terça-feira, 27 de outubro de 2009

Por Terras de Viriato

Outubro 2009

O genuíno aparece cada vez menos. Talvez a imediaticidade o oculte, talvez não estejamos tão dispostos a observá-lo. Mas, apesar da inevitabilidade do tempo recente e das nossas idiosincrasias, o genuíno continua a encantar-nos. Percebe-se porquê: é raro, original, tem autoria reconhecida e identidade perene. Por terras de Viriato, ainda há coisas genuínas, validadas pela natureza e pelo homem.
Quando a natureza vinca a terra, dobrando-a ou elevando-a sobre si própria, estabelece limites, barreiras ao que fica e aos que ficam de um e do outro lado das montanhas, dos que ficam do lado das montanhas e dos que ficam nos sopés. Essas fronteiras marcam os homens, sobretudo "os de lá", e estes cunham o território que dominam com a sua autenticidade, com as suas práticas, com o quotidiano que, “mais protegido”, se vai reproduzindo à imagem ancestral. Foi essa relíquia que encontrámos nos lugares que vistamos neste fim-de-semana.
Abandonámos a área urbana viseense. Do vale, trepámos a Arada com os olhos na Freita, inicialmente pela floresta, depois entre urzes e carquejas. Num instante, as motos levaram-nos do Paraíso – aldeia no vale – até ao Portal do Inferno – um saliência abrupta quase a tocar o milhar de metros. É caso para dizer que, num ápice, ganhámos o céu!
A montanha continua a dominar um ambiente de que o homem abdica cada vez mais. Apesar da melhoria das estradas e das comunicações, há aldeias que vão sendo abandonadas; Maçagoso, ali próximo, foi uma delas. Fujaco, porém, ainda alicia os seus parcos habitantes, além de atrair forasteiros como nós.
Quem conhece Cain, nos Picos de Europa, pode concluir largas semelhanças no acesso à aldeia de Fujaco: uma plataforma estreita de paralelepípedos roça os outeiros e sobrevém ao regato que corre num vão fundo. Depois, é o xisto que avassala, ao longo de uma via rústica e sinuosa. Até ao cimo da colina, onde pontifica uma ermida, passa-se pelo Rochedo, um café-restaurante encostado a uma parede... rochosa.
Foi ao longo de muitas torceduras, algumas bem tortas, que escalámos até à ermida e abarrotamos o átrio. Daqui, soltamos os olhos à procura da arquitectura e da assimetria das casas, envoltas no verde luxuriante dos castanheiros, oliveiras, pinheiros e sobreiros. Apesar de o xisto claro dominar as habitações, vêem-se muitas telhas vermelhas.
Aqui, há sempre um “bom dia!” para o forasteiro, singelo e imperioso. O contacto não se faz rogado, quer seja pelo que se pode receber dos outros, quer sobretudo por aquilo que lhes é possível entregar. São coisas simples, originais, artesanais, que têm para trocar. É (também) destas permutas que a gente vive. É obra do homem.
Estimava-se que a restante digressão fosse semelhante, na tal singularidade, na tal rareza, no belo que a todos encantou, quando a estrada insistiu na subida e galgou até perto das colossais hélices que aproveitam o vento que sopra forte naqueles cabeços. Aqui, os contrastes iam do gigantismo das pás ao precipício que nos ladeava, da aridez do terreno, à luxúria do horizonte. Estávamos entre o céu e terra.
Na verdade, andávamos mais perto do Inferno, de abismos respeitáveis, das Covas do Rio, das Covas da Serra, e do Portal do Inferno, uma abertura numa parede rochosa, de onde que se vislumbra não o Inferno, mas um panorama abissal, ainda que longínquo, sobre os cumes que rodeiam o lugar. Da plataforma onde se deu uma derrocada de xisto, pode espreitar-se o vale contíguo que desce infinitamente ao longo de encostas abruptas. É certamente uma varanda alcantilada, singular e intimidante. É obra da natureza.
Um pouco mais à frente, descemos para a Aldeia da Pena ao longo de uma estrada estreita, pejada de pedras e de algumas covas não tão fundas, porém, como as do Inferno. Alguma dificuldade para estacionar – não entram veículos a motor na aldeia – mercê da enxurrada da semana anterior que havia dado cabo do espaço exíguo onde se deixavam as viaturas. Foi obra da natureza.


Há algumas passagens com areia, cascalho fino ou pequenas placas de xisto, desalinho criado pela forte chuvada da seman anterior. A estrada não tem bermas nem baias, mas tem um amplo horizonte por limite. Metem respeito, aqueles declives, mas também fascinam pela dimensão, pelo desafio, pelo dever de controlo.
No interior da aldeia, ao abrigo de um alpendre de xisto esperava-nos um aperitivo de queijo, presunto e vinho. Apesar de ser ainda cedo para tal insígnia, ninguém se queixou especialmente do aveludado da pinga. Anexo, ficava um restaurante com mais dúzia de mesas, recheado de cartões-de-visita e pedaços de papel onde os comensais dizem da sua jornada. O "Martelo", mais à frente, também os mostrava.
Fora, percebe-se a limitada dimensão da aldeia e o sossego diz da escassez de pessoas. Disseram-nos que não são mais de dez, sendo que dois estão ausentes. Uma família, por tanto. Isso não impede que, rapidamente, nos ponham ao corrente das últimas novidades da terra, especialmente do que lastimam: a velhice de alguns, o isolamento, a falta de estacionamento para os visitantes, a lonjura das instituições.
Mais concentrada do que a do Fujaco, a aldeia da Pena não mostra telhados vermelhos, antes um xisto mais escuro. Na loja-museu de artesanato são os objectos de madeira que predominam. As ruas são mais estreitas, tem menos habitantes e o acesso é mais penoso do que o da sua congénere do Fujaco. Deixámo-la, entusiasmados com a tal raridade com que nos brinda.
Daí a nada, estávamos no emissor de S. Macário, a invadir a ermida do mesmo nome que, lá no alto, está defendida com espessos muros de granito. Foi ao abrigo das antenas de rádio e de televisão que nos expusemos para registar a foto de grupo. Não aquecemos o lugar.
Descemos em fila indiana assimétrica, como é habitual. Para trás, iam ficando os precipícios que nos haviam acompanhado a manhã. Por aqui, há risco, minimizado porém pela velocidade baixa a que seguíamos. As motos queixaram-se de alguns ganchos mais sérios, da areia que borrifava algumas curvas e de uma ou outra rajada de vento no cume.

Tal como meses antes, quando trepámos os Pirenéus Atlânticos, a peregrinação motociclística serpenteou pelas serras percorrendo diferentes patamares ecológicos. Desde o planalto, onde a irregularidade do relevo ainda é ténue e a vegetação abundante e diversificada, passámos aos outeiros, mais acidentados e com a floresta a alinhar-se densa, para depois subir definitivamente aos cabeços, onde são as fragas e a aridez que subjugam.
Com pouco tempo para dedicar às pessoas, a diferença veio da observação da natureza, sobretudo da estratificação ecológica, onde os patamares ambientais se distribuem em altitude. É típico de regiões acidentadas, tão original como é emblemática a diferença cultural que as gentes de lá experimentam face aos outros, na espiritualidade, na economia, nos rituais.
Com a aproximação da hora de almoço, foi o “Martelo” que nos abriu as portas com um conjunto de deleitosos aperitivos que, ainda assim, não desacreditaram os manjares sequentes. Foi o primeiro sinal de que o fim-de-semana concretizaria um ciclone gastronómico. Houve quem se perdesse a caminho do restaurante mas, uma vez lá, todos encontraram o trilho para o excelente “branco” do Curral da Burra.
Depois, visitámos o velho “Martelo”, uma atarracada divisão em chão de terra batida, que estava pejada de vestígios de grandes farras e expectativas registados em todos os tipos de papéis possíveis. As carnes eram grelhadas na parede de pedra exterior, no espaço de um bloco mais estreito, sem chaminé, a tingir de negro de fumo a parede mais exposta à rua principal. Outra raridade, hoje institucionalmente banida.
Catita, mostrou-se Póvoa Dão, um antigo lugar de casas pétreas recentemente recuperado com objectivos turísticos. Passámo-lo em revista “sem tirar os pés dos pedais”. Resgatado à imagem do passado, segue a traça rústica da região, porém com uma irrepreensibilidade excessiva que copia o desenho antigo mas não reproduz o ambiente remoto.
De novidade em inovação, fomos surpreender a folia ao gelo. Minus 5, no centro comercial viseense, é um lugar que concorre com as temperaturas negativas que se fazem sentir na Concentração dos Pinguins. Trata-se de um bar construído em gelo, em que até os copos têm de ser pegados com luvas. Só vende bebidas frescas e obriga a vestir roupa quente que dispensa num bengaleiro polar.
Com a proximidade da noite, o tempo arrefeceu até perto dos valores sentidos na partida matinal. No entanto, um agasalho ligeiro foi o suficiente para nos abrigar uma curta caminhada até à Mesa da Sé. Foi lá que comemorámos o aniversário do Clube e do nosso companheiro Justino, ao som de aclamações a ambos, entre a diversidade das entradas, a delícia das carnes e a doçura das sobremesas.


Desta vez, tivemos a companhia de alguns amigos espanhóis e do Bernard, do 'Sy Hay Que Ir Se Va'. Também eles se juntaram à festa, o que, para espanhóis, é como estar em casa. Discursos, agradecimentos, votos, apagar de velas, alegria, piadas, tudo acompanhado por espumosos farristas. Estava cumprido o ritual.
De manhã, repetimos o trajecto, agora com destino à Sé e ao museu Grão Vasco. Percorremos os três andares deste último, entre esculturas, pinturas, e na sua maioria objectos sacros, datados desde a antiguidade cristã até à contemporaneidade. Corria a missa na Sé vizinha, pelo que o périplo foi sobretudo à volta do claustro, com os olhos a perderem-se por um extenso painel de azulejos.
Eira da Bica, nos arredores de Vouzela, recebeu o restante da comitiva CPEP, já praticamente com os membros da Trofa, meia dúzia de lisboetas e um portuense. Os espanhóis sairiam em sentido contrário, o Bernard e o António para algures. Para rematar a expedição, o almoço andou entre vitela e borrego celestiais. Mais longe, ficavam as Covas onde os Lusitanos resistiram, o Inferno onde romanos se instalaram, as Ribas onde muitos godos passaram. Nós ficámos sobretudo com Fujaco e Pena na memória, envolvidas naquele ledo e duro ambiente de gigantes, antes defendido por Viriato.


Música: Pat Metheny e Tiesto