sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Pedestre nas Linhas de Torres

Inscrevemo-nos, mas com pouca esperança de podermos ir.
Mas fomos. À última hora.
Não era exigente, dificuldade média diziam.
Não assustava, tal como não assustou mais de uma centena de passeantes.
Mas era uma incógnita.
Não tanto assim, apesar de tudo.
Era uma organização do município do Sobral de Monte Agraço
 e a moldura humana ia desde os 8 aos 78, pelo que não devia ser difícil.
A proposta era percorrer parte de um grande troço,
aliás Grande Rota das Linhas de Torres [GR30],
partindo do Núcleo de Interpretação e passando pelo Forte do Alqueidão.
A Casa de Pessoal da RTP associou-se ao evento e aí fomos nós.
A ideia era pisarmos alguns dos trilhos por onde andaram as tropas anglo-lusas e napoleónicas nos idos iniciais do século XIX.
Esta noite, também teríamos a vantagem de estar lua cheia, pelo que a escuridão esperada se atenuou com um luar em que em muitos sítios nem exigia a luz da lanterna.
Por outro lado a noite estava amena,
viam-se alguns pirilampos certas partes do caminho tinham luz.
Outras estavam completamente às escuras e nem o luar nos valia.
Daí talvez se ver tão pouco as fortificações.
Assim, além do "forte" virtual
- onde nos olhava um Wellington com cara de selo de correio -
apenas se notava parte das "linhas", mercê de reconstruções.
Estavamos no forte do Alqueidão.
Mas não consegui sequer se tinham alguma informação histórica
ou estavam simplesmente identificadas.
Percorremos alguns trilhos de calçada militar
- um deles parecia ainda "via romana" -
onde era visíveis o gasto das pedras provocado pela passagens de rodados e dos militares (e agora dos milhares de passeantes recentes).
Estes trilhos parecem estar bem indicados, embora um dos desvios quase tenhamos falhado, não fosse ter uma sinaleira...
Câmara mostrou-se boa organizadora e mobilizadora.
Não havia guias, mas estavam sinaleiros/as nos cruzamentos ou nas zonas mais dúbias sempre que se tornava necessário.
A noite mantinha-se clara. O céu estava limpo e a lua cheia.
Raramente era preciso usar mais do que uma lanterna de leds. 
Foi uma delas que nos confirmou existirem áreas vedadas
para alimentação de caça.
E lá estavam os cercados, em pleno campo,
reabastecidos periodicamente pelos caçadores.
Pareceu-me que  zonna de caça estava muito perto da zona de passeio.
Mas, como era de noite, a noção de espçao fica curta...
Estamos numa zona rural.
Percorremos alguns trilhos a cerca de dois quilómetros do Sobral,
mas também me pareceu que a partida ficava a quase dez.
Porém, para as duas horas que demorámos,
provavelmente os oito kms que ouvi a alguém,
deviam corresponder à distância percorrida. 
A proximidade urbana também se manifesta,
não só quando atravessamos uma zona residencial,
assim como, ainda no campo,
deparamos com despejos de materiais de construção.
Foi mais ou menos na zona onde nos cruzamos
com um grupo de ciclistas de todo-o-terreno.
Mais à frente, depois de mais um indício de que no campo
 também é preciso substituir a louça de casa de banho,
demos com um grupo parado junto de arbustos,
inclinado sobre uma família de cachorros que não deviam ter ainda duas semanas.
Ao longo do caminho, fomos fotografando o que aparecia.
Como nunca o havia feito, optei por captar sobretudo árvores,
arbustos e plantas que cresciam junto do trilho.
Algumas, só o flash as denunciava.
Outras manifestavam-se frequentemente por arranhões mais ou menos viris.
Ao longo do caminho: uma exploração pecuária, luzes longínquas,
um moinho abandonado, alguns metros sobre tijolos desfeitos,
alguns regos a denunciar tractores,
cheiro a terra misturado com odores de plantas, algum pó.
Muitos grilos e ruídos de passos em solo duro.
A parte final leva-nos da parte urbana ate ao local de partida,
através de uma subida valente em terra batida,
que passa junto dos moínhos eólicos que dominam as zonas mais elevadas.
PIso regular, mas íngreme.
Lá em cima parecia estar mais claro.
Finalmente, manifestava-se a lua cheia.
Acabámos com uma ceia simples servida pela organização,
num cenário oitocentista pacífico, ameno e saudável,
onde não faltavam soldados uniformizados a cavalo
tendas de campanha, armas e demais utensílios da época.

Música: Chi a Paura della Notte, Premiatta Forneria Marconi

A Era dos Palácios I - QUELUZ


I
O INTERIOR E AOS JARDINS
O Palácio de Queluz está associado sobretudo ao lúdico. Está ligado às festas religiosas, aos aniversários reais, á música, aos bailes, aos espectáculos equestres, de fogo-de-artifício ou de combates de touros. Esse feérico, cuja época áurea ocorreu durante o terceiro quintal do século XVIII, tinha na Quinta de Queluz – designação inicial - o seu lugar de eleição, longe da capital, num ambiente íntimo, requintado, romântico.
Embora todas estas actividades tivessem um carácter transitório, eram abrangentes e relacionavam-se, umas mais do que outras, com o renovar de ciclos e com a celebração de momentos importantes da vida social e natural, numa clara articulação entre a natureza e a cultura. O palácio e os jardins mostram ainda hoje essa relação.
Tal como outras artes daquele tempo, como seja o caso da escultura, também a música - que teve um papel importante nas jornadas de ócio do palácio - foi influenciada por temas da mitologia clássica. Todavia, enquanto a reprodução da música dessa época tem de ser executada, a decoração, a arquitectura e a estatuária, estão lá, permanentemente, duradoras, charneiras permanentes entre a natureza e a cultura.

INTERIOR

No interior, o ambiente farto e pesado pode sugerir uma sensação de encarceramento. Por causa daquele sufoco de dourados, daquela pressão de manchas enormes da mesma cor, da complicação dos rococós, das telas sombrias, dos volumosos lustres, de tantos detalhes decorativos.
Algumas peças são curiosas, de outras percebe-se-lhes imediatamente a proveniência, outras ainda têm um excelente trabalho artístico, outras mais fazem parte de colecções raras. E falta bastante do que o palácio encerrava nos finais do século XVIII, muitas levadas pelos franceses, quer para outros palácios quer para França, quando das invasões no primeiro quartel do século XIX.
Apesar da altura dos tectos, apesar da existência de muitas linhas verticais, das dimensões generosas das salas, de algumas cores darem sensações de leveza, as outras cores, texturas, brilhos e o volume dos elementos decorativos, contribuem para aquele ‘efeito de estufa imagético’ que se estende desde a entrada, passa pela zona de quartos, vai da Sala dos Espelhos, à Sala dos Embaixadores e continua para até ao outro extremo do palácio.
Há toda uma tensão entre a talha dourada e os dragões, entre as representações do sol e da fé, alegorias à música, elementos decorativos representativos da vegetação africana, alegorias, temas campestres. Mesmo nas áreas de maior dimensão, destinadas a acolher muitas pessoas, o peso do interior esmaga. Embora, também seja brilhante, sumptuoso, coerente, rico. Porém, muito preenchido e policromado, quase angustiante. Pode-se sucumbir devagarinho sob aquela carga ornamental…
Os motivos decorativos baseados nos padrões clássicos greco-latinos e estilizados para modelos barrocos – folhas, ramos, bagas, grinaldas de flores, colunas com capitéis, esfinges, florões, palmas, talhas douradas, mármores – multiplicam-se pelas paredes e pelo tecto. Depois, os espelhos ampliam esse ambiente, num fulgor excessivo de contrastes, dramatizações e realismo.
No entanto, essa tensão atenua-se pelo facto do interior parecer estar virado para o exterior. Porque, afinal, a profusão de portas e janelas altas proporcionam um acesso rápido ao exterior, aos jardins. Interior e exterior misturam-se facilmente, fundindo os motivos decorativos íntimos com o ambiente natural exterior do palácio, mediados sobretudo por um conjunto de elementos escultóricos.
No final dos dias festivos de Verão, os convivas que aí passeavam deparavam com um extraordinário ambiente exterior: um panorama amplo, misto de lagos, fontes, estátuas, canteiros e vasos floridos, ante uma cintura de árvores altas. Uma paisagem desafogada sobre um conjunto de elementos que encerram, além de um ambiente natural agradável e de um ambiente edificado magnífico, um universo simbólico estimulante. 

DIVINDADES

A criação de deuses é uma originalidade humana, capaz de representar a condição humana em toda a linha. Porém, ao contrário da natureza humana, os deuses atingem um nível ímpar, um ‘status’ de perfeição. É esse estatuto que a humanidade persegue, um imaginário que identifica a nossa singularidade de espécie.
Muitos séculos depois de o homem inventar a divindade, as cidades italianas “renasciam” com criações artísticas que “renovavam” o propósito de copiar o homem, de imitar Deus. Uma das formas de nos aproximarmos de Deus é consagrar os homens através da arte. Esse “renascimento” influenciou a arte europeia da altura em geral e Portugal em particular.
Deus é uma das criações mais recentes do Homem. Antes de Deus, o Homem concebeu os Deuses. Uma das dimensões que aproxima os homens dos deuses é a mitologia. A história mitológica é a explicação arcaica e primeira da vida, que antecede a religião, mistura homens e deuses, natureza e cultura.
Ao divino estão associadas imagens de perfeição. O detalhe físico, sobretudo, aproximava o homem da divindade. Os jardins estão cheios de alusões aos deuses da antiguidade clássica. É crível que os convivas se sentissem deuses entre deuses.

ESTATUÁRIA

Uma das particularidades da arte italiana da Renascença foi a profusão da estatuária, influenciada sobremaneira pela arte greco-romana. Antes, o classicismo greco-romano já tinha reproduzido os Deuses à imagem humana. A Renascença voltou a insistir nessa representação.
O jardim do palácio, onde a estatuária ocupa um espaço de relevo foi, ainda que tardio, herdeiro dessa inspiração, que se evidencia no Jardim de Neptuno, através das peças elaboradas em chumbo pelo inglês John Cheere.
É fácil imaginar que esse ambiente também tenha influenciado a corte portuguesa e os convivas do palácio. Afinal, para além da componente artística da estatuária, há elementos de celebração e de mimetismo que também ali estão presentes. A representação dos heróis mitológicos, além de os festejarem, também perenizam a extrema proximidade entre eles e os protagonistas daquele espaço.

RELAÇÃO INTERIOR/EXTERIOR

O palácio “abre” para o(s) jardim(ns). São as inúmeras portas e janelas que fazem a ligação entre o interior “pesado” e o exterior “ligeiro”. São essas numerosas aberturas que comunicam entre o interior extremamente decorado, excessivamente preenchido, e os amplos espaços exteriores.
É essa quantidade de charneiras que possibilitam a passagem entre o ambiente interior, fechado, cerimonioso e complexo dos salões de festas, das salas de música, dos aposentos de apoio, das salas de recepção, onde o convívio é mais directo e vigiado, e o espaço exterior, aberto, (mais) natural, extenso e simples, onde a convivência é mais informal e pública.
Ao sair de um ambiente essencialmente cultural, era preciso assegurar que do outro lado, nos jardins, natureza e cultura se associassem. E essa intenção foi garantida. A natureza está presente na água dos lagos e do rio, nas flores dos canteiros, nos arbustos que acompanham as avenidas, nas árvores que dominam alguns espaços. A cultura está sobretudo no estilo arquitectónico, nas fachadas, na estatuária e em muito do ela representa.
A pegada de época - o renovar do classicismo, o retorno às origens - também está presente nos jardins. Volta a mitologia e regressam os deuses. Mas não é apenas Pégaso, Neptuno, Vénus e Adónis, Diana e Apolo que ali estão representados. O aspecto religioso cristão, com Abel e Caín, no lago do Plátanos, também lá está.
Por outro lado, a natureza que envolve e participa nos jardins, também foi reforçada. As estátuas que representam a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno, as estações do ano como garantes da renovação, ocupam posições de igual para igual com as congéneres mitológicas.
O belo, atribuído às cores, às formas, aos objectos, é reconhecido através da sua própria representação. É essa representação que entrega um sentido para as coisas e para as pessoas. É na articulação da natureza e da cultura que esse sentido se baseia.
Como por exemplo: castanheiros, ulmeiros, buxos e murtas, rodeiam a Fama Heroica montando Pégaso; a água envolve Neptuno; Eneias e Anquises (de Troia) estão entre plátanos; a renovação das estações do ano surge ligada a Vertumno e Pomona.
Há uma celebração permanente da vida, com a presença simbolizada da natureza (árvores, arbustos, água, representações em pedra, mármore, etc) e da cultura (história, religião e mitos). Percebe-se neste cenário que a natureza e a cultura se misturam constantemente, entre as estátuas e os lagos, as flores e os vasos, a água e a escultura.
O século XXI português, herdeiro da modernidade, do expressionismo, do cubismo, do abstracionismo e de mais outros tantos ismos, logias e êuticas, continua a dispor da possibilidade de conviver com reminiscências clássicas transpostas para o século XVIII. Talvez hoje, como há mais de vinte ou há mais de dois séculos, o homem ainda continue a combinar a natureza e a cultura, e prossiga a representar através da arte a vontade de imitar os deuses, no sentido de se promover e reproduzir.

II
A RECONSTITUIÇÃO DA FESTA NO PALÁCIO DE QUELUZ NOS FINAIS DO SÉCULO XVII.

Por vezes, para perceber a diferença, basta ir, olhar e ver. Algumas diferenças percebem-se de imediato, sem teorias ou intermediários. Chega olhar e comparar. A distinção é clara. As diferenças soltam-se rapidamente. E antes que se percam nessa desigualdade, nós organizamo-las. No tempo, no espaço, nos modos, na estética.
Quando estamos no Palácio de Queluz é o que acontece. Percebemos-lhe imediatamente a beleza. Depois, detalhamos. As cores, as formas, as texturas, as dimensões, a arquitectura, tudo o que o distingue de outras edificações surge de imediato. Procuram-se os pormenores da diferença, habitualmente os mais agradáveis, - os menos polémicos - e reforçamo-los sem hesitar.
Depois, vem o espaço e o tempo, na senda da habitual mescla de primitividade que nos torna humanos. Do círculo do espaço, surge-nos o grandioso, o rico, o brilhante, o amplo, o diversamente opulento. Do complexo do tempo surge sobretudo o estilo, o modo.
Porque é de um tempo em que o tempo era outro, um tempo em que se fazia e pensava de outra maneira. Uma era em que os modos de saudar, comer, dormir, festejar, ensinar, dançar, conviver, era outros. Uma época em que se vivia de outra maneira.
Foi a representação de essa outra maneira de viver que acompanhámos em pequenos quadros vivos interpretados por actores. Aproveitámos a iniciativa do Instituto Nacional de Museus, “Noite dos Museus”, que também engloba outros palácios tutelados, e fomos para a fila.
O palácio de Queluz abriu as portas – por sinal, não a habitual porta da bilheteira, mas antes o portão fronteiro à estátua da rainha Maria II -, “convidando o povo a entrar numa festa de nobres”. Estava muita gente, de todas as idades, provavelmente também por serem tão raros estes eventos.
Após meia hora de espera, fomos recebidos pela criadagem na sala dos embaixadores. É uma dependência ampla e rica onde dominam dois espaços, um em cada topo da sala, um dedicado ao rei, outro destinado aos embaixadores.
Aí fomos elucidados sobre o que se iria passar naquela noite de festa. Os preparativos estavam a ser ultimados pelos restantes criados, por professores, camareiras, cantores, músicos, dançarinas. Da área dos embaixadores, passamos para uma sala onde estavam representadas algumas das actividades culturais da época: as mulheres dedicavam-se aos lavoures e os homens à poesia.
Mais à frente, foi a música e o canto a preencher mais uma das salas do palácio. Ao longo do trajecto, diferentes anfitriões iam complementando a visita com alguns aspectos históricos ou dando explicações sobre certos objectos expostos.
A seguir, era um professor que ensinava geografia e história os seus alunos. Depois, era a vez dos músicos que tocavam na sala da música. Logo após, no salão de jantar, as criadas andavam num frenesim sob as ordens de uma governanta, para poderem servir a refeição a horas.
Quem andava ligeiramente aflita com os preparativos da festa era uma baronesa (ou coisa que o valha), perguntando quem eramos e porque e o andavamos ali a fazer. Estávamos na antecâmara da festa propriamente dita. Quando passámos para a sala dos espelhos, esperava-nos um mestre-de-cerimónias e uma bailarina e a sua acompanhante. Vimo-la dançar uma dança tradicional de época.
Depois, o mestre-de-cerimónias desejou-nos uma boa farra. Embora o rei não tenha aparecido até aquela altura, foi como se estivéssemos a sair de um outro tempo, de uma outra era. Ou seja, como diria o poeta: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Todo o mundo é composto de mudança”.
É essa mudança que orienta o devir. Aqui, todavia, é o passado que se vai revelando, que nos mostra outro presente, um presente que vai ficando cada vez mais longe do nosso. Um presente que tem muito tempo, mais de duzentos anos. 

Música: Epic Music, Carved From Fire