INTRODUÇÃO
Tal como o rei Sebastião, também nós falhámos Ksar El Kebir, aquela planície feroz que comprometeu Portugal por algumas décadas. Sebastião enfrentou cerca de 60 mil árabes, e nós apenas algumas dezenas de ciclistas magrebinos.
Porém, o objectivo primordial, cuja concretização se revelou mais abrangente do que o previsto, era visitar alguns dos vestígios da presença portuguesa em Marrocos. Essas pegadas existem – os baluartes de Azemor, a cisterna da antiga Mazagão, o castelo de Safi, os ‘canhões’ da fortaleza da idosa Mogador - mas estão fragilmente acessíveis, protegidas e apregoadas.
Acabámos por associar a este périplo pelos vestígios do império português quinhentista, as cidades imperiais marroquinas – Rabat, Casablanca, Marraquexe, Fez e Meknes - e, daí, juntar o significativo dos dois impérios. Mais, aliamos ainda uma perspectiva paisagística, que nos levaria das praias e falésias atlânticas aos vales verdejantes do Médio Atlas.
Anunciavam-se algumas estreias – Tanger, Rabat, Azemor, El Jadida, Safi, Essaouira, Ouzoud, Fez e Volubilis – e duas recapitulações – Marraquexe e Meknes. Se bem já conhecíamos as ligações entre Tanger e Casablanca, e entre Azrou e Volubilis, o restante percurso era novidade.
Outra novidade, relacionava-se com a imposição de, uma vez em território marroquino, apesar de rodarmos todos os dias - à excepção de dois em que estaríamos em Essaouira e em Fez - devermos chegar aos locais de visita e/ou pernoita, o mais tardar, a meio da tarde. Cumprimos, salvo num dia em que recebemos um convite particular para uma prova de vinhos…
Para mim, havia elegido como marcos da viagem, a visita à mesquita Hassan II de Casablanca, um pouco de tudo o que fosse herança histórica portuguesa, as cascatas de Ouzoud, o regresso à Medina de Fez e Volubilis. Era o suficiente, imaginei. Afinal, e como é costume, as minhas expectativas cobriam de maneira uniforme todo o percurso, desde a partida na área de serviço de Alcochete, até ao regresso quando da despedida na A5.
Todavia, face à viagem de há três anos, creio que as expectativas se enobreceram. Agora, era necessário, pelo menos, tentar rectificar o que não havia corrido tão bem: demasiados quilómetros por dia, melhorar em matéria de hotelaria, não chegar de noite, contar com os deuses no aspecto meteorológico.
As divindades excederam-se: nem muito calor, nem muito frio, choveram apenas borrifos, e neve, só ao longe nos cumes mais longínquos do Médio Atlas. O tempo bera, esse que abana, gela ou fustiga, esteve ausente. Por outro lado, o alojamento medrou e conseguimos chegar a horas decentes a todos os bares antes de jantar, factores-chave de sucesso para que o estimado tenha sido praticamente todo cumprido.
Já li um comentário à viagem que afirmava ter a realidade ultrapassado até as expectativas dos organizadores. Concordo, considerando fundamental o contributo da Marie (Nênê), cujo apoio logístico, e não só, foi uma mais-valia significativa durante a parte da viagem em que nos acompanhou, assim como já havia sido na reserva dos alojamentos e na escolha dos locais de refeições que se revelaram notáveis.
Exemplares foram também a tolerância e o entrosamento que o grupo confirmou. Acho que houve menos ansiedade, melhor solidez logística, uma cooperação uniforme. Talvez tenham sido estas as autênticas condições responsáveis pelos nove admiráveis dias que passámos juntos.
Onze motos – 8 STX, 2 ST, 1 KLT - dezasseis pessoas, cerca de três mil e seiscentos quilómetros percorridos, entre 24 de Março e 3 de Abril de 2010, uma média de duzentos e cinquenta quilómetros diários, reabastecimentos a cada trezentos quilómetros percorridos, paragens para descanso a cada cem, sistema de meia-pensão em hotéis de quatro estrelas, excepto em três locais onde a opção recaiu sobre a cadeia hoteleira Ibis.
Vamos viajar!
DE NORTE A SUL, RUMO A TANGER
Encontrámo-nos ao sabor das opções de cada um. Na AS de Alcochete pelas oito e meia, na AS de Loulé com mais três motos por volta das onze, na AS de Trigueros - onde almoçámos - com mais uma, no porto de Tarifa, cerca das dezoito, com os restantes, à excepção da BMW que só se juntaria ao grupo em Casablanca. Um despontar aberto, rumo a Tanger.
Cairam algumas pingas de chuva antes de Algeciras, que apaneas molharam a estrada. Junto ao porto da cidade capital do windsurf, dominam as muralhas do castelo de Guzman el Bueno, “paredes-meias” com o edifício da alfândega. Estava fresco, na espera pelo ferry, enquanto aproveitávamos para nos despedirmos desta Europa. Mas, como se fosse apenas um pequeno intervalo.
O catamaran da FRS apareceu lentamente na entrada do porto, quase em silhueta, mas rapidamente se desfez da carga que trazia, para a substituir pelos mais recentes passageiros com destino a Tanger. Assistimos com curiosidade à manobra de extensão de uma espécie de garra que servia de ponte às entradas e saídas do porão. Entramos-lhe no âmago, com a ideia de que começava ali mais uma etapa. Outro passo na viagem.
Mais uma vez, as motos foram postas “a ferros”, bancos esborrachados pela pressão das cintas, que apenas permitem uma ténue protecção de panos ou cartões que lhe aliviam o garrote. Depois, é subir aos “decks”, espreitar do alto as pequenas vagas e fazer controlar o passaporte por um funcionário alfandegário que dizia aos portugueses serem os únicos a não preencherem o famigerado papel branco conforme o determinado. O rigor como pedra de toque...
A chegada à fronteira de Tanger não surpreende: há que ficar sob a jurisdição dos angariadores que tratam de toda a papelada. Desta vez, a situação resolveu-se com recursos influentes, que nos possibilitaram demorar pouco mais de meia hora a entrar em Marrocos. Daí a pouco, estávamos a fazer o que a economia marroquina (também) precisa: que muitos troquem divisas (e as utilizem no país), e não, ter de mostrar o passaporte de cinco em cinco metros, como se fosse a fotografia do nosso mais querido recém-nascido…
Trocámos dinheiro num instante, ainda à vista da fronteira, e avançámos sobre a “sortie” que, para nós, era decididamente uma “entrée”. O trajecto até ao Ibis é fácil: sair da fronteira, virar à esquerda, continuar na marginal até à rua principal e, a partir daí, continuar sempre em frente durante cerca de doze quilómetros. Na ocasião, havia muito tráfego, sobretudo no interior da cidade, mas era fluido. Mais à frente, alguns miúdos aproveitavam a boleia da traseira de um camião, para se transportarem, muito à imagem dos nossos que, há 40 anos o faziam amiúde. Num instante, estávamos perto do aeroporto: o Ibis fica a dois passos, num largo cruzamento. Também por isso, se ouçam os estilhaços que o trânsito deixa na proximidade. Fechámos o dia com uma conta difícil de resolver no que respeitava ao vinho do jantar. Parcimónias.
Música: Emerson Lake & Palmer - The Show That Never Ends
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