quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Rituais de JEREZ DE LA FRONTERA


O bilhete de 1987 

Diz-se que o bichinho fica, quando nos pomos a jeito. De moto, porém, a coisa parece mais radical, mais rara, mais exótica. Funciona como qualquer ritual primitivo. É uma espécie de kula(1): “uma vez no kula, sempre no kula”, diz-se nas Trobiand. Aqui, nas motos, as corridas parecem parte de um ciclo ritual. Mas, se o “uma vez nas motos, sempre nas motos” é aceitável, o “uma vez nas corridas, sempre nas corridas” já não é tão linear.

As corridas de motos, as provas nacionais e os grandes prémios, são ritos que fazem parte do ritual das motos. Estivemos lá, durante alguns anos, do Estoril a Paul Ricard, de Jarama à Granja do Marquês, de Jerez a Santo André. Estivemos, no plural, porque eram rituais colectivos, celebrações de amizade, de novidade, de aventura. Sobretudo uma glorificação do risco - do nosso (e dos que estavam em prova) - mercê do endeusamento da mudança, do teste à diferença, da apoteose do nós versus outro sítio. Talvez nem tanto de competição entre os pilotos.
O rito começou cá, mas rapidamente passou a fronteira. Jarama ficava a cerca de 6 horas de viagem. Viagem(ns) que, considerando as estradas, as motos e os custos, não deixavam de ser uma aventura, um risco, uma proeza arriscada. Depois, esse risco foi sendo atenuado pela melhoria de todas aquelas condições.

Durante alguns anos, o autódromo de Jarama, perto de Madrid, foi palco dos despiques espectaculares protagonizados por Cecotto, Hartog, Sheene, Spencer ou Roberts. No tempo em que as “dois tempos” dominavam as pistas do motociclismo. Íamos, já nessa altura, pelo despique dos campeões, mas sobretudo pelo desafio da viagem.

Porém, no início dos anos 80, o autódromo de Jarama já não era uma pista segura para as motos. Por tal, em meados da década, o destino do Grande Prémio passou para terras andaluzas. Foi para os domínios dos Osbornes e dos Domecqs. Já lá haviam corrido espanhóis (e alguns portugueses) num circuito urbano que incluía, salvo erro, o atravessamento de uma linha férrea.
Os espanhóis são adeptos incondicionais do motociclismo. Além disso, tinham conseguido construir um autódromo com condições excelentes. Assim, as corridas do campeonato do mundo de motociclismo em Espanha passaram a ter lugar no novíssimo autódromo de Jerez de la Frontera. Estava situado a uma dezena de quilómetros da cidade andaluza, terra de bom vinho, bom clima, bons petiscos e boa estrada, e ainda de muitos alojamentos a preços acessíveis.

Jerez de la Frontera ficava mais perto do que Jarama, possibilitava várias opções de itinerário, era um sítio novo. Essas novidades permitiram também o surgimento de um novo ambiente em redor do Grande Prémio de Jerez. E não apenas na capital do vinho doce andaluz, mas também nas localidades vizinhas. Assim, além de Jerez, as localidades de Chipiona e Puerto de Santa Maria modificaram-se durante o período das "corridas". 
Ali perto, talvez Cádis nunca tenha beneficiado dessa transformação. Porém, Chipiona, Jerez e o Puerto passaram a gozar do estatuto de lugar de eleição, aventura e transgressão, praticamente impossível de copiar em terras portuguesas. Um ambiente de festa que Madrid e Jarama nunca tinham conseguido. Para além da novidade do circuito, havia agora também um envolvimento mais rural, mais “humano”. Habituadas a um turismo sazonal de praia, também ele contribuiria para um ambiente mais permissível do que o de Madrid implicava.

Nos primeiros anos, defrontaram-se Gardner, Lawson e Doohan, entre outros. Eram despiques que entusiasmavam sobretudo espanhóis e portugueses. Mas também se via por lá franceses, ingleses, italianos e alguns alemães. Tal como em Jarama. Mas a festa era sobretudo dos latinos, com os espanhóis a encherem cada vez mais o autódromo.
Jerez de la Frontera era de onde emanava a animação. Mas Puerto de Santa Maria, em frente da angra de Cádis, era o local mais animado. Depois, Chipiona, já para lá da baía de Cádis, passou a ser também um lugar de extroversão importante. Talvez até o mais genuíno, o mais imponderável, o menos "controlado". Por isso, Chipiona passou a ser para nós um sítio de romaria anual durante alguns anos.

Aliávamos a excitação das corridas à agitação da movida. Juntávamos a festa das rivalidades na pista com a do folclore motociclístico. Jerez, Puerto e Chipiona tinham rituais ímpares. Alugar um quarto em Chipiona, beber um copo de Jerez, degustar atum fumado, "picar" os acepipes estremenhos, ir e vir ao autódromo, fazer a "marginal" de Chipiona a Jerez, passando por Rota. 

Mas o mais castiço era visitar os "curros" e apreciar as proezas dos habilidosos, assistir aos “cavalos”, “burros”, derrapagens e mais que fosse. Muitas vezes, nem sequer se ia aos "curros”. Era mesmo na via pública que os "artistas" actuavam, rodeados de um público disponível para qualquer desempenho que envolvesse duas rodas. Ou seja, era acompanhar um circo onde os temas iam desde as rodas da frente e de trás no ar, motos a andarem de lado, a queimarem pneus (burnouts), a distribuir "rateres". Mas, sobretudo, motos por todo o lado.
Era também por ali que se viam as últimas novidades de vestuário. Mas também do restante equipamento. Era por ali que passavam os últimos modelos, muitas vezes protagonizadas em primeira mão pelos portugueses.

Mas também era o lado kirsch dos capacetes com cornos, das motos sem roda da frente, das bonecas insufláveis à pendura, dos “rateres” (cortes sincopados de corrente em aceleração) até à exaustão do motor, dos “burnouts” (roda traseira a derrapar com a moto parada) em motos que iam, algumas em atrelados, exclusivamente para os fazer.
Íamos pelas provas, mas em grande medida pelo ritual daquele fim de semana. Era uma espécie de romagem que implicava um périplo por Chipiona, Jerez e Puerto de Santa Maria. Todavia, essa peregrinação que, de início juntava o gosto pela competição ao gozo da animação, foi dando lugar apenas ao segundo prazer. 

Parte da nossa satisfação decorria da viagem, do ambiente naquelas três localidades e, cada vez menos, do ambiente e das corridas no autódromo. Era sobretudo nas ruas que as motos e as pessoas (e também os muitos portugueses), se cruzavam todos os anos. Nós fomos lá, durante vários. Eis um pedaço da memória desses tempos que contemplam três anos de corridas. Já lá vão mais de 20. As fotos em cima têm mais. São de 1990.

1991, 11/12 de Maio - TEMPO DE PRAIA


Três motos, quatro amigos. Uma Kawazaki ZX-10, uma CB 500 e uma Honda VF Sabre 750. A CB foi a que mais sofreu, sobretudo a tentar acompanhar alguns trechos do percurso. O trajecto espanhol era propício ao esticar da ZX-10.

Jerez 1991 - Parte 1 - A Caminho de Jerez
Música:  Santana, Let The Childreen Play
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Saímos por Elvas. Parámos no posto de abastecimento que fica à entrada, do lado direito, na rua principal daquela cidade alentejana. Ainda lá estávamos quando chegou um grupo de motociclistas com alguma pressa. Pararam, alguns entraram, mas não ficaram todos no mesmo sítio. Pouco depois, parava uma brigada da BT. 

Como habitualmente, as etapas ligavam postos de abastecimento. Voltámos a parar na bomba de gasolina que ficava no início da auto-estrada que ligava Sevilha a Cádis. Estava quente, com temperaturas semelhantes às da primeira vez em que havíamos assistido ao GP de Jerez. Cem quilómetros mais abaixo, estava mesmo tempo de praia.


Jerez 1991 - Parte 2 - Um Passeio Por Chipiona
Música:  Santana, Let The Childreen Play
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Para nós, Chipiona não era uma estreia. Mesmo assim, andámos pela rua principal, passámos pelo farol, percorremos a marginal, voltamos à avenida, virámos para o “El Gato”, onde havíamos jantado no ano anterior. Mais tarde, fomos por Rota até Puerto de Santa Maria. Bebemos um copo no bar do parque de campismo e demos um passeio pela localidade. Naquela tarde, ainda fomos até ao autódromo tomar-lhe o ambiente.

No dia das corridas fomos obrigados a deixar as motos longe da entrada. Por isso, atravessámos o extenso parque de estacionamento ao longo do habitual mar de motos e enxame de cores. Escolhemos uma bancada de onde víamos quase meio autódromo, embora com uma rede de arame de permeio. Fomos brindados com alguns "cavalos" protagonizados por um casal numa BMW K100. Divertimo-nos com os aficionados espanhóis, sobretudo com uma deliciosa rábula de bolinhos e vinho que envolveu uma fotógrafa, e assistimos à vitória de Michael Doohan nas 500cc.

Jerez 1991 - Parte 3 - Nas Corridas
Música: Santana, Let The Childreen Play
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Abastecemos na primeira área de serviço da auto-estrada após Jerez. Foi uma má opção. Nossa e a de mais de uma centena de motos. Valeu o tempo excelente que nos acompanhou até casa.
Desta vez, optámos por regressar por Vila Real de Santo António. O Guadiana ainda se atravessava apenas de barco. E o pôr do sol indicava-nos o caminho para casa. 

Jerez 1991 - Parte 4 - O Regresso
Música: Santana, Let The Childreen Play
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1993, 1/2 de Maio: DOOOHAN! D’ANTIIIIN!



Saímos cedo. Desta vez, apenas dois. Fizemos uma etapa até à fronteira, entramos na nacional espanhola e parámos perto de Zafra, quando a ZZR 6000 “já tinha bebido 10 litros”, o que indicava não termos andado devagar até ali. Passámos por Zafra, já depois do meio-dia. Mais à frente, fomos ultrapassados por um Kevin Schwantz espanhol que parecia estar em plena pista, joelho no chão e a tirar partido das duas faixas de rodagem, neste ano excelentemente recuperadas e alargadas. Por volta de Dos Palacios, pouco depois de Sevilha, fomos rodando ora devagar, aproveitando para filmar os outros a passar, ora mais rápido fruindo das longas rectas do percurso, ultrapassando cada vez mais motos. Jerez estava próximo.

Ainda parámos para reabastecer e a meio da tarde chegávamos a Chipiona. Demos um passeio rápido pela localidade, com o Manel aos comandos da máquina e parámos para comer uns aperitivos no restaurante Alfonso. Depois, seguimos para o autódromo. A noite, a avenida principal de Chipiona fervilhava de animação e não tardou que alguns aficionados da roda no ar a transformassem numa espécie de “curro”, onde ”cavalos” e “éguas” tomaram conta do espanto de todos, inclusivamente quando uma moto-serra apareceu no passeio “guiada” por outro artista. 

No dia da prova, chegámos tarde ao autódromo. Apesar de existirem muitas bancadas e um enorme "peão" - onde ficámos na estreia dos GP's anos antes - desta vez, assistimos às corridas atrás do arame, com quase tanta gente nas bancadas como no exterior, uma moldura humana impressionante. Também notável, a logística da prova enchia o parque das boxes como se fosse uma praia algarvia no verão.

Uma das bizarrias desta jornada esteve sem dúvida no comentador da prova de 500 cc, um irrepreensível admirador de Michael Dooham, que seguiu a corrida do australiano, que a disputava ao milímetro com Schwantz, gritando em todas as curvas “Mick, Mick, Dooooohan!”. Nas 250cc, o ídolo do comentador de serviço era indubitavelmente Luis D’Antin, pelo que passou a prova a berrar “D’Ántin! D’Antin!”.

O norte-americano acabou por vencer a prova, mas Doohan ganhou o campeonato. Também lá andavam Rainey e Criville. Voltámos pela inevitável Sevilha, onde parámos numa ponte à vista do espaço da Expo 92, naquela altura aparentemente inóspito.

Música: Pat Metheny, Still Life, Letter From Home

1994, 7/8 de Maio: O ÚLTIMO ANO NO AUTÓDROMO

Em 1994 ainda fomos ao autódromo. Mas apenas no sábado. Já não assistimos às provas. Não sei se pela chatice da saída após as corridas – anos antes, havíamos ficado parados à vista do circuito durante uma hora! – se pela comodidade dos ecrãs gigantes, deixámos de assistir in loco às corridas. Nesta altura, Lisboa já estava ligada ao Algarve pela A2, mas a Via do Infante ainda não passava do primeiro troço. Do lado espanhol, a auto-estrada também só começava depois de Huelva, pelo que o itinerário para Jerez também podia passar por Beja, Rosal de La Frontera, Aracena e, só em Sevilha, seguir pela auto-estrada que ligava a Cádis, elegendo praticamente estradas nacionais.

Saímos numa sexta-feira. Neste ano, a opção de Sevilha a Chipiona, incluiu também a estrada nacional. À chegada, escolhemos ficar de novo num quarto alugado como habitualmente à Mari Carmen. Depois, o folclore passou por Chipiona, Jerez, mas sobretudo pelas ruas de Puerto de Santa Maria. Nesta altura, ainda estava montado o “curro” motociclístico. Numa rua fechada ao trânsito, colocavam-se barreiras laterais e deixavam-se entrar os aficionados para fazer “cavalos”, “burros”, derrapagens e, mais o que quisessem fazer, desde que mantivessem a adrenalina em alta aos milhares de espectadores que ladeavam essa alameda de energia, desempenho e loucura. O domingo de manhã foi dedicado às corridas. Uma vez mais, Doohan ganhou, mostrando continuar a perseguir o recorde de Agostini. O tempo esteve sempre irrepreensível.


Música: Ryan Farish - Full sail

O QUE FICA

Uma memória imensa de tempos de maior risco, aventura e agilidade física e mental. Um conjunto de imagens, cheiros, palavras, ruídos e episódios de viagem. Uma mão cheia de ideias e experiências, num tempo em que as responsabilidades familiares não eram exigentes.

Contudo, ao contrário das viagens mais longas de verão, Jarama /Jerez não viciou, talvez pela mesmice do ambiente, pela unanimidade do abandono, pelas alternativas surgidas. As corridas continuaram, mas nós também continuámos a andar de moto. Há um tempo para tudo, parece.


(1) Ritual de troca de bens decorativos nas ilhas Trobriand, Nova Guiné, com forte componente sócio-cultural que, uma vez iniciado, só termina no fim da vida dos participantes.

iLUMINA Cascais



Um Festival de Luz

Foi no início de Setembro, quando o Verão habitualmente se despede. Desta vez, ainda se mantinha agradável. O céu estava limpo e o tempo quente. Excelente para passear e, desta feita, percorrer um itinerário de luz, iluminação e criatividade.
Perto da estação, já uma face tão enigmática como tranquila parecia dar as boas vindas aos utentes da CP. Depois, era seguir as centenas de luzes cerúleas pelas ruas de circulação exclusivamente pedestre e descobrir aqui e ali, as diversas intervenções. Espectáculos de luz, de vídeo, projecções, esculturas luminosas, instalações. Cascais transformava-se numa galeria de arte nocturna, com muitas obras a céu aberto.
Ao longo do trajeto que levava à praia, à cidadela, ao Parque da Liberdade, às ruas interiores de Cascais, via-se de tudo. Figuras humanas produzidas com lâmpadas de néon iluminadas de forma a dar sensação de movimento, um misterioso igloo isolado no meio da areia da praia dos pescadores, projecções com caras de cascalenses, projecções de vídeo com crianças alunos de escolas de Cascais e de países bálticos. O mar, as pessoas e natureza como tema.
O “Lumina - Festival de Luz” foi criado por Nuno Maya e Carole Purnelle, autores das projecções “Arco de Luz”, efectuadas no Terreiro do Paço. O evento envolveu mais de 20 artistas nacionais e internacionais, inspirados pela luz, pelo mar, pelas pessoas, pela natureza e pela luz.


Música: Aito Moreira, Fingers

Novo Espaço dos Coches

Entre o palácio de oitocentos, o casario do início do século XX, um jardim dos anos 40 e o Tejo lendário, vai nascer o novo Museu dos Coches do século XXI. A nova proposta para acolher o espólio que está exposto (e guardado) em vários locais, sendo os mais importantes, o actual museu, no Palácio de Belém, e no palácio de Vila Viçosa.
Ao longe, o olhar reconhece uma quantidade de extensas paredes opacas que ocupam muito espaço e vedam à vista a área habitacional e o rio. De longe, parece um bunker. E se o olhar o condena, a alma rejeita-o de seguida. Para o tolerar é preciso penetrar no âmago do gigante. Aproveitamos o Lisboa Open House para espreitar o espaço por dentro.
Desta feita, entra-se por uma abertura dissimulada nos painéis de chapa branca que circundam a obra. Lá dentro, o olhar tranquiliza-se face à volumetria e divide-se pelo espaço livre e pelo espaço edificado. O primeiro será preferentemente de circulação, o segundo de exposição. Mesmo assim, o colosso impressiona.  
Esperamos num auditório em anfiteatro. O desafio de apetrechamento tinha sido “ser popular”. Simples e de linhas direitas, mostra no formato corrido dos assentos, a popularidade dos bancos verdes dos jardins lisboetas. Daí, partimos à descoberta do que será o novo Museu dos Coches, cuja abertura está prevista para 2014 ou seguinte.
Fomos com Ricardo Bak Gordon, co-arquitecto do projecto desenhado pelo brasileiro Paulo Mendes da Rocha para o espaço das antigas instalações das Oficinas Gerais do Exército., acompanhados por outro pequeno exército onde ponderavam muitos estudantes de arquitectura.
Entre o actual e o novo Museu dos Coches vai uma curta distância. Não mais do que uma esquina. Porém, o enquadramento, a arquitectura e a decoração do interior de ambos é muito diferente. O actual está fixado no picadeiro do palácio de Belém, o novo será alojado sobre uma estrutura suspensa. O primeiro está integrado num edifício de século XVIII, distando mais de dois séculos. As paredes do actual estão preenchidas com quadros de época e o futuro museu deve mostrar imagens projectadas. Talvez o único ponto em comum seja o facto de ambos disporem de uma área expositiva e de uma área suspensa de observação.
O novo museu dos Coches não é apenas um edifício. É um conjunto de espaços, de estruturas e de expectativas. O espaço exterior parece sobretudo destinado á circulação e à recuperação da ligação entre os bairros e a antiga “praia de Belém” uma zona extensa e plana que margina o rio. É possível observar a preocupação com essa relação reconhecendo as escadas e as “entradas” existentes a norte provenientes da zona habitacional.
Mais. É possível perceber que o projecto não se limitou a apresentar um edifício, mas que levou em linha de conta a necessidade de devolver o espaço às pessoas, um espaço de ligação importante entre o rio e as casas que agora propõe entre eles mais um de cultura e conhecimento.
O edifício principal dispõe de seis colunas exteriores gigantescas. São elas que suportam o “chão” da parte expositiva do museu. O museu está suspenso. O impacto é imediato, mesmo considerando os taipais que ainda o protegem. A base do edifício não se vê. É aí que a tal “estrutura em cristal”, parece suportar aquela imensa “caixa” que tem em cima. Realmente, acima, a volumetria destaca-se. E é essa base que lhe irá dar alguma leveza. 
A “estrutura em cristal” não é mais do que um espaço envidraçado, de um e de outro lado do edifício, destinado a áreas de recepção e entrada/saída. Ao nível térreo, dentro do “caixote”, estão as oficinas, a entrada dos coches e parte da logística do museu. No piso de cima está a área expositiva. Acima desta, estendem-se áreas de observação em estilo varanda.  
Estando vazia, a área expositiva parece enorme. As paredes brancas conferem-lhe uma imagem gélida e os espaços de passagem entre salas, com portas em trapézio, acentuam o ambiente laminar. Supõe-se que as paredes sejam preenchidas com projecções adequadas aos objectos expostos, e que a desigualdade geométrica das portas sobressaia de forma harmoniosa.
As janelas (muito rasgadas) nos topos, a leste e a oeste, levam a vista para os parques que envolvem o complexo. A sul há uma varanda que se debruça sobre a zona ribeirinha. Do lado norte, através de um acesso ao exterior fica-se com o olhar muito perto do palácio de Belém e das casas tradicionais da rua da Junqueira. Apesar de relativamente fechado sobre o conteúdo, reconhece-se também uma ligação com os diversos espaços exteriores. 

Por enquanto, o museu é um esqueleto, uma carcaça que apenas guarda luz, sombra, ar e água, mas que já se impõe no espaço que ocupa. Quando se vir livre dos taipais o peso que agora exibe atenuar-se-á. Quando o envolvimento exterior se integrar no espaço vizinho ganhará outra aura. Quando o interior estiver preenchido pelos coches centenários, há que o revisitar. Quanto custou, se era premente, se é a melhor solução para aquele espaço, são algumas interrogações que ficarão sempre associadas à obra. Mas já é habitual haver polémica na orla ribeirinha... 

Música: Atlântico, Morning Waves
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