quinta-feira, 31 de maio de 2012

Marrocos 2012 - Dos Desfiladeiros ao Deserto - Parte 2




"O deserto não tem fronteiras", in Tuareg, Alberto Vazquez-Figueroa.

Não tem. Não precisa. O ambiente, por si só, já marca a diferença. E essa diferença só se nota quando deixa de haver fronteiras, quando deixa de haver referências. Mesmo quando as há, por mais marcantes que sejam, são sempre transitórias. Como a vida, qualquer vida. No deserto, não há grande diferença entre a ficção de Vazquez-Figueroa e a realidade. É experimentar.

Na Parte I, o destaque foi para os desfiladeiros. Na Parte II, o realce vai para o deserto. Mas nem só. A montanha também se revelou protagonista, aquela que, ao contrário do deserto, nos faz gelar cada vez que por lá passamos. Mas, a anteceder o relato cronológico, um pequeno resumo das aventuras, das novidades e da arte.

Começo pela aventura da
AUTONOMIA
Convergimos para Tarifa, desde vários pontos de partida. Uns arrancaram no dia anterior, outros na madrugada de quarta–feira. Uns rodaram em grupo, outros sozinhos. Total liberdade de organizar o primeiro dia de viagem portanto, desde que todos cumprissem o horário de chegada ao porto espanhol que estava aprazado para as 18:30. Ninguém chegou atrasado.
Zona de JEREZ. Com 4 motos, até Tarifa.
Andámos por
PISOS MANHOSOS

Aventura foi sobretudo meter as Pans no desfiladeiro do Todra e no albergue do Erg Chebbi. No Todra, o piso era arriscado de mau, com pontes desniveladas, buracos, pedra e areia na estrada. E mais, também a terra e o cascalho que adornavam invariavelmente as curvas. Podendo, os marroquinos “cortam” as curvas para a direita e fazem saltar para a estrada todos os detritos da berma. E os buracos também não perdoam. Não aqui, mas eu ainda fui obrigado a parar por duas ou três vezes, para voltar a fixar os espelhos, que pareciam borboletas ao vento cada vez que não falhava um buraco mais impetuoso.
Bermas baixas, asfalto quebrado.
Fomos
EM TERRA BATIDA ATÉ AO ALBERGUE
Já o caminho para o albergue na orla do deserto incluía uma incursão de cerca de um quilómetro em terra batida, com alguma areia e muito pó. Nada que não tivéssemos experimentado já, em pacotes mais tímidos, em Ouarzate, no Todra ou nas obras das ruas de Rissani. Felizmente, arrancámos em pequenos grupos, como convém, e não houve surpresas. Pelo menos, até chover. Depois, uma fina camada de lama passou a cobrir a cor das Pans. Para mim, foi também recordar a primeira arremetida ao Erg Chebbi, quando há 7 anos, à boleia dos guias que levavam um carro, chegámos a um albergue que ficava, tal como este último, exctamente na beira da areia. Só que, dessa vez, fizemos 6 quilómetros para lá, á noite, e outros tantos para cá, em terra batida…
ERG CHEBBI. Entre o asfalto e o trilho em terra batida.
A
NEVE QUE DECORAVA OS CUMES DO MÉDIO ATLAS
não foi surpresa. Pelo menos, para a maioria de nós, para os que iamos preparados para essa inevitabilidade. Havia mais trânsito do que há cinco anos. Estava tanto frio como em 2007, talvez mais, mas não caía (ainda) tanta neve como naquela ocasião. Mesmo assim, pouco antes de chegarmos a Azrou para nos encharcarmos em chá a ferver, tinha passado um limpa-neves na subida da Floresta dos Cedros. Tenho a impressão que, desta vez, quem parou para tirar fotografias se deve ter arrependido.

AZROU. Depois da neve, nem um chá a ferver queima.
FUROS EM CADEIA
Outra façanha digna de registo foi a quantidade de furos que o pneu do Quim acusou. Foram logo três os que minaram o stock de remendos e de sprays. Todos de uma vez e próximos, obrigaram depois a recorrer a uma oficina – talvez não a mais indicada – e a nova reparação. Mesmo assim, e com o piso já nítida e extraordinariamente gasto, chegou à Trofa, após cerca de 7 mil quilómetros de vida.
Vale do Dadés. À volta do furo.
Foram
TRÊS DIAS PARA ESQUECER
O tempo nem sempre cooperou. A chuva e o vento surgiram, por vezes, com violência. O trajecto matinal do segundo dia, Tanger-Marraquexe, surpreendeu-nos logo à partida da cidade. Só deixaria de chover perto de Casablanca, cerca de trezentos quilómetros a sul. Na jornada que nos levou de Fez a Ceuta, em que optámos pela auto-estrada para melhorar a rapidez e a segurança da viagem, voltámos a apanhar chuva e vento até perto de Rabat, mais cerca de duzentos quilómetros de intempérie.
MIDELT. A chuva começou aqui e só terminou em Fez.
No último dia, de novo o VENTO E A CHUVA
a aparecerem logo após a saída de Tarifa e acompanharem-nos praticamente até Beja. Não me lembro de uma viagem de moto que tivesse envolvido um dia tão chovedio e ventoso em Espanha e em Portugal. Confirmava-se o prognóstico das notícias meteorológicas que haviam predito a passagem de uma frente fria pela Península Ibéria naquela manhã. A moto rodou durante muito tempo a 45 graus em recta e, em Portugal, na serra algarvia, o vento tanto soprava de um lado como do outro, abanando a moto com violência sempre que surgia nova ponte.
CEUTA. Ainda não chovia, mas ameaçava. 
E sobre novidades,
OS NOVATOS TAMBÉM FORAM
Havia três. Dois que iam com o Clube pela primeira vez, e um casal que ia a primeira vez de moto a Marrocos. Os restantes já haviam estado em Marrocos, de moto, a solo ou com o Clube. Não é todos os dias que o baptismo de grupo se faz numa viagem, para mais em outro continente, para mais num país com regras diferentes das europeias. Tratava-se no entanto de um risco calculado e mediado por todo o grupo. Não houve surpresas desagradáveis, antes pelo contrário.

Quanto muito, os
SOBRESSALTOS
podiam ter vindo de quem não privilegiou a logística, por quem foi surpreendido por um consumo de pneu inesperado e por furos invulgares, por estômagos mais delicados ou por incomum trajecto pela terra. Mas nem isso foi pecha. Todas as más surpresas foram ultrapassadas. Ninguém morreu gelado, o pneu gasto chegou a casa, não foi necessário recorrer a ajuda médica extraordinária e, com uma lavagem, não houve lama que se notasse na carenagem de uma das Pans. E, não é todos os dias que se passa o Médio Atlas, com um capacete aberto...  
AUTO-ESTRADA. Uma pausa na tempestade.
Passámos por uma MANIFESTAÇÃO
Nunca tinha assistido a um protesto popular em Marrocos. Foi à entrada de uma vila, um grupo empunhando cartazes reivindicava, salvo erro, emprego. Não eram muitos, mas faziam-se notar e ouvir. Um aspecto inovador, sabendo quanto é apertado o controlo deste tipo de manifestos em Marrocos.
OUARZAZATE. Entardecer.
DADÉS, TODRA, DESERTO
As novidades desta viagem consistiam em percorrer dois desfiladeiros e dormir no deserto. A ideia de percorrer os dois primeiros apoiava-se sobretudo nas imagens das famosas curvas que trepam as falésias no primeiro e a altura dessas escarpas no segundo. A ida ao deserto baseava-se no expectativa de poder ver o céu límpido estrelado e assistir ao famoso nascer do sol.
No Dadés, além de nos termos confrontado com a tal cativante sucessão de curvas, surpreendeu a zona dos Dedos de Macaco, uma formação rochosa em blocos enormes e sucessivos que, mais do que as falanges de símio, faz lembrar os dedos robustos de um poderoso Atlas.
VALE DO DADÉS. Dedos de Macaco.
No Todra é o gigantismo dos penhascos comparado com a profundidade do vale. Disseram-me os locais que o sol aparece entre as nove e o meio-dia e volta a desaparecer para lá dos penedos até ao dia seguinte. Ao fim do dia, a luz, de tão difusa, torna o lugar lúgubre, parecendo ser mais tarde do que na realidade é.
GARGANTA DO TODRA. As cores não correspondem ao real.
No deserto, o céu não estava cristalino mas foi possível identificar facilmente as “ursas” e a estrela polar, e o planeta Marte. Não tendo sido decepcionante, um nascer do sol mais sedutor terá de ficar para uma próxima vez. Valeram as cores E as formas do horizonte desértico, que continuam a marcar a diferença e a sugerir outras ideias para lá das imagens que proporcionam.
ERG CHEBBI. Muito por onde e por que pensar.

E, agora, espaço para a
ARTE

Mas não só. Um das sugestões da viagem apontava para um passeio por patrimónios marroquinos. A arte era um deles. Por isso, a sugestão de ir à Madrassa e ao museu de Marraquexe. Não é fácil perceber o museu, aventei anteriormente. Já havia lido sobre a pobreza dos conteúdos e a valorização do espaço enquanto riqueza arquitectónica.
Na verdade, quer do ponto de vista técnico – onde a fraca iluminação e a debilidade dos expositores constrangem – quer do ponto de vista do património e do prestígio – escassez que peças significativas e ausência de organização temporal – o museu não segue os cânones europeus para este tipo de instituição.
Conjecturei sobre o tema e apenas reconheço a dificuldade de conciliar as diversas “histórias” de Marrocos, os diferentes protagonistas, os diversos factos, as diferentes memórias que a organização social, étnica e tribal tem ditado ao longo dos séculos e ainda determina na actualidade. Mas sobretudo a grande dificuldade de eleger outros que não sejam os (actuais) vencedores.
Tal como não é habitual percebermos qualquer exposição nomeadamente com base na imagem, que não seja comercial, em Marrocos, não deve ser fácil exibir sequer cronologias, quanto mais marcos históricos. A história marroquina passa por árabes e berberes, por almorávidas, almóadas e alauitas, pelas diversas tribos berberes, por nómadas, sedentários, habitantes da montanha ou dos grandes espaços desérticos do sul. Com tamanha diversidade social e cultural é difícil ajustar a memória ao património.
Mas continua a ser aprazível olhar os fósseis, as roupas típicas, o artesanato e toda uma miríade de pequenos objectos cujas formas, cores, texturas e contrastes encantam. Infelizmente, o espaço disponível não comporta grandes compras de recordações deste tipo. Felizmente, essa escassez de espaço é um auxiliar decisivo no que toca ao orçamento. 

A ARQUITECTURA também fascina.
Aliada à cor e à textura, marca uma diferença fundamental. O olhar não se perde na desigualdade, antes se renova na originalidade. Conforme descemos em latitude, as configurações, as superfícies e as manchas de cores vão-se transformando. A arquitectura estende-se dos pátios aos alpendres, das portas às janelas, aos elementos decorativos dos topos, às cores, às texturas, às dimensões, quase sempre harmoniosas. A claridade dos brancos mediterrânicos esbate-se nos laranjas avermelhados da terra e do deserto. A textura lisa e brilhante dos edifícios do norte dá lugar à porosidade baça das casas no sul. E difícil não ser atraído por esse espaço mais simples mas também mais disponível, mais moldável, mais livre.

Outro aspecto integrado no capítulo do património, passa pelos
CASBÁS
Um dos pontos altos da viagem foi a visita à fortaleza (ksar) de Ait Benhaddou. Trata-se de um casbá composto por vários casbás/alcáceres, em que as respectivas paredes também servem de muralhas face ao exterior. É mais antigo do que a invasão da Península pelos árabes.
Labiríntico como é habitual, o espaço foi cenário de uma quantidade de filmes, do velho “Lawrence da Arábia” até ao mais recente “Múmia”. Curiosamente, estavam a filmar na altura em que percorríamos as ruas estreitas e íngremes do burgo, bem como a construir uma parede de pedra provavelmente para a mesma produção.
Reservava o local mais alto para celeiro, à imagem dos sótãos dos nossos prédios, onde cada condómino possui um espaço para armazenamento. Dali, a vista identifica imediatamente o contraste entre o espaço verdejante do oásis e a aridez dos campos em redor, bem como os meandros do rio Ounila e a o vasto leito que separa a povoação nova da velha fortaleza.
Outro dos casbás que visitámos estava em reconstrução, sinal de que o património também está a ser alvo de atenção.

Tal como o de Ben Haddou,
o de OULAD ABD EL HALIM,
mais recente, do século XVII, também foi construído para uma família. Depois, porém, ficou conhecido pelo casbá dos filhos de Oulad Abd El Halim – que deviam ser bastantes, uma vez que o senhor Oulad tinha, pelo menos, quatro esposas. A reconstrução do casbá está a ser feita por um dos seus descendentes.
Podia-se ver esse trabalho de reparação com materiais tradicionais, quer nos tijolos de adobe que estavam a secar, quer nos trabalhos decorativos em gesso que envolviam cúpulas e frisos, quer ainda nos detalhes dos tectos em madeira. Um local a revistar daqui a uns anos. Apesar de ter entrada gratuita, no fim da vista, cada um contribuiu com alguns dirhams para a recuperação do edifício, entregues em mão a um senhor já idoso que nos foi apresentado como mecenas da obra.

E agora, vamos para a segunda parte do relato desta viagem, a

A CAMINHO DO DESERTO

A manhã revelou-nos
MAIS UM FURO
em outra moto, que nos acordou para a necessidade de escolhermos melhor os trajectos e sobretudo os pisos. Desta feita, era um prego, não muito grande. Um taco simples resolveu o problema. Acertada a pressão, estávamos prontos para partir próximo das dez da manhã. Quando saímos de Tineghir já não contávamos com a primeira vítima do foro digestivo que, entretanto, sairia directamente para o albergue do deserto. O pneu traseiro da moto do Joaquim continuava a não dar confiança, pelo que a assistência em viagem foi contactada.
À saída do riad em Tineghir
A partir de Tinejad a paisagem transforma-se. A aridez da rocha escura dá lugar à secura da terra beije. As casas passam a confundir-se ainda mais com o solo e só a vegetação consegue realçar as diferenças. A arquitectura também revela os seus traços mais estilizados, mostra-se mais ecológica e a textura do adobe começa a dominar, sobretudo à medida que nos  aproximamos do Erg Chebbi.

Mas é o
PALMEIRAL
que distingue. É ali, na sombra das palmeiras que as populações cultivam a maioria, se não a totalidade, dos seus produtos hortícolas. O solo está irrigado, embora de maneira artesanal. Há água não muito fundo. Os trabalhos de irrigação são habitualmente tarefas colectivas.  Muitos dos canais que atravessam as hortas têm de ser refeitos periodicamente, muitas vezes depois de raras mas fortes chuvadas. 
Os famosos canais de irrigação das culturas no palmeiral
Por vezes, excluindo o facto de se tratar de palmeiras, a estrada de Erfourd a Rissani, faz lembrar algumas das nossas estradas alentejanas, estreitas, planas,de há uma trintena de anos, ladeadas por árvores de grandes copas. Para tal contribui também o facto de não haver berma e o perfil da estrada ser levemente ovalizado. A paisagem toma conta do horizonte e mesmo a aridez do cenário é atraente. Aqui, a lentidão da comitiva não se sentia.
Não fosse o adobe, diríamos estar numa estrada municipal portuguesa
Foi esse ambiente que nos acompanhou até Rissani. Após termos reabastecido, alguns quilómetros após Erfourd, entrávamos na cidade pela famosa porta que recebe quem vem do Médio Atlas e vai a caminho do deserto. Pouco depois, estávamos à mesa,


CHEZ CHAKROUNI
Talvez a única foto em que todos vestiam os pólos da "expedição"
o restaurante, ainda inacabado, que pertence a familiares do nosso guia, situado numa das saídas que leva ao Erg Chebbi, junto a uma rotunda ainda em construção. Ele havia notado que o acesso ao albergue obrigaria a percorrer cerca de um quilómetro em terra batida. Como estamos habituados a contar com alguma margem de aventura, confirmamos com quem já chegara ao albergue se o piso não nos poria a todos a remendar furos.
Como tantos outros prédios, também o restaurante ainda estava em construção
À medida que deixávamos Rissani, a tonalidade do horizonte a nascente ia ficando cada vez mais alaranjado. Parecia introduzir o tão esperado Erg Chebbi, mas este não se revela de imediato. O deserto vai-se apresentando. Começam a aparecer mais árvores à beira da estrada e o campo em redor fica mais árido. Depois, mostra as casas invariavelmente construídas num adobe que se vai misturando cada vez com a areia. Foi assim que o fomos vendo aparecer. Depois, surge Rissani, como se fosse uma fronteira.
Rissani. Portal típico.
A partir daí, parecem vagas sucessivas de uma areia beije que passa a ondular o horizonte. São essas ondas que nos escoltam a leste. Conforme nos vamos aproximando, as dunas vão-se elevando e a tonalidade avermelha-se. Aqui, tradicionalmente, as pessoas não se vestem de branco, como na península arábica. Curiosamente, as mulheres até vestem preto e os homens vestem azul.
Capa típica das mulheres do sul
Já tínhamos um boa ideia do sítio onde iríamos ficar http://www.kanzerremal.com/ - mas não sabíamos que tipo de piso teríamos de trilhar para lá chegar. Afinal, não foi difícil. Havia alguma areia, mas a maior parte do caminho era em terra batida. O céu não estava mais azul do que o de Tineghir, mas parecia haver mais espaço. Os edifícios, aqui, não escondem o horizonte, antes fazem parte dele.

Estávamos às
PORTAS DO DESERTO
Estacionámos as motos, entrámos no átrio, passamos a um salão enorme que dava acesso aos quartos e à sala onde deixámos a bagagem e os fatos. Saímos dali com roupa prática e água ao encontro dos dromedários. Muitos levavam lenços enrolados na cabeça à imagem dos turbantes tuaregues. Deram jeito, protegendo-nos da areia fina levantada pela brisa do fim da tarde. No albergue, ficavam cinco casais por opção e o desafortunado Joaquim à espera que o contactassem da assistência em viagem. Ainda havia esperança na possibilidade de colocar um pneu novo.
Merzouga. À porta do albergue do deserto.
Se o ritual da subida para o dromedário se controla relativamente bem à vista, a experiência do equilíbrio já tem de ser mediada com a cintura, com o cóccix e com as pernas. Ou com muito "ki" (energia). Percebe-se, assim que começam as subidas ou as descidas. Com os olhos acima dos três metros de altura, o chão tem outra perspectiva, sobretudo quando o plano começa a ser inclinado.


Mas, sobretudo, quando alcançamos a
CRISTA DA DUNA
Presos uns aos outros, os dromedários andam em grupos de quatro ou cinco, dirigidos por um condutor. Um dos grupos vai à frente e os outros seguem-no. Está feita a caravana. Depois é encontrar o melhor caminho, o que obriga a serpentear pelo cimo das dunas mais baixas. De vez em quando, um dos condutores trepa a duna à procura do melhor trilho, após ter ligado o seu grupo de dromedários a outro.
A chamada fila indiana também aqui é mandatória
A experiência faz milagres. Aliás, um condutor calçado não faz sentido. Mesmo que seja de sandálias ou chinelos. A areia não dá hipótese a qualquer espaço, pelo que mais vale pendurar as sandálias no dromedário e passar a sentir o caminho. Suponho que apenas seja válido nesta altura, em que a temperatura da areia ainda não ferve.  
Começa a ser divertido quando somos obrigados a equilibrar-nos numa descida ou numa subida. Ao princípio, os músculos são logo todos solicitados. Depois, relaxa-se aos poucos. É como fazer TT. A subir, a inclinação é para a frente. A descer, é para trás. A moto, aqui, é o dromedário e tem o centro de gravidade um pouco mais alto...  
Pelas dunas, no caminho certo: nem mais abaixo, nem mais acima.
E também começa a ser desafiante saber onde estamos. Não sabemos. Vamos para o acampamento, foi o combinado. Percebe-se, todavia, que não se busca apenas o acampamento. Afinal, estamos no deserto. Não é apenas o caminho que se procura ou o sítio de chegada, como é vulgar em qualquer viagem, mas também um equilíbrio, um harmonia entre o ambiente a que estamos habituados e a nova realidade. Afinal, não é todos os dias que estamos num deserto.
Erg Chebbi. Chegada ao acampamento.
É que, passados poucos minutos, apenas fica uma leve impressão de que o albergue fica “por ali”. Depois, é impossível saber para que lado fica o quê, sem cair em erros grosseiros. Deixa de haver qualquer referência. Mesmo a duna mais alta pode parecer, daí a pouco,  igual às restantes. Nota-se também uma pequena brisa que sistematicamente rouba areia ao topo da duna e a transfere para outra.
A manhã a desanuviar.
O Erg Chebbi é "pequeno". Estamos numa pequeníssima "praia do Saara", uma espécie de monte de areia, onde as dunas podem ir até aos cento e cinquenta metros de altura, mas que não vai além dos cinco quilómetros de largura e dos vinte e dois de comprimento. E nós não devemos ter andado mais do que metade da largura...
Ao ritmo das dunas.
Após uma boa hora e meia de caminho, vimos aquilo que se parecia com um acampamento. Mas ainda não era aquele. Quando ficámos mais próximo do que iria ser o nosso lugar de pernoita, desmontámos. Depois, seguimos com os dromedários pela rédea. O acampamento ficava num vale e a descida era exigente.

Por isso, fomos a pé até às
TENDAS
Não eram mais de meia dúzia, sendo uma a dos nossos anfitriões, que não são mais do que os nossos condutores. Além de guias, são músicos, empregados de mesa, de quarto e cozinheiros. Preparam as refeições, arranjam as camas, montam e desmontam tudo e ainda são músicos que entretêm a soirée.
Um espanhol, o do lado esquerdo, atento à música berbere.
Connosco seguia um casal espanhol e outro americano e, mais tarde, em caravana separada, chegaram dois casais alemães que foram também os primeiros a partir. De manhã, estavam plantados na crista da duna na esperança de conseguirem ver um nascer do sol elegante. Mas, tal como nós, não foi neste dia que o presenciaram.

O que, porém, não faltou, foi
FUTEBOL NAS DUNAS
O breu foi abreviado por algumas velas, o silêncio acompanhado por música e as nossas conversas fizeram o resto da noitada. Mas não só. Nesta noite, Sporting e Benfica defrontavam-se me Alvalade. E houve dois adeptos que subiram a duna. Não tardou que, em pleno deserto de Erg Chebbi, se ouvisse um grito de vitória facilmente reconhecível: Spooooorting!, bradado a plenos pulmões enquanto desciam a duna.
Julgo que, pelo menos, acrescentamos mais uma experiência ao curriculum. Não foi difícil equilibrar a relação de que falava há pouco, entre o nosso quotidiano habitual e a novidade do deserto. Em cada um de nós e em todos, estou convencido de que a experiência, embora não tenha sido extraordinária, perigosa ou exigente, foi suficientemente rica para no futuro ser referência. Sabemos que conseguimos andar entre pólos: dormimos em hotéis de quatro estrelas ou em tendas de lã no deserto, tanto andamos por trilhos de terra como circulamos em autoestrada, tanto percorremos a pé a medina de Marraquexe como vamos de autocarro ao casino de Benidorm, que tanto almoçamos à beira da estrada em Marrocos como jantamos na marginal de Cannes. Estou convencido que é o prazer dessa diversidade que nos ceva a vida e nos motiva a voltar.

Mas
HÁ QUE VOLTAR
Cuidado na arrumação do espaço de acampamento.
Pouco passava das seis da manhã quando o “serviço de quartos” nos acordou, levantando-nos a porta da tenda, que dava para o parque de estacionamento dos dromedários. Deixámos o acampamento, subindo a duna, tal como a havíamos descido no dia anterior, a pé. Trepamos para os dromedários e iniciámos a viagem de regresso sob um sol ainda mortiço.

A luz da manhã, apesar não ter aquele matiz rosa característico de um amanhecer mediterrânico, cedo manchou a paisagem com aquelas tonalidades laranjas invejáveis. Pudera, a envolvência arenosa é de tal modo vasta, permanente e notória que tudo parece mascarado por essa mancha avermelhada. Aproveitamos por isso as sombras dos dromedários projectadas na areia e, já mais habituados ao navegar dos bichos, julgo que tiramos melhor partido do percurso. Acenamos a outras caravanas, sentámo-nos mais à vontade e sobretudo mantivemos o nível de comentários em alta. E, como bons portugueses que somos, à vista do albergue, já estávamos com saudades das dunas.
Chegada ao albergue.
Tomamos o pequeno-almoço, arrumamos a tralha nos quartos e saímos para os jipes. A ideia era fazer um périplo em redor do Erg Chebbi. Apesar de o nosso guia já estar avisado de que conhecíamos a aldeia dos músicos negros, o monte dos fósseis, o lago dos flamingos e a tenda da família nómada, apenas “falhámos” esta última. “Há outro circuito, para além do que já conhecemos?" – perguntei, quando do planeamento da viagem. “Claro!”, respondeu. A tal ausência do “não”, levou-nos então praticamente aos mesmos sítios que havíamos visitado há 4 anos.

E lá vamos nós
EM REDOR DO ERG CHEBBI
Voltamos ao lago dos flamingos – que voltaram a não estar lá – voltamos à aldeia dos músicos africanos – que voltaram a lá estar – voltamos ao monte dos fósseis – onde não havia vivalma desta vez, mas naquela altura, há sempre que salvaguardar. Deviam estar a chegar. Ali perto, outra caravana de jipes devia ter afastado os habituais vendedores de fósseis.



Novidade, foi mesmo observar que, também a leste do Erg Chebbi, há mais habitações, precárias ainda assim (aliás, algumas estavam em ruínas), mas parece que houve muita gente a fixar-se por ali nos últimos quatro anos. Por outro lado, também fizemos uma passagem lenta (não paramos) num cemitério, apenas com pequenas lápides, que parece ter sepultados oficiais marroquinos vítimas de confrontos recentes naquela área.

E as novidades não ficavam por aqui. Mais à frente, numa zona onde há quatro anos não existia nada, paramos para almoçar num restaurante, aparentemente “perdido” já com alicerces na areia. Revelou-se acolhedor e confortável, com uma decoração simples mas simpática, que nos serviu comida muito saborosa. E ainda alguns detalhes de exotismo, como fossem, um par de esquis ou uma mesa posta na areia.

Regressámos ao albergue a tempo de saborear umas cervejas acompanhadas por amendoins. Sentados na esplanada virada para o deserto, foi um dos melhores momentos de descontracção da jornada. Foi nesta ocasião que conhecemos o irmão mais velho do Omar, o Ali, um guia experiente habituado a organizações de maior dimensão. Tinha acabado de conduzir um rali de jipes clássicos espanhóis e já estava a pensar planear um périplo de scooters por Marrocos.
Autocolante da empresa do Ali.
Esse relaxe foi também o aperitivo para o jantar, depois acompanhado por música tradicional ao vivo. Apenas estávamos nós no grande salão do albergue. Ainda assistimos a uma tentativa do casal Houdini para sair de uma espécie de algemas berberes mas viu-se e desejou-se para o fazer.
Subimos finalmente para os quartos. O nosso tinha seis janelas, três camas, uma delas, gigantesca, um pequeno átrio, e uma grande casa de banho. Estava decorado com materiais simples mas agradáveis. Das janelas, ao nível de um 2º andar, dominavam-se alguns quilómetros na orla do deserto. Ali mais perto, era a piscina que tentava ao mergulho que, contudo, uma leve brisa não aconselhava.
Convívio nocturno na ressaca do passeio de dromedário.
Entretanto, o Joaquim tinha arrancado para Midelt no dia anterior para arranjar solução para o pneu. Das vítimas do foro digestivo, a Guida estava melhor, mas o Zé Marques continuava indisposto. Previa-se um dia calmo, com uma manhã cultural e poucos quilómetros de estrada até ao almoço.

O deserto num minuto.
Música: Jess Cook
Ver neste formato


A tarde, seria dedicada sobretudo ao vale do Ziz,
A CAMINHO DE MIDELT
Estava quente, quando partimos. Estendemo-nos ao longo da pista e parámos pouco depois, numa loja da aldeia mais próxima, “depositária de peças trazidas por nómadas”, como a apelidaram. As peças eram maioritariamente berberes, algumas exemplares excelentes de artesanato. Mas os preços, esses, eram excessivamente altos e a vontade de negociação pareceu-nos demasiado baixa. Tempos diferentes, na verdade, em que a tradicional discussão de preços, tão presente no sul, não acontecera.
Loja berbere entreposto nómada no Erg Chebbi.
Estava previsto visitarmos um casbá próximo de Rissani. Assim que entramos no estacionamento fronteiro ao mausoléu de Moulay Ali Cherif, o fundador da dinastia Alauita, percebi que iríamos visitá-lo, bem como o casbá que fica do outro lado da estrada.

Como já  o tínhamos feito há quatro anos, a opção foi pelo
CASBÁ DE OULAD ABD EL HALIM
à porta do qual estacionámos, junto das respectivas muralhas, recentemente recuperadas. O interior, todavia, ainda estava em reconstrução. Por isso, andámos entre tijolos de adobe que secavam e abóbadas reconstruídas, entre espaços de recepção, átrios de recreação e hammams.
Deixámos o casbá e voltamos ao centro de Rissani para aceder ao multibanco. Paramos envolvidos pela azáfama de uma manhã de compras numa das zonas comerciais da cidade. Pouco depois, saímos por vagas. Nos arrabaldes, esperávamos pelos últimos quando percebemos que a demora era demasiada. Voltei atrás e percebi que tinha havido uma queda, mas com a moto parada. Não passou de um pequeno desmaio, ainda motivado pela terapia do problema estomacal.
Os famoso tijolos de adobe a secar.
Voltámos à estrada aberta e aos horizontes planos. Ao longe, voltava a estender-se o Medio Atlas. Algures a meio de uma das muitas rectas que sulcam o terrenos árido e plano, paramos num local curioso, uma nascente a céu aberto. De diversos buracos no solo lamacento, brotava a água fresca. Além disso, e talvez o que mais chamava a atenção, era um jacto enorme de água, tipo geyser, expelido por uma bomba guardada numa espécie de bunker que, inclusivamente, serviu para nos lavar os blusões e refrescar o corpo.
Ainda fizemos uma paragem tradicional num dos locais mais carismáticos do vale do Ziz, quando se divisa uma enorme extensão de palmeiral, sítio onde também havíamos parado há quatro anos.

Já estávamos próximo do local de
ALMOÇO EM ER RACHIDIA
um riad, onde surpreendia a piscina situada no centro de um pátio pleno de árvores. Foi aqui que a maioria estreou a famosa “pastilla”, um raro prato de entrada da gastronomia marroquina, uma tarte que junta carne de carneiro, frango ou de pombo com amêndoas e tem um sabor adocicado. Foi também aqui que nos separamos do nosso guia Omar e do sobrinho Hassan. Voltávamos a andar soltos.
Insistimos pelo Ziz acima. Passámos uma zona a subir que mostra o palmeiral do lado esquerdo a acompanhar o rio – onde parámos há quatro anos – e seguimos pela estrada que vai ao longo de uma das falésias, que mantém um piso razoável. Mais à frente, sim, quando passamos a descer, o piso estava novo o que permitiu inclinarmo-nos com mais segurança ao longo de um excelente encadeado de curvas.

Palmeiral no vale do Ziz.
Chegamos a Midelt, a meio da tarde. Voltámos a estacionar as motos dentro do pátio do Kasbah Asmaa - http://www.morocco-travel.com/morocco/KasbahAsmaa/, um hotel enorme, que há quatro anos nos recebeu logo após termos atravessado o Médio Atlas a fugir de um nevão. Desta vez, sairíamos daqui para apanhar outro.
Traseiras do Casbah Asmaa, em Midelt.
Chegámos no dia de aniversário do Jorge, data que coincidiu com as nossas bodas de prata. Bolo e vinho rosé, depois de um jantar bem servido, que se seguia a um enorme prato de aperitivos, acompanhado por umas quantas cervejas de entrada. Aproveitamos para recordar o mau tempo que havíamos sofrido da última vez que por lá tínhamos passado e saber que o Joaquim já conseguira uma nova intervenção no pneu, mas que ainda não lhe dava grande segurança.

Contudo, sairia connosco para
ATRAVESSAR O MÉDIO ATLAS COM NEVE

Aliás, já arrumamos a bagagem à chuva. Saímos do hotel sob uma forte bátega de água, metemos gasolina pouco mais à frente, atravessamos a localidade sob um aguaceiro valente e, durante muito tempo, a chuva não nos largou. O trânsito, que no dia anterior, havia sido diminuto, aumentou, sobretudo à medida que íamos subindo a caminho de Timahdite.
Midelt fica situado num planalto a cerca de 1500 metros de altitude. Dali, embora suavemente, a estrada começa a encaixar-se na montanha e as grandes rectas dão origem a curvas cada vez mais próximas. E não tardou que a chuva fizesse diminuir a velocidade média, de maneira que se começaram a formar pequenos grupos de veículos, carros, camiões e até uma expedição de jipes irlandeses.
Lentamente, a chuva começou a passar não de cima para baixo, mas na horizontal, mais lenta, mais espessa, mais fria, mais compacta. Deixara de ser água para passar a cair em flocos. Estava a nevar! Mais uma vez, próximo do cume, começava a nevar. Tal como uma memória que não se quer reavivar, assim continuámos até um entroncamento, sem sequer pensar em andar mais devagar ou sequer parar para registar o momento. Aí, duvidamos da necessidade de virarmos à direita. Mas não era necessário. E ainda chegámos a parar. Porém, o frio monstruoso logo nos fez arrancar.
AZROU. Cada vez que por aqui passamos, não escapamos à neve.
Entretanto, estávamos divididos em 2 grupos. O nosso, que seguia à frente e o outro que, apesar da paragem ainda se não divisava. A neve continuou a cair e os cumes em redor já estavam tapados de branco. À vista da Floresta dos Cedros, já perto de Azrou, passou um limpa-neves em sentido contrário, sinal de que seria necessário na borrasca. A neve deixou de cair quando atravessámos o bosque e, na cidade, apenas chovia.
Parámos num café situado na rua principal e pedimos chá. Pegámos nos copos como se não estivessem a ferver. Daí a pouco, chegou o outro grupo. Mais fresquinhos, seguramente. Haviam parado para dar uma ajuda a uma Pan que tinha andado fora de estrada. Ainda atravessamos Ifrane sem chuva, mas gorara-se a hipótese de visitar a zona da floresta onde há macacos. Daí a pouco, mal passámos a cidade “alpina”, o mau tempo regressou.

Ainda chovia, quando chegamos a
FEZ
E como Marrocos também se pode considerar uma “terra pequenina”, o mesmo indivíduo que há 2 anos nos levou ao hotel apanhou-nos nos primeiros semáforos da cidade. Ainda demorou um bocadinho a perceber que, desta vez, quase conseguíamos chegar ao hotel pelo GPS, mas não deixou de nos acompanhar até ao Zaharat Al Jabal
Um dos pressupostos da reserva dos hotéis determinava que todos os hotéis possuíssem garagem (ou uma área exclusiva para as motos). Mas este não tinha. E teria dado jeito, uma vez que tivemos de tratar das bagagens à chuva. Exceptuando o albergue do deserto este foi o único sítio onde as motos não ficaram num recinto dedicado.
FEZ. Hotel Zaharat Al Jabal.
Também foi aqui que verifiquei que o blusão e as luvas tinham ultrapassado o limite da impermeabilidade. As mangas junto aos punhos estavam molhadas no interior e as luvas exteriores haviam deixado passar água para as de licra. Ficou tudo pendurado no quarto a secar.
Almoçámos no hotel. Depois, o grupo dividiu-se em três: os que foram à medina, os que foram dar um passeio pedestre pelas imediações do hotel, os que ficaram no hotel. O tempo não ajudava e ainda fomos obrigados a recolher-nos por duas vezes sob galerias. Numa delas, próximo do Judo Clube de Fes, voltamos ao “velho” chá para compensar o desconforto de mais um aguaceiro.
FEZ. Último andar do hotel. Vista sobre a medina, ao longe.
Todo o grupo jantou no restaurante do hotel, situado no último andar, que proporcionaria uma vista simpática sobre a cidade, não fosse o mau tempo que se estendeu pela noite. Aproveitamos para ponderar sobre o dia seguinte. Estava previsto que o trajecto incluísse o almoço em Chefchaouen. Seria uma jornada mais lenta, totalmente em estrada nacional, em grande parte no Rif cujas estradas não são das melhores para circular com um grande grupo de motos. Além disso, as previsões meteorológicas eram desfavoráveis. Optamos por percorrer todo o itinerário por auto-estrada. O Joaquim e o Filipe partiriam mais cedo, com o propósito de ainda conseguirem chegar a Ceuta ou a Algeciras a tempo de mudar o pneu.


De manhã, algumas abertas permitiram que chegássemos rapidamente à
AUTO-ESTRADA
Mas, dentro em pouco, os aguaceiros vinham confirmar as previsões. Sensivelmente até depois de Kenitra, onde almoçamos, a violência da chuva coincidia com a tonalidade mais ou menos cinzenta das nuvens. Todavia, a partir de Larache, o tempo melhorou. Passamos Tanger com sol e saímos da auto-estrada pouco depois. Optamos por continuar para Ceuta pela estrada costeira que vai ao Port Tanger Med, a nova porta marítima de saída e entrada de Marrocos. Apesar de ser muito paisagística, a estrada costeira é assolada por ventos fortes, e a observação tranquila do recorte das falésias fica prejudicada pelo extremo cuidado com a condução. Não será estranho o facto de, no lado espanhol, estar tarifa e a sua famosa ventania.

Passámos a fronteira e
ENTRAMOS EM CEUTA
ao final da tarde pela marginal que circunda a cidade. Estacionamos as motos no parque do hotel, http://www.parador.es/es/parador-de-ceuta, arrumamos a bagagem e descemos ao bar. Não fomos os primeiros nem os últimos a tirar a barriga de misérias de alguns aperitivos proibidos em Marrocos.
CEUTA. Edificio Trujillo, um ex libris da cidade.
Depois saímos e dividimo-nos. Cada qual escolheu o seu ‘spot’. Nós optámos pelas Muralhas Reais de Ceuta, herança portuguesa de meados do século XVI. Alguns vestígios, como sejam certos troços da muralha e o fosso navegável, ainda testemunham o traço de um arquitecto militar português do reinado de João III.
 
A fortaleza é uma obra de vulto, está em bom estado de conservação e é um testemunho histórico português situado em pleno coração da cidade. Tem entrada franca e permite fazer um circuito pedestre envolvente desde o Parador, lugar de onde já são visíveis as respectivas muralhas.
CEUTA. Junto à marina.
A cidade é pequena. Percorre-se facilmente a pé. A noite, porém, estava fria, e nem sequer chegámos à "calle de Camoens". Ceuta conserva inúmeros testemunhos portugueses, estando um deles, o escudo nacional português, presente no brasão da cidade que, sob ele ainda mostra as cores da bandeira de Lisboa.
CEUTA. Calle do Alcalde Antonio Prados, no cimo da qual fica o Parador.
Nem todos saímos ao mesmo na manhã do dia seguinte. Alguns ficaram para a tarde a fim de sossegar definitivamente os estômagos ainda em ressaca marroquina. Chegamos cedo ao porto e apanhamos o barco das nove, um ferry pequeno mas que, ao contrário dos piores receios, não chegou a encher. Em Algeciras, tal como em Ceuta, o sol escondia-se mas não chovia.

Bebemos o último café juntos em
ALGECIRAS
ALGECIRAS. Despedida após o café da praxe.
A partir daí, formar-se-iam vários grupos, de acordo com os destinos desse dia. Os de mais longe imprimiram um ritmo mais vivo e, depois de Medina Sidonia, deixamos de os ver. Pouco depois, começou a chover. Os aguaceiros continuaram, de forma intermitente até Sevilha. Aí, à chuva, juntou-se o vento, forte e sistemático, a soprar da esquerda, e a obrigar a um controlo mais musculado da moto. Parámos numa área de serviço quando o vento se tornou insuportável. Era preciso serenar os deuses.

As nuvens negras pareciam ter-se concentrado para norte. Por isso, optámos pelo itinerário algarvio e retrocedemos cerca de uma quinzena de quilómetros. A intermitência da chuva manteve-se, mas o vento soprava agora mais fraco e de frente. Almoçamos na área de serviço de Olhão e paramos mais uma vez até Lisboa.

Desta vez, a viagem não teve a tranquilidade de outras. Talvez por ser muita gente, pelos pedaços tramados de mau tempo, pela ausência de algumas visitas, pela falta de tempo para um planeamento mais aturado. Mas nem sempre nos podemos dar ao luxo de tudo correr de acordo com o previsto. Como diria qualquer treinador de futebol, “alcançamos os objectivos”, que eram, percorrer os desfiladeiros e dormir no deserto.

Considerando que as jornadas de Marraquexe e de Ait Benhaddou foram interessantes, fico com alguma vantagem face a Tanger, Midelt e Fez, onde a andança não foi tão cativante. Agora é sonhar com outras navegações com outros lugares. Afinal, quem não tem sonhos, tem pouco.

Última etapa num minuto.
Música: Jess Cook.
Ver neste formato