sábado, 13 de junho de 2020

CHAMBERI, estação fantasma


O Metro de Madrid é um dos mais antigos, extensos e com mais estações do mundo. Em Outubro de 1919, já contava com cerca de 3,5 quilómetros e 8 estações. O Metro de Lisboa foi inaugurado em Dezembro de 1959, 40 anos depois, com 4 estações.
Uma das estações do Metro de Madrid, Chamberi, foi construída numa curva, mesmo assim não muito pronunciada.  A estação ficava ainda muito próxima de outras duas, Bilbau e Iglesia. Com o crescimento sistemático de utentes, o Metro de Madrid foi obrigado a aumentar as composições de cinco para seis carruagens.
A estação de Chamberi, além de estar situada na tal curva, não tinha comprimento suficiente – necessitaria de cerca de 90 metros - para receber uma composição com seis carruagens. A solução foi encerrá-la em 1966. Durante mais de quarenta anos, a estação esteve encerrada e os respectivos acessos barrados para impedir o acesso directo de qualquer pessoa. 
Porém, o acesso à plataforma continuou aberto, uma vez que as composições continuavam a passar pela estação. E foi através das linhas – dada a proximidade com as estações contíguas - que alguns sem-abrigo acederam à velha plataforma e aí assentaram arraiais, improvisando algumas luzes. Com a passagem rápida das composições, os passageiros passaram a ver figuras sombrias, barulhos e luzes fugidias.
O resto é fácil de adivinhar. As histórias de fantasmas e aparições envolveram a estação numa lenda urbana. Só em 2008 o espaço foi avaliado e recuperado para efeitos museológicos, tendo sido criado para o efeito um Centro de Interpretação, aberto ao público desde aquela data.
Próximo da entrada, no piso imediatamente abaixo, é possível assistir ao audiovisual que recorda a história do Metro de Madrid. Mais abaixo, nota-se a estreiteza dos acessos, sobretudo nos corredores. Passamos as antigas bilheteiras e chegamos à plataforma.
O azulejo branco “ilumina” o percurso mas, mesmo assim, o espaço é diminuto. O conteúdos das direcções são de origem, sendo possível identificar ainda a linha inicial. A publicidade foi criada em azulejo, sendo sobretudo dedicada à classe privilegiada da altura, a que podia andar de Metro.
Não deixa de ser curioso estar a ouvir as informações do guia e, de um momento para o outro, este baixar a voz e dizer que continuará depois da passagem do Metro... que abranda nesta estação, sendo possível perceber se vai cheio ou vazio.
Não é difícil descobrir a entrada da estação, basta encontrar a Plaza Chamberi. Todavia, está identificada como, “Andéncero 0” Estacion Museo, cuja arquitectura cilíndrica, em aço e vidro, não parece as habituais entradas de museus, muito menos o acesso a uma das mais antigas estações de Metro de Madrid...










terça-feira, 9 de junho de 2020

PENICHE, Paisagem, Resistência e Gastronomia


Toda a gente conhece Peniche. Pela gastronomia, paisagem ou história. Pelas artes da pesca, pelos seus protagonistas, pelas falésias e pelas Berlengas, pela Fortaleza e suas estórias. Peniche é isso tudo. Mas também vale a pena o passeio até lá. Se fosse aqui ao lado, era capaz de não ser tão atractiva.

CABO CARVOEIRO

Por lá, a costa é perigosa. Já ali aconteceram muitos naufrágios. Daí a existência do farol do Cabo Carvoeiro. Para lá chegar, passe-se o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, lugar de crença e romaria, continuando ao longo de uma estrada panorâmica.


Além da paisagem soberba, as falésias calcárias têm abundantes fósseis. Ao longo dessa marginal altaneira, os pequenos parques de estacionamento, a maioria em terra batida, permitem observar a diversidade geológica e paisagística, bem como ver ao longe o arquipélago das Berlengas.


Mas o tempo nem sempre ajuda. O nevoeiro e a humidade invernosa deixa os ossos irritados. Neste dia, estava assim. Se a(s) Nau dos Corvos, ilhéu e restaurante, mal se viam, as Berlengas nem se imaginam. Até a brisa fria fazia concorrência a algum sol que consegui romper as nuvens.

FORTALEZA DE PENICHE

Foi um local apetecível por piratas e corsários internacionais na idade Média. Para segurança e defesa da população, o Castelo da Vila começou a ser construído em meados do século XVI. Concluído vinte anos depois, só no início do século seguinte a povoação foi elevada a vila.


Desde o final dos anos 30 que o Forte de Peniche foi considerado monumento nacional. Porém, durante mais de 40 décadas, entre a década de 30 e Abril de 74, o lugar foi prisão política, reduto de alta segurança. Aquele espaço também se tornou célebre por ali terem tido lugar duas fugas espectaculares de presos políticos.


Hoje, o antigo Castelo da Vila alberga dois museus, o museu da Resistência e Liberdade e o Museu da Cidade. Este último, que não visitámos, encerra muito do património arqueológico, histórico e etnográfico da região. É, todavia, o museu da Resistência e da Liberdade que reúne maior atractividade.

Entre muralhas foi colocado um longo painel de homenagem, que encerra os nomes de todos os prisioneiros políticos, cerca de 2500 durante 40 anos, que estiveram ali presos. A prisão tinha uma ala de alta segurança, onde estavam os presos considerados mais perigosos.


O espaço exterior está praticamente todos recuperado, pelo menos o que se avista dos pátios. Curiosamente, num dos espaços perto da entrada principal, antes controlada por agentes da ex-PIDE-DGS, passava uma exposição sobre as identidades dos presos políticos.

CANTINHO DO SALOIO, em Ferrel

Já havíamos reservado, o que não é fácil, ao fim-de-semana, em Peniche. De tal forma que, não foi na vila que almoçámos. Fomos para Ferrel, ali perto, ao Cantinho do Saloio. Um banco corrido e mais quatro cadeiras. Carne e peixe, branco, tinto e café. É suficiente.


Depois de passar a traseira da duna do Baleal, entrámos pela península através do istmo açoitado pelo vento. Voltámos para trás e seguimos para Ferrel. No Cantinho, o peixe, muito, entre espadarte e atum; carnes várias, da vitela aos “mimos”. Demora um bocadinho, mas a qualidade/preço resolve. 

domingo, 7 de junho de 2020

Miradouro das Amoreiras





Gosto muito de miradouros. Deve ser por causa daquela sensação de “estar no topo do mundo”! De onde se vê tudo, se não tudo, muito, mesmo muito se vê. E, não se vê apenas, ao longe. Vê-se, também, em redor. E, raramente, é mais do mesmo. 
Habitualmente, olhar desde um miradouro é uma estreia, quer em matéria de objectos, quer de sensações. Ter uma ideia do todo é reconfortante, identifica-nos com o espaço, com a natureza. A sensação: a de contemplação! E de descoberta! 
Este, já lá está há 30 anos. Desde o século passado. Não sei se igual, se não. Nunca lá tinha ido. Ao topo da Torre das Amoreiras, em Lisboa. Naquela altura, foi preciso esperar na fila. O acesso fazia-se, e ainda se faz, primeiro, através de um elevador. Depois, de uma escada. No fim da escada, damos com o telhado de uma da torres do Centro Comercial das Amoreiras.
Está situado num dos pontos mais altos da capital. A 174 metros de altura desde o nível do mar. Do topo, é possível ver outros dois pontos mais altos de Lisboa. Ali perto, Monsanto. E, na parte antiga da cidade, o Miradouro da Senhora do Monte. A panorâmica é vasta e diversificada.
Desde aí - diz-se estarmos no 18º andar do edifício do Centro Comercial -, é possível ter (quase) todas as perspectivas da cidade. Ir com olhar às colinas .reconhecer o castelo de S. Jorge – dar com olhos no rio – desde o Parque das Nações até à foz – focar o olhar na Basílica da Estrela ou na Sé de Lisboa, estender a vista à outra margem e colar os olhos no Cristo-Rei.


A vista é motivadora. É possível, também, identificar facilmente alguns pontos de referência de Lisboa: a Ponte 25 de Abril e a Ponte Vasco da Gama, a Mãe de Água (que também possui um miradouro no telhado), os Jardins do Príncipe Real e o Parque Eduardo VII. Notável, também, a vista sobre a colina do Castelo.
 
E, ainda, admirar de alto uma quantidade de edifícios e monumentos da capital: o Mosteiro dos Jerónimos, o Aqueduto das Água Livres, os edifícios do Parque das Nações, a Basílica da Estrela, a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, bem como o Palácio da Ajuda.



terça-feira, 2 de junho de 2020

Ler Aikido em Outras Artes. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen


 

Quantos de nós não sentimos já o desencanto de não conseguirmos executar um procedimento curto e simples? ... ansiedade para terminar uma acção? ...estivemos perante o insucesso de uma intervenção? ...o constrangimento de um erro? Sim, muitos de nós, se não, todos.

Quantas vezes não fazemos o que vemos ou que os mestres nos dizem para fazer?  ...pensamos no detalhe e prendemos-nos às etapas? ...e não conseguimos soltar-nos da didáctica? ...ou de nós próprios? E, depois, algures, surge como surpresa um bom desempenho, a ausência de hesitação, uma decisão rápida e eficaz.

O espanto de uma boa execução contribui certamente para melhorar a auto-estima, orientar o provir, no limite satisfazer o ego. Mas não explica a arte. Mais do que encontrar uma razão ou um “porquê” para/das coisas que fazemos, das iniciativas que criamos, das decisões que tomamos, “A Arte do Arqueiro Zen” explica a conduta, desenvolvendo o modelo e o caminho para o 'saber desempenhar' que, em última instância, se pode considerar arte.

Ao ler o livro é impossível não descobrir semelhanças com a aprendizagem e prática de Aikido. É, também, encontrar imensos detalhes da didáctica e da pedagogia do Aikido. E reconhecer ainda que o que nos é transmitido nas aulas de Aikido tem muitos pontos de contacto com os princípios da Arte do Arco, Kyudo.

A ARTE COMO NÃO-ARTE




Apesar de abordar o tema da actividade de tiro com arco - uma das artes mais inúteis que existem, nas palavras do prefácio - este livro trata sobretudo da atitude e da filosofia Zen. Se as quisermos definir à luz dos seus próprios credos, diríamos que são aquilo que não são. 
Estranho, não é?

"Para ser um autêntico arqueiro, o domínio técnico é insuficiente. É necessário transcendê-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente.", 
in, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen

É verdadeiramente um alvoroço que ressalta da leitura. A dificuldade de entendimento da filosofia budista, da didáctica japonesa e do comportamento Zen, parece comparável às dificuldades de executar um bom Aikido. Porém, tal como alude a doutrina Zen, devemos experimentar para perceber. Por tanto, neste caso, convém ler para entender.

Diz-se que “o verdadeiro mestre revela a sua coragem com atitudes, jamais com palavras”. Talvez o “jamais” ali esteja para reforçar a atitude. Talvez ali surja para salientar a prática. Todavia, a palavra (do mestre) orienta, complementa e também releva para o fazer, para o treino, para a atitude da prática.

NÃO PENSAR?



Entre outros aspectos, o que também se pode apreender do conteúdo do livro é um conjunto de procedimentos, uma espécie de manual de comportamento, que aborda de uma forma abrangente os temas da frustração, da impaciência, do fracasso, da vergonha, e lhes contrapõe “soluções”, baseadas na respiração, na concentração/meditação, na ausência de pensamento.

O "Go Rin No Sho", O Livro dos Cinco Anéis, baseava-se da arte da espada para sistematicamente aludir a procedimentos e técnicas, pormenorizando perícias e práticas, às quais ia associando comportamentos assentes em estratégias de combate/conflito/decisão.

A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, embora aborde a técnica – neste caso do tiro com arco - preocupa-se sobretudo em contextualizar essa destreza com a atitude adequada para o praticar.

A atitude Zen é, por assim dizer - e se se pode definir - o meio e o fim da arte (do arqueiro, mas também de outras actividades artísticas/culturais). É através dessa postura que o praticante consegue, com esforço mínimo e concentração máxima, superar a técnica e praticar a arte.



Por outro lado, e uma vez que a sabedoria oriental se escora na prática, a experiência não é transmissível, pelo que o contágio da educação não se dá pela simples transmissão de conhecimento. É preciso praticar, praticar, praticar.

É fácil autenticar a reprodução deste modelo tantas vezes reproduzido (e repetido) pelo meu saudoso Sensei José Azevedo e Silva (1928-2018), um conhecido decano do Aikido Nacional. “O Aikido tem três regras fundamentais: a primeira é treinar, a segunda treinar e a terceira... treinar!”, dizia, no seu estilo chistoso e assertivo.

TRANSCENDER O PENSAMENTO



Este livro foi escrito por um professor de filosofia alemão, Eugen Herrigel, que, praticamente com 40 anos de idade, viajou para o Japão nos anos 20 do século passado, para aprender mais sobre misticismo oriental, estudando-o por dentro.

Download em http://megaalexandria-metablog.blogspot.com/2008/11/download-arte-cavalheiresca-do-arqueiro.html

Através de um colega académico japonês, conseguiu contactar um mestre-arqueiro que o convenceu a aceitar a aprendizagem do Zen através da prática de uma arte, a arte do tiro com arco. Eugen ficará no Japão durante seis anos.

O prefácio coloca em evidência a diferença, a divergência que terá de ser experimentada entre a lógica, a estrutura, as relações do pensamento ocidental e as premissas Zen que não são mediadas pelo intelecto, e vão além das “palavras, do silêncio, dos gestos”, e do entendimento.

É o acto de deliberar, calcular, conceptualizar que nos domina o pensamento. Porém, “grandes obras realizam-se quando não se pensa e não se calcula”. Tal remete para a necessidade de abandonar a nossa lógica e os procedimentos analíticos tipicamente ocidentais que nos caracterizam e nos moldam a prática.


Parece, então, que as dificuldades nas abordagens iniciais e nos desenvolvimentos imediatos, a maioria decorre de racionalizar demais sobre coisas que deveriam somente ser sentidas e por ansiosamente buscar resultados visíveis e eficazes.

Depois, a Introdução volta a surpreender afirmando o que a arte não é, explicando que o objectivo não é o “aprimoramento do prazer estético, mas excitar a consciência ao máximo”. O propósito da arte passa logo por “harmonizar o consciente e o inconsciente”. A meta é então a transcendência do domínio técnico, de modo que se converta numa produção do inconsciente.

O GENESIS DA APRENDIZAGEM



As primeiras páginas do texto central descrevem o acesso à arte, mas também as dúvidas, as primeiras abordagens, a frustração inicial, as percepções imediatas, a aprendizagem dos princípios. Uma realidade pessoal é sistematicamente assinalada: a dificuldade do percurso de aprendizagem, nesta fase ainda elementar.

No meu tirocínio de Aikido, foi também o que aconteceu. No início, raramente conseguia lidar com os constrangimentos da novidade, da execução e, pior, com a “exigência” de estar permanentemente a fazer uma auto-análise, sem sequer ter alguma experiência. Sem sequer saber esperar.

Colocam-se várias questões, como seja a da ausência ou insuficiência de manuais. A essa dificuldade contrapõe-se a componente insubstituível da aprendizagem, que é o acompanhamento por um mestre. Outra, é o problema do esforço (ao esticar o arco), a que é contraposto o relaxe e a respiração, sugerindo-se uma expiração lenta e uniforme.




Não se trata por tanto de superar qualquer artifício técnico, mas de descobrir uma outra respiração. E “porque é que a respiração não foi ensinada de início?”, perguntava-se. É preciso que o aluno experimente a diferença entre o antes e o depois, respondia-se posteriormente.

O tema da respiração está sempre presente no Aikido. O poder da respiração – Kokyu Ryoku – a extensão da nossa energia e o aproveitamento da energia do parceiro, representa um papel fundamental na prática.

Outra circunstância que é salientada no livro relaciona-se com a impaciência, com a necessidade de obter resultados, uma espécie de causa-efeito compulsiva. A alusão de que “é preciso naufragar nos próprios insucessos para aceitar o colete salva-vidas” é paradigmática e esclarecedora.


Destas fases preparatórias, iniciais – postura e respiração – o autor passa à etapa do tiro que, de início, ocasionava invariavelmente uma “sacudidela”, frustrando-o de forma significativa. O mestre dizia-lhe: “Não pense no que deve fazer ou como deve fazê-lo!”, convidando-o a ser surpreendido quando o tiro se produzisse sem intenção.

Era habitual perder-me nos “labirintos” do processo técnico, pretendendo racionalizar cada etapa. Quando o resultado do desempenho era sofrível, a frustração surgia imediatamente.

A ideia é desprender-se de si mesmo, exactamente o contrário da obstinação em ser eficaz, a teimosia no empenho, aquilo que no texto é salientado como “vontade demasiado activa”. É preciso aprender a esperar e tomar consciência que devemos ser reeducados.

“A tensão é dolorosa”, repete o aprendiz. “Isso acontece porque não existe desprendimento do eu”, responde o mestre, escreveu Eugen Herrigel.

Ausente surge também a preocupação do mestre com os fracassos do aluno. Parece que o mestre devia ter outro papel, mais intrusivo. Todavia, ressalva-se essa atitude frisando que o mestre apenas existe para lhe indicar o caminho.

FAZER E CELEBRAR

 

Articulada com a filosofia, surge a didáctica japonesa: prática, repetição, divulgação. O papel do aluno é observar e reproduzir o que é ensinado pelo mestre. O papel do mestre é demonstrar, postura metaforicamente associada a uma “vela acesa que acede outra”.

Relacionado com o filosófico e com o didáctico, surge o sagrado particularmente ligado ao cerimonial. Todas as fases da prática integram e constituem uma cerimónia, uma celebração de índole sacra, onde o ritual está sempre presente.

Segundo Nobuyoshi Tamura, um dos discípulos do fundador do Aikido, Morihei Ueshiba, o espaço em que nos movemos quando estamos a praticar Aikido deve ser considerado como um templo - daí o carácter religioso -, uma vez que é também o local onde têm lugar os os rituais associados à prática. Mas não só.

Cumprimentos, postura, silêncio, comunicação, fazem parte do cerimonial da arte. Em qualquer das práticas, tiro com arco ou Aikido, o cerimonial, além de respeitoso, continua ser prático e didáctico, uma vez que os diversos momentos vão servindo para sintonização/concentração para a acção criativa.

APRENDER COM O ERRO E COM A PRÁTICA

 

Com o alvo (do tiro com arco) mais afastado, o processo de imperfeições e equívocos repete-se e o protagonista lembra-se da vergonha que sofreu com os tiros falhados. A intervenção do mestre voltou a frisar a necessidade de libertação do processo de “vaguear entre o prazer e o desprazer”, remetendo-o para uma “descontraída imparcialidade”.

Foi apenas quando o autor se surpreendeu com alguns dos seus tiros, que recebeu uma discreta aprovação do mestre. Só quando revelou ter identificado o tal “algo que disparava” – desprendimento do eu -, o mestre lhe assegurou que, doravante, estava pronto para… “nunca parar de praticar”.

A parte final do livro menciona que o mestre–arqueiro era também um espadachim. A partir daí, o autor traça um paralelismo entre as duas artes e desenvolve um pouco a da espada.



Começa por referir a importância do aprendiz assimilar a esquiva, de impedir que reflicta sobre o ataque, de o ensinar a desprender-se de si próprio. Como resultado, relata que o cumprimento daquelas etapas provoca a ausência de distância entre a esquiva e o ataque e este último surge espontaneamente.

A esquiva e a distância são dois elementos fundamentais no Aikido. A movimentação do corpo (e dos pés), tai (e ashi) sabaki, permitem evitar a eficácia dos ataques. A distância (ma ai) permite assegurar espaço de manobra para esquivar ataques e contra-atacar.

Termina abordando a similitude da vida e da morte. Relaciona a aprendizagem com a capacidade de abstrair os iniciados do medo da vida e do medo da morte, isto é, com a possibilidade de “não sentirem a angústia da vida nem o temor da morte”, salientando que a ideia da morte deixa de estar presente, assim como de perturbar o percurso de vida.

AS FACETAS DA ARTE


A aprendizagem permite então dissipar o mal-estar induzido pelo erro, fazendo com que o aluno o aprenda a reconhecer, o corrija e consequentemente o evite. Aprender é um processo que prepara o corpo para uma (re)acção automatizada e assegura uma (boa) evolução do desempenho, independentemente do processo ter diversas fases.

Para tanto, a acção deve apropriar-se cada vez mais da auto-suficiência, eliminar etapas de pensamento e facilitar a rapidez da resposta. O pensar é substituído pelo ‘não-pensar’ ou pelo livre fluir do pensamento.

Morihei Ueshiba escreveu no seu livro A Arte da Paz: “Mantém sempre a tua mente brilhante e clara como o vasto céu, o grande oceano e o pico mais alto, vazia de todos os pensamentos”, acrescentando que, “a Paz começa com a fluidez das coisas”.

Além desse livre fluir do pensamento, o foco é na respiração tranquila, a acompanhar movimentos compassados, para assegurar a diminuição da agitação mental. A tranquilidade, melhor, a naturalidade da respiração harmoniza-se com a acção.

“A respiração é o elo de ligação de toda a criação”, escreveu O-Sensei, em A Arte da Paz, justificando que “a tua respiração é o verdadeiro elo que te liga ao universo”.

A fluidez do pensamento e a respiração tranquila aliam-se então para constituírem uma consciência, automatismo, postura e/ou prontidão, necessárias/os para enfrentar uma situação em que o desempenho tenha de ser rápido, eficiente e definitivo, o que, em muitas artes marciais, incluindo o Aikido, se denomina “Zanshin”.

Morihei Ueshiba defendia que “(...) as técnicas do Caminho da Paz mudam constantemente: cada encontro é único e a resposta apropriada deverá surgir naturalmente”. Tal como um um tiro de um arqueiro deve ser certeiro.



O que “A Arte do Arqueiro Zen” defende é muito semelhante ao que o Aikido moderno afirma, um meio para atingir a auto-realização, um (re)encontro consigo mesmo. O foco da aprendizagem está na fusão de corpo, mente e espírito.

"A Arte da Paz não tem forma - é o estudo do espírito –", escreveu Morihei Ueshiba. “No fim, deves esquecer-te da técnica. Quanto mais progredires, menos terás a aprender. O Grande Caminho afinal é um Não Caminho.”



Bibliografia

A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Eugen Herrigel, Editora Pensamento, São Paulo
Aikido - Etiquette et Transmission, Budo Editions, Noisy sur Ecole
El Arte de la Paz, Morihei Ueshiba, traduzido do original por John Stevens, e traduzido do inglês por Pedro J. Riego, Editorial Kairós, Barcelona
O Livro dos Cinco Anéis, (Gorin No Sho), Miyamoto Musashi, tradução de José Yamashiro, Cultura Editores Associados, São Paulo

Música: Busshido
https://adrianvonziegler.bandcamp.com