terça-feira, 4 de dezembro de 2012

D. Fernando e Glória

O nome não engana. É uma homenagem a Fernando II, à rainha Maria da Glória e à santa Senhora da Glória. Foi construída em Goa em meados do século XIX e navegou cerca de uma centena de anos. Foi ainda vítima de um incêndio em 63 e só foi recuperada para a Expo 98. Trata-se da fragata D. Fernando II e Glória.
Está em doca seca na doca nº2 da ex Parry & Son, em Cacilhas, muito próximo do terminal dos Cacilheiros. É grande vista de fora o que, lá dentro, se confirma. É maior do que a Sagres. São mais de oitenta metros de comprimento e doze de largura.
É antiga, mas está bem conservada. Os metais ofuscam, as madeiras brilham. Não há velas à vista, mas os mastros estão impecavelmente arranjados e limpos, aliás como todo o navio. Ouvi falar ou li algures que foi alvo de um prémio de reconstituição museológica ou algo do género.

O primeiro impacto surge quando se percorre o convés com os olhos e depois se confirma não haver qualquer habitáculo ou estrutura de protecção. Peças de artilharia, equipamentos para as limpar e municiar, cabos, palamentas, salva-vidas, galinheiros(!), baldes, dispositivos de marear. Mas nem uma única casita. O convés estava destinado às manobras e condução do navio. Mas também é do convés que se espreita Lisboa, uma das mais bonitas zonas ribeirinhas da capital.
A roda do leme, a bússola e o sino levam para lá os olhos dos visitantes, assim como o enorme cabrestante uma peça cilíndrica com encaixes destinados a enfiar paus depois empurrados para levantamento da âncora.
É preciso descer ao pavimento inferior, a bateria, para verificar que o espaço é praticamente igual ao imediatamente superior, mas está destinado à artilharia, à cozinha, ao transporte de animais vivos(!) e ao quarto do comandante.
Aqui, o espaço restringe-se a cerca de metro e oitenta de altura. É preciso ter em atenção que o tecto deste pavimento ainda é mais baixo em certos sítios. O contraste é notório assim que se acabam de descer os estreitos degraus da escada de madeira.
A artilharia é impressionante sobretudo em quantidade. O ambiente na bateria faz lembrar a ficção dos grandes combates navais, com o recuo das peças no disparo, as explosões nas amuradas, os estilhaços de madeira e ferro por todo o lado. Ali não, que está tudo limpo e bem conservado, desde as peças de artilharia aos talheres da mesa do comandante.
Curioso e contrastante é estar a artilharia, a cozinha e o curral no mesmo pavimento das instalações destinadas ao comandante. Estas últimas não estão acessíveis, mas percebe-se que a reconstituição teve em conta os detalhes da época. É ainda neste pavimento que correm as enormes correntes de manobra do navio, antes suponho embebidas em óleos e panos, tudo a destilar odores nauseabundos.
Se a cozinha fica neste pavimento, é no imediatamente inferior que está a Messe de Oficiais, o refeitório e dormitórios destinados à guarnição e aos passageiros. O espaço pode albergar muita gente. Chegou a transportar mais de seiscentas pessoas, entre  guarnição, passageiros e degradados.  Dispõe no entanto de soluções engenhosas para as mesas e para as camas, suspensas no pavimento superior.
Também é neste piso que se encontra a enfermaria, a farmácia e o gabinete do médico. Ou seja, é possível ir a uma consulta médica quase sem sair da sala de jantar ou do quarto. Todos os locais específicos têm manequins vestidos à época e os instrumentos correspondentes à tarefa respectiva.
No piso inferior fica o porão, como habitualmente destinado ao arrumo da carga, a uma pequena oficina e ao armazenamento da pólvora. Acesso e espaços são exíguos. É curioso pensar que ali sobretudo a iluminação tinha obrigatoriamente de ser feita com candeias. Também é fácil prever o risco que isto acarretava ao navio.
A visita ao domingo de manhã é gratuita. Acompanhamos um guia durante alguns passos e surpreendemos algumas passagens divertidas, como fosse o local destinado às casas de banho [ver na foto em cima], o número invulgar de animais que se levava para bordo, a estória de um castigo ou a disposição dos marinheiros na amurada para ajuda à navegação.
Já assim, o navio fascina e merece uma visita. Pela diferença do espaço onde está implantado, pelo estado de conservação, pela qualidade da reconstrução e reconstituição histórica. Estivesse com as velas enfunadas a navegar no Tejo e seria certamente uma imagem de impacto inesquecível.

Música: Mike Oldfield - Voyager