terça-feira, 1 de março de 2016

COIMBRA Magna



Sisnando Davidiz foi um tipo enigmático, talvez até fora do seu tempo, uma época de compromissos curtos e diversos, mas de horizontes amplos e auspiciosos. O seu contributo enquanto governador de Coimbra em finais do século XI, tornaria a cidade num bastião significativo na formação da nacionalidade.
Torre do Relógio, Universidade de Coimbra
Isto, independentemente da permanência romana, céltica, visigótica e árabe na cidade. Na época árabe, a cidade era conhecida como al-Qulumriyya ou Colimbria, tendo o topónimo evoluído para Coimbra depois da Reconquista. E foi lá que nasceram seis dos réis da primeira dinastia.
Ainda lá está a herança árabe, bem patente no Arco e na Torre da Almedina – que faziam parte da entrada na antiga medina - e na Porta da Barbacã, um reforço da muralha. Percebem-se depois os meandros da antiga medina que tanto abrigam do sol como obrigam a trepar.
Porta da Barbacâ
Por ali, mais do que junto ao Mondego, no Portugal dos Pequenitos ou na Universidade, o ambiente pode levar-nos facilmente para o passado medieval das ruas estreitas, íngremes, para os espaços muralhados, dos arcos, das torres. A rivalidade só acontece com o Mosteiro de Santa Cruz.
Sé Nova
Coimbra tem mais do que ruas estreitas, espaços muralhados, arcos, torres. Não é preciso trepar, basta ficar pelas margens do Mondego para passear à sombra dos chorões, entrar em outra dimensão no Portugal dos Pequenitos, ou estrear o medieval pelo Mosteiro de Santa Clara-a-Velha.
Porta da capela de São Miguel
E tem tradições. O fado de Coimbra é uma delas. A forma peculiar de o cantar, a lírica característica, a melodia exclusiva da guitarra única, fazem do fado de Coimbra um património particular dentro do património imaterial da humanidade que é o fado.
 Sé Velha, vista da Universidade

Coimbra possui por tanto vários patrimónios. Escolhemos quatro. A parte medieval, a Universidade, o museu Machado de Castro (que preenche a maior parte da exposição) e o fado de Coimbra. Comecemos 


I

A PÉ, DA BAIXA ATÉ À ALTA

Antes de começar a trepar a Almedina, é interessante andar pela “Baixa”, pelas ruas estreitas, algumas apenas com trânsito pedestre, onde ainda existe inclusivamente uma habitação do século XVI, hoje um centro de interpretação que promove a história e a cultura da cidade. Aqui, a seguir.
Casa medieval
Ali perto, fica a igreja de São Tiago, do século X reedificada após quase dois séculos, um exemplar excelente da arquitectura românica em Portugal. A cobertura no interior ainda é em madeira, sendo que, dadas as boas condições de preservação ainda é lugar de culto.
Igreja de São Tiago
Continuando é atraente passar pela igreja de Santa Cruz, fundada no início do século XII por quem seria o primeiro rei de Portugal. E é logo ao olhar para a fachada que se dá com um pórtico singular. A igreja nasceu românica e foi renovada no século XVI, de quando data o pórtico.
No interior, destacam-se vários elementos, de entre os quais, a abóbada de nervuras, obra de mestre Boitaca, bem como os túmulos dos primeiros reis de Portugal, Afonso Henriques e seu filho, Sancho I. Outro elemento que se destaca é o órgão profusamente decorado e bem conservado.
Torre da Almedina
Depois, é continuar pela rua de trânsito pedestre – onde é possível ir espreitar a igreja de Santiago, (mais antiga do que Sé) - e entrar pela Porta da Barbacã, passar a Torre da Almedina, trepar a rua do Quebra-Costas, escalar as escadinhas do dito e avançar até à Sé Velha.
Escadas do Quebra Costas

Algumas dezenas de escadas mais acima, já não estão longe, por esta ordem, o museu Machado de Castro e a Sé Nova pela esquerda e a Universidade no topo direito. É fácil dar com a Universidade uma vez que os edifícios do complexo são volumosos e dominam a ”Alta”.
Música: Ananga Ranga, Regresso às Origens


II

DO MUSEU


Deixamos os meandros medievais e ficamos perto da Universidade e do museu Machado de Castro. É para lá que vamos. Fazemos uma pausa à entrada, ambientamo-nos à atmosfera circundante – com a Universidade de um lado, a Sé Nova de outro, a Sé Velha ainda noutro - e entramos no museu pelo pátio do antigo Paço Episcopal. 
Da varanda, a vista é excelente sobre os telhados mais próximos, sobre a Sé Velha, a Universidade, e ainda sobre a “baixa”, Mondego incluído. Não admira que o Fórum romano tivesse sido erigido ali, tal o amplo horizonte que se abarca. Só a universidade está num plano mais elevado.
Antes ou depois da visita, é imprescindível olhar sobre Coimbra. Nós fizemo-lo nas duas ocasiões, desde o pátio do museu e desde uma das varandas da universidade do lado poente. Entramos lentamente na direcção do museu mas o olhar vai de imediato para a varanda colunada que domina o pátio. A vista eclesiástica tinha bom gosto, naquele tempo.
O museu vai além da clássica organização de colecções, embora estas lá estejam, sejam excelentes e constituam uma parte significativa do espólio. O superlativo vai para a arqueologia que faz parte integrantes do edifício. Mas está lá a escultura com exemplares admiráveis de cariz religioso em barro, a ourivesaria e a joalharia com peças magníficas, a pintura e o desenho rivalizam-se e muitas peças de mobiliário fundem-se com a história portuguesa.

CRIPTOPÓRTICO – As Árulas Funerárias

Começamos por baixo. Após a recepção, descemos dois andares e entramos em outro tempo, no Criptopórtico do Fórum romano de Aeminium (Coimbra). São dois pisos de galerias constituídos por um enfiamento de celas de dimensões diferentes com portas de acesso de distintos tamanhos.
O criptopórtico sustentava o templo que se encontrava dois andares acima do solo. Tratava-se de uma construção que ao mesmo tempo que albergava diversas dependências sustinha o fórum, a praça pública onde se discutiam os principais assuntos políticos, económicos e religiosos da cidade.
No extremo sul do criptopórtico estende-se um grande esgoto, sendo visitável uma câmara de manutenção, utilizado inclusivamente até ao século passado. A água corrente também foi alvo de encanamento no subsolo na época romana que corria para um fontanário público. Ainda no interior do criptopórtico e em posições de destaque encontramos alguns elementos arqueológicos que nos dão conta, por exemplo, do quotidiano da estética, da relação com a morte ou da imponência do poder.
A cabeça de Lívia – intitulada Retrato de Lívia - que se supõe ser uma figuração da mulher do imperador Augusto, ou a ara funerária de Aurelio Rufino, pertencente às famílias ricas da cidade, são dois exemplos dessa representatividade.
O espaço arqueológico encerra algumas peças desde o período pré-histórico até aos finais do século XVI, mas é no interior do criptopórtico que se encontram os melhores exemplares de lápides sepulcrais antes mencionadas em espaço que esteve em utilização durante quase vinte séculos.

ESCULTURA – A Última Ceia

A escultura é uma das colecções mais ricas e com maior número de peças expostas. São principalmente símbolos e imagens, sendo estas últimas sobretudo de cariz religioso, e abrangem um período de cerca de sete séculos, desde o século XII ao século XVIII.
Um dos conjuntos escultóricos mais emblemáticos (e também mais notórios) é o que representa a “Última Ceia” cujos protagonistas – Jesus Cristo e os apóstolos – são modelados com um realismo incrível sobretudo devido à expressividade conseguida. Muitas já não estão completas…
Outra escultura de relevo é a do Cavaleiro Medieval, ícone da espiritualidade e da importância militar, que representa Domingos Joanes, senhor de Touriz, a quem foi outorgada pelo primeiro rei de Portugal a localidade de Esgueira. O seu túmulo na Capela de Ferreiros (Oliveira do Hospital) é considerado um dos mais importantes espaços funerários góticos portugueses.
Cavaleiro Medieval, Domingos Joanes
Os exemplares mais antigos são esculturas decorativas que ornamentavam as igrejas e os edifícios monásticos. Afastada da arquitectura, a escultura vai acolitar-se nas arcas funerárias, nos retábulos, nos altares, nos capitéis, na representação de santos e das figuras mais importantes do catolicismo.

O acervo escultórico é capaz de ser dos mais ricos e numerosos da exposição, mas também dos mais notórios, parecendo estar presente na maioria das peças expostas. Uma das figuras esculpidas do período de ouro da escultura portuguesa, e ícone da época barroca, é a de S. Francisco, de autor desconhecido.

OUTROS ACERVOS

O espaço do sagrado volta influenciar as obras de ourivesaria e joalharia, expostas num ambiente mais intimista, destacando-se os relicários, as cruzes e as custódias, sendo algumas peças do século XII, mas a maioria datada do século XVI.


A pintura abrange os séculos XV e XVI, enquanto o mobiliário contempla os séculos XVI a XVIII. O desenho é praticamente todo originário do século XVIII, assim como quase toda a cerâmica.
Alguns azulejos, aliás um conjunto de mais de duas dezenas, e que representam vários temas de ensino, faziam parte dos materiais de ensino dos jesuítas do antigo Colégio de Jesus, depois entregue pela reforma pombalina à Universidade.


A IDEIA QUE FICA

O MNMC é um misto de museu de arqueologia, com ênfase nos achados da necrópole do antigo Fórum, e de Arte Antiga, expondo sobretudo arte sacra. Relevante é também, por um lado, o espaço de exposição que contempla o edifício (incluindo o Criptopórtico romano) e as dimensões das salas dos pisos de exposição.
Alguns espaços dispõem de dimensões muito generosas, que permitem expor objectos – em alguns casos, fragmentos de arcaria ou partes de fachadas – que de outro modo não poderiam estar em instalações de reduzidas dimensões.
Universidade, vista da varanda do museu Machado de Castro
Podem ser quase duas horas de um périplo por cerca de duas centenas de séculos. O espaço cativa e os objectos dominam. A visita guiada é sugestiva, com conteúdos necessários e suficientes, os guias são conhecedores e empáticos.


Música: Tantra, Mistérios e Maravilhas


III

UNIVERSITAS


A Universidade de Coimbra é a mais antiga de Portugal e uma das mais antigas do mundo que ainda lecciona. A chegada à Universidade, à zona mais antiga do complexo, faz-se pela Porta Férrea, da terceira década do século XVII, construída sob o edifício que dá acesso ao extenso átrio do antigo Paço Real da Alcáçova, depois Paço das Escolas.
O núcleo histórico da Universidade, o Paço das Escolas, remonta ao reinado de Afonso Henriques e é actualmente Património Mundial da UNESCO. Mais antiga é a Alcáçova que data de finais do século X, mandada erigir pelo célebre Almançor, governador do antigo reino Al-Andaluz.
Na fachada principal do antigo paço destaca-se a Via latina, uma extensa varanda com um frontão central ladeado por uma colunata neoclássica, lugar típico para plasmar qualquer grupo de turistas que se preze. Na imagem, um insuspeito Clube de motociclistas…
Do lado esquerdo da fachada ergue-se uma torre, a Torre da Universidade, cujo relógio está associado ao quotidiano lectivo ao marcar o ritmo das aulas, ou seja, a “empurrar” os alunos para as aulas. Daí o seu sobrenome de “cabra”.
Outro edifício que domina o átrio da Universidade é a capela de São Miguel. Trata-se de uma construção da segunda metade do século XI renovada no século XVI e cujo portal manuelino também data dessa época. Ainda hoje está aberta a visitas e ao culto, destacando-se um órgão imponente do século XVIII.
Capela se São Miguel
Do mesmo século data a Biblioteca Joanina, uma joia do barroco cuja arquitectura relembra uma capela, contando inclusivamente com uma pequena abside onde domina o retrato do patrono, João V. Tal como outra biblioteca que se preze também ela dispõe de “condóminos nocturnos” encarregues de preservar os livros de insectos.
Biblioteca Joanina
Trata-se de um espaço utilizado ainda como biblioteca ou lugar para manifestações culturais. Fascina sobretudo pela altura do “pé direito” e pelos cerca de 40 mil volumes que alberga no piso principal ou piso nobre (tem mais dois pisos inferiores).
Outro lugar curioso, a prisão académica, está relacionado com a autonomia da Universidade e, por esse facto, dispor de juiz, intitulado o Magnífico Reitor, uma guarda própria e uma prisão para os que não cumpriam o código judicial da instituição, intitulado “foro privado”.
O edifício principal, ou seja, o do antigo Paço Real, é o mais nobre e o que alberga três grandes salas profusamente decoradas. Foi neste paço que teve lugar a reunião da Cortes de 1385 que aclamaram o Mestre João de Aviz como rei de Portugal, cerimónia que decorreu na Sala dos Grandes Actos.
Hoje é sala principal da universidade, também conhecida por Salas dos Capelos – capelo, é como se denomina a capa nobre usada pelos doutorados acreditados - lugar onde acontecem as cerimónias académicas de maior relevo, nomeadamente as provas de doutoramento.
Sala dos Capelos
Também fazem parte do edifício principal, os antigos aposentos do Rei onde ainda tiveram lugar provas de doutoramento, a chamada Sala do Exame Privado, bem como a Sala das Armas, onde estão guardadas as armas da Guarda Real Académica, que apenas reaparece em cerimónias cruciais do ano académico.


Música: Balada de Coimbra, Carlos Paredes


IV

FADO DE COIMBRA


Se há especificidades culturais que podemos apelidar portuguesas, o fado de Coimbra é uma delas. Com ele, “aprende-se a dizer saudade”, a reconhecer as 'Coimbras' do Choupal, da Lapa, dos Doutores, da Sé Velha, a identificar os “amores”, a “despedida”, os “sofrimentos”.
“Balada da Despedida”, “Coimbra é uma Lição” ou “Do Choupal Até à Lapa” são títulos sobejamente conhecidos que associam Coimbra à Universidade, que juntam a cidade aos estudantes, mas que casam sobretudo a poesia ao som das guitarras portuguesas, com a voz e a entoação particular dos fadistas.
E se o fado, Património Imaterial da Humanidade, é uma das nossas particularidades culturais universalmente reconhecidas, o fado de Coimbra é certamente uma peculiaridade dentro do fado, caracterizado por especificidades como o género do cantor, só há homens a cantar, e pela etiqueta do fadista, vestindo capa e batina de cor preta, além das sonoridades diferentes dos instrumentos musicais e vocais.
Memoráveis são as serenatas que têm lugar à frente da Sé Velha, momentos em que são exaltadas a vida de estudante e a da cidade, através de baladas cuja lírica contempla líricas de importantes poetas portugueses  e intérpretes de nomeada, como  sejam, Fernando Machado Soares, Manuel Alegre, Adriano Correia de Oliveira, Armando Góis, Luís Cília, José Afonso, entre muitos outros.