fúria às cores, permitia aliviar o vestuário e motivava às poções frescas. Também por isso, trepámos até um bar situado no topo de um outro riad e pedimos os habituais chás e algumas bebidas espirituosas. De lá, entrevia-se uma mancha ocre formada pelas açoteias da medina, encimada por um céu ainda não totalmente azul mas de tonalidade anileira esmaecida. Uma perspectiva diferente da cidade.
Antes, o périplo levar-nos-ia pelo mercado de 2ª mão – colchões, móveis, tapetes, bicicletas, num bric-a-brac de espólios mais velhos do que antigos - que dominava uma praça na parte mais setentrional da medina. Saímos rápido, evadindo-nos de uma loja de jóias em que os tesouros de Ali-Baba já começam a surgir em catadupa. A tempo.

Os aperitivos que tomámos ante jantar estavam marcados para um restaurante-bar na orla de um dos baluartes das muralhas portuguesas. Enchemos a varanda que se debruçava sobre as ameias e, entre cervejas e chá, combinou-se o local de jantar, por sinal, escolhido ali próximo, numa cooperativa de artesãos.

Foi ao som de música gnawa, de inspiração sufi, segundo nos confidenciaram que, quatro mulheres inicialmente, depois outras, nos brindaram com o seu reportório. Uma, duas, três canções – com ritmos de grande influência da África negra – e começamos a ponderar se conseguiríamos terminar a “pastilla” – um folhado de carne de pombo - prato muito saboroso da gastronomia tradicional marroquina. Sobrevivemos. Outra faceta não habitual na cultura marroquina foi a constatação do número de galerias de arte que expunham sobretudo pintura, muita baseada no ambiente e estética da cidade, e em outros temas histórico e ambientais marroquinos. É notória a influência francesa nas actividades de Essaouira, para além da aventura (Rali), da arte (galerias), dos alojamentos (riads) e dos preços, que todos notámos inflacionados face há 3 anos. Embora possa passar despercebido, ainda há algumas referências à cultura americana dos anos 50/60, sobretudo através de alusões a Jimmy Hendrix, ou imagens e toponímias de Orson Wells. Actualmente, a urbe acolhe também muitos amantes do windsurf. Mas é o azul do mar, dos barcos, das madeiras das janelas e das ombreiras das portas que maravilham. Não é difícil apaixonarmo-nos por tal ambiente.

Para mim, Essaouira é um exemplo cru e provocante de um encontro de culturas bem sucedido – detectável, pelo menos, nas actividades culturais, nas actividades económicas, na arquitectura, na demografia – que junta produtos e criações próprias com as interior e da área costeira, a herança francesa e a influência da África negra.

Música: Al Di Meola - Indigo

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