terça-feira, 4 de outubro de 2016

Europa 1989, Visita a Mozart



“A visita à Holanda, efectuada em 88, tinha deixado apetite suficiente para voltar à Europa. Escolhida a Aústria como destino e a cidade de Salzburgo como objectivo estratégico, eu e a Julieta partimos de Massamá, Queluz, no dia 12 de Agosto, acompanhados de um casal amigo que apenas rodaria connosco até ao segundo dia, dadas as limitações de temo a que estavam sujeitos., pouco mais do que uma semana”.
Foi este texto que figurava no prefácio da narrativa desta viagem, cujo resumo escrevi para a revista MotoJornal, de Agosto de 1992. O texto seguinte, porém, foi construído mais pela memória e pelos documentos que guardei da viagem, do que através do texto original. 
Talvez haja algumas discrepâncias, mas o fundamental, como habitualmente, são sobretudo os lugares que, hoje, devem manter o mesmo ou possuir ainda mais carisma que atrai a visita, como sejam, os Alpes suíços, a Costa Brava espanhola, o pré-histórico francês, a cidade de Munique na Alemanha e a de Salzburgo na Áustria. 
Sion, Suiça.
Esta viagem seria a última de uma sequência ininterrupta que durou uma década, dez anos durante os quais as “férias grandes” foram passadas em duas rodas. Uma dezena de anos que foram uma espécie de teoria e prática da disciplina de viajar. Uma cadeira de fácil aprovação porque viajar é uma paixão. Uma paixão inspiradora, algo que apetece glosar. Por vezes, até em verso.

Na altura, tomei algumas notas, guardei alguns documentos, registei em slide partes desse furor que nos levou, entre os vinte e os trinta, por metade da Europa. Mas também escrevi sobre as viagens que fiz, por vezes com alguma fúria, outras com demasiado empenho, outras ainda, em verso de pé quebrado. Junto alguns, mais abaixo.
Este ano, estava previsto percorrermos cerca de 6 mil quilómetros. Após França, com alvo na Aquitânia, estaríamos novamente em territórios germanófilos. Insistiríamos na Suíça – queríamos rodar nos Alpes – entraríamos na Áustria – de novo a paisagem e a arte – e conheceríamos Munique – de onde não tinha grandes expectativas. Antes, porém, estaríamos com a história, ou melhor, com a pré-história francesa na região de Sarlat para, depois, passarmos por Annecy, um átrio excelente para introdução aos Alpes. Voltaríamos a França para visitar a Nimes romana e sairíamos para a Costa Brava espanhola para descansarmos na praia em Tossa de Mar.
Salzburgo. Antes do túnel de entrada na cidade.
Talvez mais do que outras, esta viagem seria um périplo por lugares, um circuito com paragem em locais elegidos como interessantes para conhecer. Sarlat, Annecy, parte dos Alpes Suíços, Luzerna, Munique, Salzburgo e Nimes. Iríamos da pré-história, ao medieval e daí à idade moderna. De moto.
Panorama desde a Torre Olímpica, em Munique
E que moto! Uma Honda VF 750 Sabre. Este modelo da Honda nunca tinha “saído” em Portugal. A Iba, importador da Honda na altura, havia comprado no Japao alguns contentores de motos usadas deste modelo. Eu apenas tinha visto duas motos deste tipo, em Tróia, com matrícula canadiana. “Enchiam o olho”. Vejam lá!
Troia. Duas VFSabre canadianas.
O modelo contava com um vasto conjunto de inovações, entre elas, um motor de quatro cilindros em “v” revolucionário, suspensões novas, um painel de informação logística digital integrado (que incluía um indicador de mudança engrenada), um sistema de alarme com fibra óptica, e mais meia dúzia de dispositivos em estreia. Alguns viriam a revelar-se más soluções, incluindo o próprio motor, de uma primeira geração que não provou.
Annecy, França.
Desta vez, o equipamento da moto envolvia as malas Krauser que vinham da CB 750 F2 anterior e, em cima do suporte traseiro, levávamos um valente saco de desporto que transportava a tenda, os colchões auto insufláveis, sacos cama, fatos de chuva. Em cima do depósito, ia um saco cujo suporte já se tinha revelado um bocado agressivo para a pintura e, por isso, era necessário contar com algumas fitas de espuma fina para a resguardar.
O fato da Julieta era o habitual Mototecnica, comprado em Andorra alguns anos antes. Eu voltara a vestir o blusão e calças tradicionais de cabedal preto, já que o Mototecnica igual ao dela me deixara de servir no ano anterior. Para além disso, e contando com as chuvadas do costume após os Pirenéus, dispúnhamos de dois fatos de chuva onde não entreva uma pinga de água, mas também de onde não saia uma gota de suor…
Sarlat, França.
Se bem que tivéssemos alojamento em Munique em casa de familiares e no primeiro dia combinássemos ficar num hotel, as restantes noites seriam passadas na tenda em parques de campismo. A opção era criteriosa. Sabíamos que em França, exceptuando as zonas balneares, havia muitos parques, com muito espaço, boas condições e não era preciso reservar lugar. Tal como na Suíça e na Áustria.
Não íamos sozinhos. Pelo menos até ao segundo dia, teríamos a companhia do João e da Paulinha, que iam a caminho da Suíça. Eles iam numa Kawasaki ZX-10. Fizemos o trajecto juntos até antes de Sarlat. Nós fomos à procura de um parque de campismo e eles seguiram para a Suíça e depois pelo sul de França, enquanto nós ficaríamos dois dias pela região do pré-histórico francês.

ATÉ BURGOS, PELO VELHO IP5


Foi a etapa mais longa da viagem e o início até correu bem. Como habitualmente, de manhã estava frescote e os fatos de cabedal eram bem-vindos. Porém, à tarde, o tempo aqueceu. Não era a primeira vez que saímos com aquela moto, pelo que a logística não devia ter segredos. 
O mistério estava mesmo na estrada. O IP5, recém-concluído, ainda não tinha bombas de gasolina. Antes de Viseu, a Sabre ficou sem gasolina. Foi preciso o João servir de reserva e ir buscar combustível a alguns quilómetros dali. Almoçámos e reabastecemos na Guarda, nessa bomba, aqui por cima na fotografia. 
Pernoitámos no hotel Ciudad de Burgos. Ficava fora da cidade, muito perto da auto-estrada. Pelo menos por duas vezes, foi o local ideal para parar à hora de jantar do primeiro dia e sair cedo na manhã seguinte. 
Fronteira espanhola. Irún.

Chegámos ao fim do dia, após quase 800 quilómetros de calor. Mas não tínhamos reservado. O João recordou-me que, por tal, a coisa ficou barata, uma vez que só tinham um quarto vago, que partilhámos. Tenho algumas dúvidas sobre a bondade do gesto e a impressão que nos cobraram dois duplos...
De manhã, deparámos com um cartão com votos de ”boa viagem” deixado em cima de um dos depósitos, pelo Toni Contente, da Motomoda, Amadora. O tempo manteve-se fiel à estação , o trânsito fluiu e conseguimos chegar rápido e sem problemas a Périgeux. O dia só teve história quando nos separámos perto do desvio para Sarlat. 
Não foi fácil dar com o parque de campismo, mas valeu a pena andar pelos bosques - em estradas onde uma caravana passava dificilmente pela moto - até encontrar um excelente, espaçoso e com bastantes vagas, piscina, restaurante com menus variados e para todas as bolsas, e ainda, música ao vivo à noite. Por isso, reservamos logo 3 noites...
Foi lá que ouvimos um baladeiro francês cantar em português do Brasil. E não tinha má pronúncia. Estávamos no tempo das cassetes e ele levava bastantes para vender. Já noite dentro concluiu com um excelente, "jái des cassetes dans ma malete...", depois de uma "Garota de Ipanema" surpreendente. 
Mas os franceses deitam-se e levantam-se cedo, mesmo em férias. Daí a assistência ter saído pouco a pouco e me ter parecido que o baladeiro estaria disposto a terminar mais tarde. Esse padrão foi porém ideal para sair cedo e conhecer a região, mas sobretudo chegar a tempo de o restaurante do parque ainda estar aberto...


SARLAT, NO PRÉ-HISTÓRICO FRANCÊS


“França, não é só capital.
São estradas de encantar
ambiente florestal,
cumes de abismar,
província original,
cuidada, bem arrumada,
de palácios campestres na terra cultivada,
como velhos mestres,
de arte apurada,
de pinturas rupestres,
da Lascaux copiada
à Sarlat medieva,
da pedra lascada,
da casa primeva
à Rocamamadour, enfim,
uma rota que leva a outros, a mim
a julgar jardim
de Adão e Eva.”
Na manhã do dia seguinte, já andávamos pela periferia, ao longo do Énéa, um rio largo com canais que passava perto com parque. Foi aqui que vimos muitas famílias em canoas a descer o rio e a 'picnicar', passando por pontes, castelos e campos com flores a perder de vista.
Sarlat, centro histórico.
Fomos parando à medida que tudo isso nos ia aparecendo, num ambiente diferente do que estávamos habituados. Uma casa apalaçada, uma mansão com jardins vastíssimos, quintas residenciais e quintas de produção de patés, redutos de gansos como nunca tínhamos visto. Foi uma mão cheia de novidades logo de manhã.
Uma delas passou pela passagem pela entrada de uma caverna. Um buraco enorme na montanha que era realmente a entrada de uma gruta. Ainda espreitamos e percebemos que o acesso era feito através de um pequeno comboio. Mas também vimos o comprimento da fila e espera e desistimos tratava-se das Grutas de Lacave, na localidade com o mesmo nome.

ROCAMADOUR

Depois, parámos num promontório estranhamente provido de um elevador. Não é habitual haver ascensores em penhascos, a não ser que… na base exista uma povoação, uma praia, algo de interessante. Do topo mal se via, mas rodeando a falésia, ia surgindo lá em baixo uma aldeia cujas casas trepavam o penhasco. Estávamos em Rocamadour.
Deixamos a moto próximo do precipício e descemos no elevador. Ao sairmos, deparámos com aldeia com ruas estreitas, uma quantidade de lojas, uma chusma de turistas e uma animação rara para aquela dimensão. Passamos entre casas simples e baixas em pedra, algumas alcantiladas na falésia, bem como outras mais aristocráticas transformadas em pequenos hotéis, ao longo de ruas engalanadas com bandeiras em estilo medieval.
Rocamadour não era uma aldeia anónima. Além de centro espiritual e de peregrinação que congregava muita gente ao santuário da virgem negra, uma pequena capela onde não cabiam duas dúzias de visitantes, a aldeia comercializava o patê de canard como se fossem pastéis de nata.
Há imagens que não se esquecem, como a de uma montra onde se explicava a criação do patê com bonecos mecânicos. Ou seja, se mostrava como se sobrealimentava um ganso ou um pato, de maneira a que o respectivo fígado crescesse dez vezes… ou não estivéssemos na região do Périgord que, a par dos Midi-Pyrénées, continua ser a região responsável pela maior fatia de produção do foie gras de França. Não é difícil encontrar explorações à beira da estrada e verificar que são os patos e os gansos que dominam os cercados.


A quinta com criação de gansos. E o castelo, mais um, em fundo. 
A ermida onde estava a virgem negra, representada por uma pequena imagem de pedra de uma mulher, era acanhada mas tinha as paredes e o tecto preenchidos por ex-votos, aquelas figuras em cera – pernas braços, etc – ali entregues por força de uma promessa. Estavam num ambiente escuro, húmido, apertado e o acesso exigia trepar bastantes degraus.

LASCAUX, PINTURAS RUPESTRES PRÉ-HISTÓRICAS

Um dos motes da viagem envolvia a pré-história da região. O sítio mais carismático e atraente era Lascaux – embora depois tenhamos encontrado outros tanto ou mais curiosos - uma célebre gruta que possui algumas das pinturas rupestres mais famosas do mundo. Não sei onde fica a gruta original. A verdade é que a gruta visitável é uma réplica, construída ao detalhe milimétrico – há maquetes e filmes em outra área que mostram o detalhe da feitura - de modo a preservar o ambiente original. 
O acesso à réplica estava condicionado, havendo um número limite de visitantes /dia. A gruta original só abria raramente para estudiosos. A réplica só pecava pela artificialidade do soalho. Tudo o resto era uma reprodução extremamente fiel da gruta original, num trabalho concluído à escala milimétrica. As pinturas estavam bem iluminadas, as explicações do guia eram suficientes e o ambiente inacreditável, apesar de ser necessário descer bastantes degraus de uma escada íngreme e, para aceder a um das partes da gruta, era preciso suster a respiração para passar entre duas rochas…

MUSEUS E PARQUES TEMÁTICOS


A pré-história francesa não ficava por ali. Os franceses tinham na altura um conceito de museu que ia além da edificação convencional com objectos antigos. Além dos museus tradicionais – um geológico, um de pré-história, um de arte bruta - a ideia de museu-vivo alargava-se ao campo, em terrenos onde se reproduzia, com elementos estáticos ou mesmo com actores, cenários pré-históricos e ambientes medievais. 
A oferta cultural e de natureza era de tal ordem que não foi fácil optar pelas visitas. No entanto, na maioria dos sítios, a escolha foi feita mediante o tamanho das filas de espera. Em alguns locais, desistimos de tentar sequer entrar. O tempo de espera podia ir para além de uma hora, para uma visita de meia hora...
Uma quinta, onde não faltava um mamute mecânico ou uma tenda pré-histórica, rivalizava com outra, onde os “habitantes” andavam vestidos como os seus pares de há meio milhar e anos. Ou ainda o castelo onde havia a reprodução de torneios medievais e um festival de aves de rapina. Ainda por cá não se pensava fazer festas, mercados ou viagens medievais…
Mamutes mecânicos em parque temático.
Sarlat era uma pérola do medieval, sobretudo no centro histórico. Tivemos a sorte de apanhar uma feira de artesanato e de produtos da região. Mais tarde, reconheci a praça central num filme sobre a revolução francesa. Sarlat fica numa região plena de localidades como, Beynac, Vitrac, Bezenac, Salignac e outras tantas dezenas acabadas em “ac”.
Mas talvez os sítios mais surpreendentes daquela zona tenham sido um museu e um conjunto de grutas pré-históricas. O museu apresentava uma peça espantosa encontrada na região: a proa de um dracar (barco viking). Sarlat fica a mais de 200 kms da costa. É fácil perceber por onde já andavam os vikings no século IX. 
A oferta cultural era imensa

Desde esse museu, era possível ver, não muito longe, um conjunto de grutas pré-históricas ainda preservadas, distribuídas ao longo de uma vertente abrupta de um desfiladeiro. Infelizmente, perdi os slides dessas grutas, tal como os da proa do dracar e restantes testemunhos milenares que estavam expostos no museu...

ANNECY, DAS FLORES À BEIRA DO LAGO


Foi praticamente todo o dia a andar. De Sarlat a Annecy são quase 600 quilómetros, um pouco menos do que de Burgos a Sarlat. Fizemos quase todo o percurso por estradas nacionais. Aliás, era nestas estradas que encontrávamos os nossos restaurantes de estrada preferidos, a que chamávamos simplesmente, “Frites”. 
Era o nome que estava indicado nas placas da beira da estrada. E, realmente, lá estavam as batatas fritas, os cachorros, os pregos, os patés e os “panachés”, a preço módico, num local normalmente agradável, com sombra e servido por gente simpática. 
Água e flores, uma constante em Annecy.
O final do dia em Annecy levou-nos ao parque de campismo da cidade, a poucas centenas de metros a pé da zona central da cidade, à beira do lago do mesmo nome. Só quando saímos de manhã, percebemos a dimensão do lago, a marina, as montanhas em redor, o requinte ornamental da cidade.
Annecy é uma joia romântica. Além das margens do lago serem um jardim em toda a extensão, é no lago que desagua o Tihou, um rio estreito que atravessa a cidade. As margens são cais, à imagem de Veneza, com passeios pedestres e espaços decorados com floreiras, muitas floreiras repletas de flores.
Passámos a manhã nas ruas/cais que acompanham o lago e o rio e pudemos perceber que era mais uma localidade onde o tempo parecia não ter passado. Os edifícios mais antigos estavam preservados e não havia prédios altos. Ali, era quase como estar na Suíça. A limpeza, as indicações, as flores, o lago, as casas, as lojas, tudo parecia ser o que era: uma porta de entrada na Suíça.
O lago, os canais, os passeios, as flores. Depois, mais flores, o lago sempre, mais uma rua estreita, uma loja simpática, uma esplanada ensolarada. A manhã toda nisto. Parecia estarmos numa pequena Veneza francesa, com mais edifícios em pedra, mais flores e mais cor.
À tarde, subimos para o castelo que domina a cidade desde o final do século XIII. Situado num monte com acessos íngremes proporciona uma vista panorâmica excelente quer da cidade quer do espaço em redor. 
Naquela altura, estava já transformado em museu e galeria de exposições. Aproveitamos para visitar uma, de objectos em vidro e, depois, perder o olhar sobre os telhados de Annecy, cujas telhas pareciam mais velhas do que as das casas mais antigas de Alfama...
Nesta altura, as tarifas para estudantes eram reduzidas, uns anitos antes da medida ter chegado a Portugal. Como já sabíamos da redução, eu levei o meu cartão de estudante. E valeu a pena, ou seja, 4 francos suíços de redução, coisa para umas centenas de escudos...
Chegámos ao parque de campismo ao entardecer e demos com uma Goldwing francesa estacionada perto de nós. O casal tinha quase idade para serem nossos pais – tinham apenas uma máquina de café e os sacos cama dentro da tenda - e gostavam de viajar, de moto ou de barco. 
Michel e Michelle, casal francês de Brest.
Foi a primeira vez ( e a última) que guiei um GoldWing. Fiz uma dezena de quilómetros em zona urbana e percebei que não era fácil virar a moto numa rua larga. O francês trouxe a moto de regresso a Annecy, enquanto as raparigas aguardavam no bar. Bebemos  um copo e decidimos partir juntos no dia seguinte. 

NOS ALPES, ENTRE BRIG E SION

De Annecy a Brig vão cerca de duas centenas e meia de quilómetros. Entramos na Suíça perto de Genebra, compramos a “via verde” suíça, - o tal selo para andar nas auto-estradas durante um ano - e continuamos por Lausanne, Vevey e Montreux, sempre à borda do lago Genève. Depois, continuamos embalados por aquela paisagem de anúncio de chocolate suíço.
Parece-me que já tínhamos delineado ficar no parque de campismo de Brig. Foi isso que dissemos ao casal francês que nos acompanhava. E foi para lá que todos fomos, não sem antes termos parado algures numa zona de descanso da auto-estrada e ele ter dito a um conterrâneo com mais uma década em cima e a guiar uma moto do mesmo modelo, que era mais doido do que ele.
O parque de campismo não era grande, mas dispunha de muitas árvores, de relva e de instalações surpreendentes, onde não faltava água quente nas torneiras dos lavatórios e um secador de cabelo inclusivamente no lado masculino. O pequeno mercado tinha iogurtes de um quarto de litro mais baratos do que os nossos de meia dúzia de gramas...
Parque de campismo em Brig.
Montámos a tenda numa zona protegida por árvores, junto do curso de um ribeiro que, depois percebemos, corria com violência entre pedras num leito estreito e, durante a noite, parecia querer romper por entre as tendas com um fulgor terrível. Custou a adormecer...

CASTELOS, VINHAS E MONTES

Suíça,
beleza tamanha,
a danada,
esta terra de montanha.
A gente fica pasmada, 
mesmo que ideia tenha,
de ser sofisticada. 
Melhor parece arranjada
que o luso medievo,
limpa e engraçada,
a ideia que daqui levo
de uma criança mimada
com a vida a fluir 
nos lagos de brincar,
onde apetece dormir 
e logo após meditar, 
onde apetece subir, 
trepar ao alto do monte 
e do cimo do monte olhar
a paisagem defronte, 
as casas bicudas do vale,
onde os rios buscam plano
no palco monumental
do ambiente serrano.
Aproveitamos o dia seguinte para trepar os Alpes. Mas não andamos muito. Íamos de calças de ganga e camisolas sem mangas. Assim que começamos a subir foi ficando cada vez mais frio, até que fomos obrigados a regressar. A opção foi seguir pela estrada do vale que vai até Sion.
Estava quente na subida, mas arrefecia a sério à medida que subíamos
Fomos parando ora à vista das muralhas de um castelo, ora numa fonte à beira da estrada, ora junto de uma torre medieval. Chegamos a entrar propositadamente num bairro de moradias no espaço rural – uma espécie de pequena urbanização no campo – e a trepar a um outeiro panorâmico cujos socalcos estavam cobertos por uma vinha imensa.
Numa dessas investidas numa pequena aldeia de casas típicas, com telhados inclinados, muitas flores nas janelas e rodeadas de relva, só faltou mesmo a imagem idílica de uma Heidi a cantar e a descer os montes com o seu balde de leite e um ramo de flores na mão.
Foi esse bucolismo que nos acompanhou pelas ruas medievais de Sion. À hora de almoço, aproveitamos uma esplanada improvisada com mesas corridas longas, preparadas para servir muita gente durante uma festa popular, para comer qualquer coisa. Em redor, muitas flores, algumas bancas de venda ambulante, fardos de palha, bandeiras, enfeitava a rua provavelmente centro da festa.
Sion
Depois da refeição naquele ambiente tão agradável, saímos calmamente da esplanada, como se tudo aquilo fosse oferecido. Quem não deve ter achado graça foi o dono do restaurante, que nos seguiu até ao início da rua e aí nos passou a conta. É capaz de ter reparado que, com a serenidade que estávamos, nos havíamos esquecido mesmo de pagar…

DE BRIG A MUNIQUE PELO FURKAPASS


O dia seguinte levar-nos-ia finalmente a trepar além dos dois mil metros de altitude. Deixámos o vale para entrarmos numa estrada sinuosa, primeiro com curvas abertas e, depois, cada vez mais apertadas. Até que começámos uma subida ondulante, com esquerdas, direitas, sucessivas, e rectas longas que culminavam em ganchos alguns deles a exigirem curvar em primeira…
Obrigatório parar
Em redor, a paisagem era tipicamente alpina. Começamos a sentir frio e a ver neve assim que parámos pela primeira vez. Fizemo-lo perto de um albergue de montanha onde também estava um casal de motociclistas dinamarquês. Andavam há quase um mês na Europa. Aproveitavam o facto de se terem formado naquele ano para darem uma valente volta de moto.
Mas ainda havíamos de parar mais duas ou três vezes. Os cumes nevados, as quedas de água, a pouca vegetação, aliados ao frio que sentíamos era-nos familiar. A paisagem era semelhante à dos Pirenéus, fazia lembrar os panoramas andorranos, mas numa dimensão que não conhecíamos.
Estrada enrolada, a subir para Furkapass, por vezes com piso manhoso
Á medida que íamos subindo, também ia passando por nós uma quantidade de motos. Porém, estes pareciam vir de perto. Até que chegámos a um local onde estavam paradas muitas motos. Percebemos que se tratava de uma espécie de ”Cabo da Roca” suíço. Estávamos em Furkapass.
Furkapass. Fresquinho, mesmo no Verão.
Era ali que os motociclistas suíços das redondezas se juntavam ao domingo de manhã. A estrada sinuosa mas com bom piso levava quase aos 2200 metros de altitude. Um café, um parque de estacionamento generoso, um lago e diversos picos em redor, tornavam aquele sítio realmente num luxo paisagístico. Mas estava frio. Em pleno Verão, o sítio gelava os ossos. Mesmo com um reforço de roupa, não ficamos ali muito tempo. Lembro-me de estabular uma conversa curta com um suíço que tinha uma turística e seguir depois de termos bebido um café a preços suíços…
A noção com que ficamos na altura – hoje também não é muito diferente – foi a de que os os motociclistas suíços possuíam equipamentos de marca – sobretudo italianos - e utilizavam-nos desde a ponta da bota até à ponta do capacete. Isto numa altura em que em Portugal o pouco equipamento de marca que era comercializado tinha preços astronómicos.
Não admirava que estivesse frio. A neve estava ali à mão...
A parir dali começamos a descer. Ainda fomos obrigados a esperar que um semáforo de obras nos deixasse passar, a nós e ao grupo de motos a que nos juntamos na altura em que já havíamos deixado para trás as escarpas alpinas mais elevadas. E ainda nos surpreendemos por vermos alguns carros, sempre utilitários mas carregados até ao tejadilho, com matrículas de países de leste, salvo erro checos e húngaros.
Embora se falasse na altura da qualidade dos artigos suíços – os canivetes, os relógios, os chocolates – a verdade é que as estradas suíças não eram grande coisa. Sinuosas e com piso por vezes degradado – que vimos em recuperação várias vezes - se não tinham alternativa da auto-estrada, tornavam-se lentas.
Paragem devido a obras. Bem precisavam, as estradas suíças.
Em alguns troços, aproveitamos ter o selo que nos permitia andar nas auto-estradas mas, na maioria do percurso utilizamos as nacionais, já que a rede viária suíça, naquela altura, não dispunha de muitas auto-estradas. Aliás, o acesso a Munique, através da Floresta Negra, também era feito numa “nacional”, com rectas longas e um trânsito imenso onde até pontuavam tractores…

MOSQUITOS ALEMÃES


Foi uma das mais longas etapas da viagem, onde o traçado e o trânsito foram decisivos no percorrer dos mais de quinhentos quilómetros da etapa. Antes de Munique, anoiteceu. Circundamos a capital bávara, mas perdemo-nos algures. Entramos numa estrada ampla entre quintas e, a partir de certo ponto, comecei a notar que a viseira escurecia rapidamente. Até que fui obrigado a parar. Vi que a viseira estava suja, passei-lhe a luva e ainda ficou pior. À luz, a coisa relevou-se. A viseira era um cemitério de mosquitos.
Fachada da catedral.
Limpei a viseira e arrancamos. Daí a pouco, estávamos mesmo perdidos. Parámos, verificamos o mapa, perguntamos o caminho num posto de abastecimento e fomos obrigados a seguir em sentido contrário. Voltar para trás significava… voltar a apanhar os mosquitos. E assim foi. Voltei a ficar com a viseira imprópria para andar à noite. Levantei-a e seguimos durante algum tempo, até que tive de a fechar de novo, uma vez que os mosquitos me batiam na cara como se fossem agulhas.
Daí a pouco, chegávamos ao nosso destino. Só no dia seguinte, ao ver a massa que tinha na viseira, percebi que se tratavam de insectos pequenos, verdes, que se tinham colado à viseira formando uma pasta viscosa. Só mais tarde nos explicaram o fenómeno: a estrada que dava acesso a Freising era ladeada por quintas que tinham animais; os mosquitos que enxameavam a estrada provinham desses animais.

MUNIQUE: UMA AGRADÁVEL SURPRESA



Ficamos alojados em casa de familiares, a cerca de 40 quilómetros de Munique. No primeiro dia, optámos por ir de comboio para a capital bávara. Saímos perto da Marienplatz, uma grande praça que alberga a catedral, a Frauenkirche. Foi nesse edifício, em estilo neogótico, que assistimos à evolução de figuras animadas na fachada ao som de um carrilhão. Antes de almoço, ainda passámos pelo edifício da Câmara Municipal, cuja entrada parece um alpendre prismático. 
Um dos almoços surpreendeu pela ementa dos que estavam à nossa volta. Optamos por comer qualquer coisa numa praça arborizada da cidade onde muita gente havia escolhido um pão cravejado de bocados de sal. Ao lado tinham uma caneca de cerveja. Nós pedimos o mesmo. Pão crivado de sal e cerveja. Enche, mas enjoa. Tal como o olhar do artista que estava perto de nós e que deve gostar de ficar de frente nas fotografias…
À tarde, demos um passeio pelo Englischer Garten, um jardim imenso, maior do que o Central Park nova-iorquino, com mais de 4 quilómetros quadrados, localizado na cidade de Munique. O jardim é enorme e por isso foi lá que decorreu a prova de tiro com arco nos Jogos Olímpicos...
Passámos pela Torre Chinesa com o seu Biergarten e pela casa de chá japonesa. Mas o jardim, para além de outros elementos decorativos e naturais – tem mais de cem pontes e dezenas de quilómetros de passeios - contempla ainda uma parte com estética inglesa, uma cascata e um lago.
O complexo olímpico envolve espaços para muitas modalidades, mas é o estádio que surpreende. Subimos à torre do Estádio Olímpico – cujo topo é (lentamente) rotativo - de onde é possível ver o estádio, a aldeia olímpica e os edifícios da sede da BMW. E mais uns quilómetros de campina em redor.




Aldeia olímpica.
Munique é plana. Não me lembro de efectuar outras subidas que não fossem as passagens superiores. Por tal, mesmo para estrangeiros que não percebam as placas informativas, a orientação por referências é relativamente fácil. A Torre Olímpica é uma delas.
À noite, fomos ver um jogo no Estádio Olímpico, “casa” do Bayern. O peão era em pé. Mas os adeptos não se importam, aguentam. Estava uma temperatura óptima para jogar e o Bayern ganhou. No acesso ao estádio e à saída, não houve engarrafamentos. Parecia que todos tinham vindo de moto… mas realmente muitos vieram foi de transportes públicos.
O Bayern jogou bem e ganhou
No segundo dia, voltamos a Munique e ao centro histórico. Nessa manhã, o percurso era para fazer a pé. Fizemo-lo enquanto a Sabre estava no representante Honda, que ficava na zona urbana,  a mudar o óleo e onde pedi para verificarem o facto de não ter médios. 
Ao fim da manhã fui buscar a moto e o diagnóstico em papel registava face ao problema dos médios, mais ou menos o seguinte: “modelo não vendido na Alemanha. Solução: mudança do comutador”. Nem sequer aventaram a hipótese de procurarem o problema. Percebi que não devia insistir, uma vez que o custo da mão-de-obra não aconselhava...
Baixei o farol e fizemos o resto da viagem em máximos ou em mínimos. Em casa, abri o comutador e verifiquei que o problema era um fio desligado. Soldei-o e resolvi a questão. Podê-lo-ia ter feito na Alemanha, mas ainda tínhamos Dachau como objectivo nesse dia. E não ficava a caminho de casa.
Mesmo assim, ainda demos um passeio pelos arredores, passamos pelo lago de Speichersee, andamos a pé pelas moradias da zona, e regressámos a Munique após o almoço, para depois visitarmos a catedral onde passamos muito tempo.

“NUNCA MAIS!”

E, a meio da tarde, fomos para Dachau, que não fica longe, mas sem mapa detalhado, não foi fácil lá chegar e demoramos mais de meia hora. Por isso, apenas tivemos outra meia hora para visitar o campo, pelo que ficamos apenas pelo exterior, sem termos acesso às barracas, guaritas e a um pequeno museu.
No entanto, o pouco tempo que lá passamos possibilitou perceber a dimensão da catástrofe dos campos de concentração nazis durante a Segunda Guerra. Há poucas barracas e estão quase todas a apoiar o museu. Sabe-se, porém, que pelo campo passaram mais de 200 mil prisioneiros.
O espaço vazio, onde outrora existiram barracas, dá uma ideia da capacidade do campo. Felizmente, a câmara de gás nunca chegou a funcionar. Talvez por isso, ainda se tenham salvo os cerca de 30 mil prisioneiros lá encontrados com vida. Saímos algo constrangidos pelo ambiente, subscrevendo o que estava escrito no muro de entrada, em quatro línguas: "Nunca Mais"!

 ESTREIA NA ÁUSTRIA: SALZBURGO

Deixámos Munique a 24 de Agosto em direcção à fronteira de Walserberg, trocámos dinheiro na fronteira e assistimos a um êxodo desusado de veículos com matrículas de países de leste. Se bem que muitos já conseguissem passar férias na Europa Ocidental, a verdade é que neste ano, o número deve ter aumentado. Provavelmente, antecipavam a Queda do Muro de Berlim que aconteceria poucos meses depois.
De Munique a Salzburgo não é longe. A opção mais rápida era pela auto-estrada gratuita que percorremos devagar até ao lago de Chiemsee onde paramos para descansar, apreciar a paisagem mais carros com matrículas de leste, sobretudo húngaros e checoslovacos.
Chegamos cedo, ainda de manhã. Montamos a tenda num parque de campismo, Salzburg West, pleno de sombras e relva, que ficava próximo da entrada da cidade. Uma entrada curiosa uma vez que se fazia através de um túnel. Do lado do parque de campismo, Salzburgo parecia uma típica aldeia austríaca pequena, baixa, com casas típicas. 
Do outro lado, a cidade parecia estar ainda na época barroca. Aliás, o túnel parecia um portal para uma época diferente... já que, assim que se passava para o outro lado o ambiente mudava. Foi isso que sentimos quando demos com uma fonte decorada com pinturas de cavalos, cuja foto serviu de imagem de topo no artigo da MotoJornal. 
Com efeito, o centro de Salzburgo era Património da Humanidade desde 1996. Percebia-se porquê. A zona estava bem cuidada, algumas fachadas estavam pintadas à mão com motivos diversos, a arquitectura das habitações é semelhante, havia muitos edifícios barrocos, ruas exclusivas para trânsito pedestre.
Surpreendeu-nos a tal fonte com pinturas que pareciam frescos (ver imagem no início do capítulo) e o irrepreensível edifício da ópera que, naquele dia, receberia o depois malogrado maestro Herbert Von Karajan, para um concerto nocturno, para o qual o público comparecia ainda de dia. E, pelo menos uma senhora, em vestido de gala, pedia através de uma cartolina A3, um bilhete para aquele espectáculo...
Ópera
A rua onde se situa a casa onde nasceu Mozart, na Getreidegasse, também rua comercial e muito cosmopolita do centro, não está longe da catedral, cujo terreiro anexo está pleno de artistas de rua, um dos quais pintava quadros de 15X15 com uma rapidez incrível.
Desde o centro ou das margens do rio Salzach, que banha a cidade, o olhar vai para a paisagem das colinas em redor da cidade. A Fortaleza medieval de Hohensalzburg, que se vêm imediatamente na crista da colina a sul é uma das maiores da Europa. À noite estava iluminada e inundava de luz toda a colina.

PARA LUZERNA, ANTES QUE A PONTE ARDA



Saímos de Salzburgo para sul e depois viramos na direcção de Insbruck. Começamos a viagem em bom piso, em zona plana e fomos andando a caminho das montanhas. Com o aparecimento das serranias fomos parando à medida que os cumes se iam erguendo do lado direito.
Parámos para desfrutar da paisagem e para sentirmos o ar cada vez mais puro. Algures perto de Insbruck parámos para almoçar numa esplanada ensolarada, mas onde a publicidade e os avisos estavam todos relacionados com a neve e com o esqui.
Com a aproximação da fronteira, o piso piorou e surgiu também o maior túnel onde já havia entrado. Foram cerca de 14 quilómetros, sob uma quantidade de turbinas para renovação do ar, agora num piso mais decente a furar os Alpes em direcção à Suíça.
Ainda hoje não sei se chegámos a entrar no Liechetenstein. A verdade e que a estrada melhorou bastante. Parámos num posto de abastecimento e julgo que nos disseram que o principado ficava do outro lado do monte. Não me lembro de ter visto matrículas do Liechetenstein.
O Liechetenstein, do outro lado da montanha.
Passamos a fronteira ainda de dia e nem sequer nos lembramos que não costuma ser bem visto tirar fotografias nestes locais. Talvez tenha sido da agitação, uma vez que o sítio estava concorrido e o guarda apenas nos perguntou se tínhamos alguma coisa a declarar…
Fronteira suíça.
Como o tempo estava óptimo fomos fazendo paragens nas áreas de descanso. Voltamos a parar à vista do lago Walen. Depois, dirigimo-nos para o parque de campismo “Lido”, em Luzerna, na margem do lago Wierwaldsatter, a poucos minutos a pé do centro da cidade.
Chegámos tarde, mas ainda a tempo de ver o por do sol a desenhar no horizonte os edifícios da cidade. Na recepção, que tinha um bar anexo, estavam estacionadas duas CBX 750 com matrículas canadianas. Este parque foi aquele em que vimos mais motos e de diversos países.
No dia seguinte, o sol acompanhou a nossa visita à cidade. Andámos pela excelente Kapellbrucke, uma ponte com cerca de 200 metros de comprimento da primeira metade do século XIV, em madeira, coberta e com um traçado que liga as duas margens do lago de forma assimétrica.
A ponte leva a uma fortificação, Torre de Água, do século XIII, situada mais ou menos a meio do lago. Percorremos a ponte antes de ter ardido quase completamente, devido a um incêndio provocado, supõe-se, por um cigarro mal apagado. A ponte só viria ser reconstruída em 1993.
Kapellbrucke
Além de ser em madeira e estar suportada por estacas, a ponte tinha uma profusão de canteiros de flores, quer no interior quer no exterior, uma ou duas guaritas e uma cobertura de telha muito parecida com os telhados portugueses.
O centro histórico de Luzerna é muito simpático, com algumas ruas exclusivas para peões e edifícios com as fachadas pintadas, tal como em Salzburgo. Passámos pela Hirschen Platz, subimos duas ou três colinas desde o centro, observamos demoradamente as muralhas e as respectivas torres, voltámos às margens do lago e ainda parámos para observar os “cacilheiros”.
Escolhemos um restaurante com preços "light", como habitualmente, e não nos demorámos. O centro histórico de Luzerna, um pouco à imagem de Annecy, tinha muitas ruas de trânsito exclusivo a peões, muitas lojas sobretudo de decoração e de produtos de luxo, onde é fácil passar muito tempo a tentar descobrir algo diferente do que mostra a anterior...
Mais tarde, pegámos na moto e andámos pelos arredores da cidade. Voltámos a subir um monte e a ver a cidade desde o topo. Percebiam-se os telhados inclinados e a Torre de Água via-se de qualquer das elevações, bem como a muralha que protege o centro histórico.
Na Suíça, o entardecer traz um fresquinho que se entranha com facilidade no blusão. Por isso, já não fomos ao topo do monte Pilatos. Descemos para o lago a meio da tarde e percorremos lentamente as margens do lago, parando aqui e ali, explorando recanto a recanto. Até que encontrámos um especial, que alguém descobrira antes de nós, para ali criar uma marina privada com garagem para barcos...

Saímos de Luzerna a 28 de Agosto. A manhã estava como a noite do dia anterior, chuvosa. Já retirámos a tenda com a chuva a cair por entre as folhas das árvores que nos protegiam. Não eramos os únicos a preparamos a saída, mas só nós é que tínhamos fatos de chuva vestidos.


A CHOVER, ATÉ LYON


A maioria dos motociclistas que estavam no parque deviam ser europeus, habituados por isso ao clima chuvoso do Verão por terras montanhosas. E talvez não tivessem saído em direcção a França, já que, com o avançar da manhã, a chuva aumentou de intensidade. Apesar dos mapas, em algum ponto do percurso foi preciso pedir ajuda...

Perto de Genève, chovia bem. Quando deixámos a auto-estrada andámos mais devagar na “nacional” mas sobretudo a passar as pequenas localidades suíças e francesas. Tivemos tréguas, já em França, por volta da hora de almoço. Porém, com a proximidade de Lyon a chuva voltou e só nos deixou pouco antes da cidade. A tempestade foi de tal ordem que a chuva trespassou o saco onde transportávamos os sacos–camas e os colchões. Estes ficaram encharcados

. Naquela noite, era impossível acampar. Por tal, o melhor era ficarmos por ali. Lyon é atravessada por dois rios, o Saone e o Rhone, que correm de norte para sul e se juntam a sul da cidade. Fomos seguindo o Rhone, mas daí a pouco estávamos no centro da cidade, meio perdidos. De tal forma que andávamos a passar de ponte em ponte, à procura de um Formule 1.





Diziam-nos que ficava nos arredores. Deixámos o centro e voltámos praticamente ao sítio por onde tínhamos entrado. Mas não estava fácil encontrar o hotel. Aí tivemos ajuda de um simpático jovem casal português emigrante que conheceu a matrícula e nos levou à porta do hotel. Pouco conhecemos de Lyon, para além das pontes....

NA ROMA FRANCESA


  
Lyon não estava no programa. A passagem pela cidade deveu-se apenas à chuvada que apanhámos e que nos molhou sacos-cama e colchões. Por isso, a jornada que nos levaria a Nimes seria dividida em duas etapas, sendo a última muito curta. Em cerca de duas horas chegámos ao parque de campismo “Domaine de la Bastide”. 
O vento soprava forte. De tal maneira que a minha cinta voou assim que a deixei em cima do banco da moto. Arrastou-se durante 20 metros, galgou a cerca do parque e desapareceu num barranco. Mais tarde, o vento também seguiu o caminho da cinta, desapareceu. 
Já na Suíça, a moto “varejava” um bocado na vertical. Eu julgando que se tratava de má distribuição do peso ou da suspensão mal regulada, O efeito, porém, veio a agravar-se nesta etapa. Por isso, fomos ao representante Honda ao fim da manhã. O problema estava na necessidade de desempenar a roda da frente. Fui eu que o fiz, com material e equipamento Honda. Mas, para lá chegar, foi preciso pedir para me fazerem um desenho...
Durante a tarde, fomos vagueando pela chamada “Roma Francesa”. Começamos pelo Coliseu, que data do século I a.C. Nesta altura, parece-me que estava algo degrado, o que era para estranhar, uma vez que no recinto se realizavam vários tipos de espectáculos. 

Tal como o de Arles, o anfiteatro romano está situado praticamente no centro da cidade, numa zona histórica que contempla, entre outros monumentos, o Templo de Diana, os Jardins de la Fontaine, a Maison Carrée, o recinto romano, e que culmina na Torre Magna.
Vista sobre a cidade desde o cimo do coliseu.
Percorremos o anfiteatro de les-a-lés. Andámos escada acima, escada abaixo, fomos ao topo, calcorreamos os corredores. O recinto tem capacidade para mais de 16 mil pessoas e a sua configuração permite a circulação de muitas pessoas simultaneamente por exemplo na entrada / saída de espectáculos.
O legado romano distribui-se em redor do anfiteatro, De um dos lados, no Recinto Romano, destacam-se a Porta Augusta e a Porta Franca, bem como diversas edificações que não resistiram ao tempo, mas de ainda restam vestígios.
Perto, ficam os Jardins de la Fontaine, uma zona de lazer arborizada com uma configuração típica dos jardins franceses do século XVIII, com alamedas, lagos, e muitas árvores. O calor que se fazia sentir obrigou-nos a andar em azimute para a Torre Magna, pelo que vimos pouco do imenso parque.
Com o calor que estava, as sombras fizeram a diferença e levaram-nos à Torre MagnaAqui, protagonizamos um dos episódios da jornada. A torre é um monumento galo-romano, data do século III a.C., depois utilizado pelos romanos na época de Augusto, como posto de observação. Situada no final do parque, no topo de uma elevação, dos seus cerca de 36 metros de altura na época romana, hoje, 32, a vista abrangia toda a cidade e os campos em redor. Nós subimos os muitos degraus que trepavam pela parede interiorMas a escada não tinha guarda, qualquer corrimão. O lado interior estava aberto. Subir, não se revelava difícil, o pior foi descer. Trinta metros a pique pareceu-nos duro. Descemos voltados para a parede, devagar, com os olhos pregados na parede...
No parque, sensivelmente a meio caminho entrada e a torre, encontrámos um edifício romano em obras, Tratava-se do Templo de Diana, um santuário do tempo do imperador Augusto, do qual apenas vimos a fachada, e mal, já que tínhamos o sol de frente. O facto de estar em obras impossibilitou a visita.
Passámos ainda por outro local de interesse histórico, a Maison Carrée, situada em pleno fórum romano, um templo dedicado ao neto e ao filho adoptivo do imperador Augusto, sendo o único templo romano completamente conservado, uma vez que teve uso ininterrupto desde o século XI.
Estava calor. Qualquer ensejo para sentar num café e beber qualquer coisa fresca contrastava com os preços mais elevados que pagámos em França. Não apenas em Nimes, onde havia menos motos e as habitações pareciam mais estragadas, mas todo o sul de França me pareceu mais caro do que o norte.

TOSSA DE MAR: ENTRE A PRAIA E O CASTELO


Dedicamos a manhã à ligação ao Mediterrâneo. Voltámos à auto-estrada, mas ainda percorremos algumas nacionais que, no sul de França tinham muito trânsito, aliás como as da Catalunha. Chegámos ao parque de campismo Turismar, em Tossa de Mar, pouco depois de almoço.   
Sombra, gente simpática e um bom lugar para montar a tenda. Não é preciso mais nada, a não ser… mais espaço na praia. Apesar de a água ter uma temperatura excelentemente quente, só havia lugar na areia para as nossas duas toalhas, uma irrepreensivelmente ao lado da outra.
Mas Tossa não era só praia. Da baía, a vista ia para as colinas em redor revelando alguns sítios interessantes. A sul, dominam o castelo e uma velha igreja em ruínas cujo acesso se fazia trepando a falésia que fecha a praia. Tal como hoje ainda se faz.
Ali perto, o recinto muralhado da vila velha, que dispõe de várias portas e é defendido por outras tantas torres, é um exemplar único medieval, datado do século XIII. A vila velha cresce na colina, com ruas abruptas e estreitas, envolta pela muralha baixa do castelo.
Continuando a trepar, a caminho do farol, ainda subsistem as ruínas da igreja de San Vicente de onde é possível observar toda a baía de Tossa. Só resistiu ao tempo uma parede e parte da abside, mas o panorama desde lá é deslumbrante.
Outro sítio de onde também é possível desfrutar de um panorama ímpar é a Torre d’en Joanàs, a meio caminho entre o farol e a praia. Depois, é percorrer a baía e subir na encosta oposta ao castelo. É outro cenário de pasmar. À noite, a baía ilumina-se, as luzes refletem-se no mar e o castelo resplandece.
Nesta altura, o café ainda custava 110 pesetas / 140 escudos. Hoje, por menos de 500 escudos / 2 euros, não se bebe um café num restaurante decente em Espanha. No restaurante Sol e Mar, em Cascais, com preços médio-altos, no ano de 1989, um café não ia além de 80 escudos...

DA TEMPESTADE CATALÃ À BONANÇA ALENTEJANA


Com o último dia de Agosto a servir-nos de guia, deixámos Tossa sob alguns pingos de chuva que iriam estimular a jornada. Depois, a Catalunha despediu-se de nós com uma chuva forte que nos apanhou já na auto-estrada. A chuva regressou logo após Saragoça, à passagem pela NII onde a estrada acompanha as curvas de nível de todos os montes e outeiros. Fomos obrigados a rodar mais lentamente e o objectivo da jornada, que seria chegar ainda de dia a Madrid, não o conseguimos.
Ficamos por Guadalajara e deixamos o regresso a casa para o dia seguinte que, julgamos, já teria esgotado a chuva. Neste dia, não montámos tenda. Porém, no dia seguinte, não tardou a voltar a chover e atravessámos Madrid sob forte temporal. Só por volta de Talavera de la Reina o sol voltou a aparecer. Desta vez, levou-nos até casa, permitindo-nos parar ao ar livre mais vezes, a última das quais à vista da campina alentejana.
Comemoramos a viagem e o final das férias, com era habitual, num jantar a dois no restaurante Sol e Mar, em Cascais, o tal dos cafés a oitenta escudos. Aqui, uma garrafa de vinho verde corrente custava 3 euros e dois pratos de marisco ficavam-se por menos de 10 euros...

São preços do século passado, já lá vão quase trinta anos…