quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Museu Gulbenkian


A exposição de azulejaria na Gulkenkian realizar-se-ia apenas na semana seguinte. Por isso, por que não aproveitar a manhã de domingo para visitar o museu? Há anos que não o fazíamos. Fomos. E voltamos a andar no tempo e nos lugares das escolhas artísticas do coleccionador arménio.

Percorrer o museu é passear pela História e pela história da arte, ao longo de espaços cronológicos e culturais. E de uma maneira fácil, como se fosse um passeio onde pudessemos assistir ao evoluir da natureza, da semente à árvore, ao mudar da cultura, das ideias aos gestos, ao fulgir da arte, dos materiais aos temas, das peças ao engenho artístico. É simples, cómodo e pedagógico. 



O edifício segue os traços arquitectónicos do corpo principal da sede da Fundação. O espaço interior organiza-se geometricamente, com janelas quer largas quer estreitas. Lembra o congénere arqueológico de Madrid.

Mal entramos, a luz atenua-se e o espaço fecha-se. Porém, os objectos expostos adquirem um brilho ímpar. Por pequenos que alguns sejam, agora, são eles os protagonistas. De repente, penetramos num passado remoto, damos um salto no tempo de quase 40 séculos. 
Passamos para o Egipto. Entramos numa era com alguns milhares de anos... antes de Cristo. Parece difícil conceber que nesta altura já havia havia artistas, artífices cujas obras parecem tão perfeitas, tão próximas da realidade.




Tem apenas 12 centímetros, mas é enorme. Bastaria invocar a data para lhe atribuir valor: quatro mil anos de vida. Seria suficiente mencionar o material de que é feito para o reconhecer como objecto artístico: obsidiana (vidro vulcânico). Bastaria identificar os símbolos de poder para lhe reconhecer a autoridade faraónica, com o poder dos deuses. 

Prenhe de símbolos e simbologia, a Barca Solar corresponde a toda uma cosmogonia que envolve deuses, a escrita, os antepassados, o regime faraónico, além de outros elementos socialmente relevantes da cultura egípcia.


A mitologia impõe-se na arte assíria com os génios alados esculpidos na pedra. A escrita (cuneiforme) e os deuses também. Mas são os homens que decoram as paredes dos palácios com baixos-relevos de dimensões gigantescas. Os artistas assírios parecem libertar-se dos limites da estética egípcia.


O primado da cronologia mantém-se. Tal como nos livros de História. A arte grega vem logo a seguir, cinco séculos antes da era de Cristo. A cultura volta a enriquecer-se. Os vasos de terracota são agora pintados com cenas mitológicas. Baco e os gémeos Castor estão lá. O risco é já o traço da pintura.

Quando entramos na arte islâmica a Grécia ficou a um milénio de distância. A antiguidade clássica dá lugar ao medieval. Os tapetes, as iluminuras, as cerâmicas ganham protagonismo na arte. A cosmogonia grega esbate-se. Agora é a religião que domina. O mesmo se passa em terrenos cristãos.


O livro, profuso de iluminuras, pesado e colorido, reflecte o crescimento da importância da palavra, também da palavra dos livros religiosos. Mais leve mas igualmente estilizado, o vidro atenua a excessiva opacidade do universo artístico medieval. A decoração das lâmpadas de mesquita é neste âmbito lapidar, juntando motivos da natureza (as aves) e da cultura (a Fénix).
A identidade das comunidades continua a ser influenciada pela acção da Igreja e da religião. Esse domínio também envolve a arte. Na Arménia, de onde o colecionador era oriundo, também se descobre essa faceta, por exemplo nos pergaminhos e nas iluminuras do final da Idade Média.

Porcelanas pintadas, pedras trabalhadas, madeiras lacadas dominam o espaço dedicado à arte asiática. Aqui, as pedras esculpidas ocupam um lugar de destaque, paredes-meias com a arte dos biombos e da famosa cerâmica chinesa.

Quando se passa do Próximo Oriente para o Extremo Oriente a natureza assume uma faceta preponderante. As plantas e os animais dominam a decoração das peças. O espaço da natureza, onde os rios, as montanhas e a vegetação surgem invariavelmente, é motivador e motivo artístico. 

A leveza dos materiais e a estilização das formas tornam as peças complicadas em arte. Agora é a natureza que se endeusa e que assume uma totalidade que a cultura esculpe.


Chegados à Europa voltamos a encontrar a arte que foi à descoberta do mundo, a que acompanhou os evangelizadores. A religião reaparece com uma necessidade de divulgação. A arte passa a ser veículo didáctico e a preencher o espaço público de culto.


A Europa centra-se no livro, na escultura, na pintura e nas artes decorativas. Ainda há vestígios do medieval, por exemplo no díptico em marfim com cenas da paixão de Cristo, do século XIV, ou na escultura de São Martinho a cavalo, em calcário, do século XVI. A religião na primeira peça, e a mitologia na segunda (cabeças de Medusa, etc.), continuam a presentes. 

Todavia, a arte decorativa, vai ganhando actualidade, notoriedade, utilidade, familiaridade. Reconhecemos facilmente as peças, sobretudo as de ourivesaria e mobiliário. Ainda hoje se vêem peças semelhantes a estas em palácios, mas também em hotéis ou em edifícios públicos requintados. 

As manufacturas conseguem criar mais peças. A arte multiplica-se pelos palácios e pelas casas abastadas. Se no final da Idade Média a arte já preenchia muitas das paredes das casa mais ricas, as artes decorativas vão passar a ocupar as escadas, os átrios e os salões. A arte do mobiliário passa a ser omnipresente.


As madeiras exóticas e os animais estranhos à maioria dos europeus passam a fazer parte do quotidiano da Europa. às madeiras, juntam-se agora o bronze, o estanho e o latão, e o mobiliário assume uma posição dominante na arte. Os motivos decorativos continuam a convocar o naturalismo e cenas mitológicas. As peças vão-se apoderando de uma proporcionalidade, harmonia e severidade ímpares. 

A religião, o mito e a natureza mantêm-se presentes, sobretudo na pintura. Na exposição, estão representadas as várias escolas de pintura - flamenga, francesa, inglesa - e muitos obras dos pintores dos séculos XV a XIX, de Rubens a Rembrant, de Fragonard a Quentin La Tour, Guardi a Turner, passando por Manet, Degas e Renoir.   


Porém, o museu não é apenas a qualidade, a disposição, a diversidade do seu conteúdo. É o espaço, a configuração, o enquadramento paisagístico. O museu é suficientemente amplo para não nos sentirmos fechados numa gruta estética. Há espaço para observar e para estar. Há inclusivamente lugares privilegiados em frente das peças.





É simples orientar-mo-nos numa configuração geométrica que também permite o acesso do olhar a várias salas. Os limites praticamente não se desvendam. E, depois, há aquele envolvimento de verde que se desfruta desde as janelas rasgadas, janelas que também protegem a arte interior da paisagem exterior.



O percurso é atractivo e atraente, espaçoso, iluminado ou discreto. Tem bancos, onde é possível descansar as pernas ou prender o olhar. Isto, ao longo de um itinerário que nos leva pela reprodução artística do sagrado, do mítico e do natural, uma espécie de catálogo de natureza e cultura que a arte encerra.