De manhã, ainda assistimos através da janela à partida do Joaquim e do Arlindo. Nós fizemo-lo à hora prevista e já institucionalizada, 9:12. Fizemo-lo, ao longo das avenidas que, àquela hora, ainda não padeciam de muito trânsito. Tínhamos agora Volubilis como destino, um objectivo que havíamos falhado há 3 anos quando se abateu uma enorme carga de água sobre o lugar. Desta vez, o tempo estava fresco, sobretudo no percurso que atravessava os campos que mantinham um verde suspeito, cúmplice da muita chuva que o inverno havia emprestado à região.
Foram os estragos provocados pela ira das chuvadas que testemunhámos, quando aproveitámos um desvio que rompia por olivais a caminho de Moulay Idriss. A estrada, além de se ondular em curvas de quase 180 graus por cabeços cada vez mais elevados, estava quase impraticável para motos de estrada. Havia pouca estrada para tanto buraco. Um deles, não o evitei, e o estrondo foi violento.
A chegada a Moulay Idriss foi como descobrir um oásis. A estrada melhorou e o ar aqueceu significativamente à medida que íamos descendo esta povoação que declina ao longo de uma colina, caso raro nas grandes urbes marroquinas. Estávamos praticamente à vista do nosso próximo propósito.
Em Volubilis, entrámos poucos. Os restantes ficaram junto das motos. O circuito das ruínas faz-se em pouco mais de meia-hora se não nos detivermos nos detalhes dos mosaicos, a ler as placas informativas ou demorar a tirar fotografias junto dos locais mais significativos. Alguns espaços são monumentais, sobretudo a área do fórum, da basílica, e ainda o imponente Arco do Triunfo. À imagem de outros lugares cuja origem não é árabe, não pareceu haver guias e o espaço apareceu mal organizado e particularmente pouco protegido.
Se em Conímbriga já há muito que os espaços mais frágeis estão telhados e outros locais têm o acesso condicionado, aqui não parece haver preocupação de proteger os mosaicos do sol impiedoso, o acesso constante de visitantes aos locais mais importantes, bem como às ruínas da zona habitacional. Merecia melhor sorte.
À saída, despedimo-nos dos Cunhas, dos Leais e do Mariano, que queriam passar ainda durante o dia para Espanha e pernoitar em Porto de Santa Maria. Mais tarde, com o calor a aumentar, parámos para almoçar uma churrascada numa esplanada, em Souk El Arba du Rharb. Foi aqui que se deu o nosso "Alcácer Quibir". Uma prova ciclística, que terminava no cruzamento principal da localidade, vedou-nos o acesso à estrada mais directa para Ksar El Kibir.
Voltámos às estradas municipais, estas bastante degradadas e de cujas obras também estava ausente qualquer tipo de sinalização. As suspensões só repousaram quando chegámos à auto-estrada, sensivelmente entre Casablanca e Larache. E foi numa área de serviço que o Menau teve conhecimento da avaria na BMW dos Leais. As três motos estariam paradas na berma a poucos quilómetros de Tanger.
Na realidade pouco menos de 30 quilómetros faltariam para a cidade, quando parámos junto dos que nos tinham deixado de manhã em Volubilis. Foi ali que o tubo de gasolina da BMW se quebrara. Não havia solução imediata, uma vez que a pressão da bomba de gasolina inviabilizaria qualquer intervenção que não fosse suficientemente estanque.
Daí a pouco, chegava um reboque. Depois de algumas tentativas para recuperar um cadeado mal fechado, os rapazes do reboque seguiram em velocidade reduzida a caminho de Tanger. Entardecia a passos largos e os nossos comPANheiros ainda não haviam almoçado e, pelo que soubemos mais tarde, também não jantariam cedo. A moto foi rebocada até ao porto, entrou à mão no barco e saiu da mesma forma em Tarifa, sendo daí enviada para Portugal em outro reboque.
Nós ficaríamos no Ibis, cujo alojamento repetíamos. Desta feita, porém, pediram-nos pagamento antecipado, não fosse alguém repetir o esquecimento da primeira estadia. No dia seguinte, saímos cedo a caminho de Tanger ainda a cidade dormia, mas onde um traço molhado no pavimento ainda fez "rabear" a Pan. Depois de termos esgotado os dirhams na “propina” do angariador da fronteira, embarcámos no ferry que nos levou de regresso à Europa.
Foi com um café espanhol que nos despedimos de Tarifa. A partir dali, e apesar de termos vaticinado que nos perderíamos todos, tal como há três anos, a verdade é que o único que não nos seguiu foi o Eduardo, que preferiu o itinerário por Cádiz. Ele virou para poente rumo a San Fernando, e nós para leste a caminho de Algeciras.
Optámos pelo mesmo caminho da jornada de partida, agor em sentido inverso, por Algeciras, Medina Sidonia e Sevilha, de onde prosseguiríamos de forma diferente, optando agora, via Zafra, por Badajoz. Almoçámos numa área de serviço recentíssima, por volta de El Ronquillo, e cerca das 4 e meia da tarde, estávamos a atravessar a fronteira onde a gasolina passa a ser mais onerosa.
O vento surpreendeu a nossa passagem na A6. É habitual. Talvez por isso, também seja costume pararmos a meio, em uma Área de Serviço, para o esconjurar. Chegámos a Massamá, a antiga Matmata árabe, a tempo de desmanchar as malas e preparar o jantar. Neste dia, teríamos pensão completa. Agora, é esperar pela próxima jornada. Insha'Allah!
Música: Yes, Mood For a Day
O QUE FICA
De momento, quase tudo, nova e exigente que está a memória. Porém, as recordações não dependem apenas da vontade de as agruparmos, sujeitam-se também à selecção que delas fazemos. E, dessa escolha, dessa multiplicidade, o que fica é, desde já: a exiguidade do espaço de bagagem; a possibilidade de ter levado o saco de depósito, para recolher algumas lembranças; a oportunidade de termos optado por vestuário mais fresco; o ensejo de levar menos peças de vestuário (já me segredaram); não termos levado antibióticos de largo espectro.
Outras memórias, ficam por repetição, ao estilo “lembro-me bem disto!”. Não é difícil recordarmos: a habitual loucura que é atravessar a pé uma rua de uma localidade marroquina, mas sobretudo nas grandes cidades; a simpatia dos marroquinos; a facilidade de encontrar um guia de Medina ou um guarda de estacionamento; a dificuldade de ir além do tema básico do futebol no primeiro contacto; a gasolina mais barata; a rotina da propina na fronteira.
Mas há novidades, como seja: o menor cerco do cliente pelo vendedor; os preços mais elevados face há 3 anos (dizem que por influência dos franceses); uma frase atribuída aos portugueses que diz muito da relação cliente/vendedor (“se queres, queres, se não queres não queres!”); as muitas obras urbanas e viárias; talvez haja mais mulheres na rua (sobretudo nas grandes cidades).
Lá, também é irremediável a presença do espaço, do tempo e da cultura, através dos quais se descobrem algumas diversidades interessantes.
Como sejam, as que se detectam no espaço, por exemplo: as disparidades de piso e trânsito com a passagem da auto-estrada à via nacional, daí ao tecido urbano, daí a certas estradas concelhias; do estupendo vaguear pelas estradas costeiras ao longo do mar (de El Jadida a Essaouira); do estender de quilómetros pelas planícies (de Essaouira a Marraquexe, de Ksar El Kebir a Tanger); do serpentear pelas montanhas (do Médio Atlas, na região de Ouzoud e Ifrane), mas experimentar o trânsito confuso, aligeirar radicalmente a velocidade em estradas que tinham mais buracos do que alcatrão; serviços muito agradáveis (na maioria dos restaurantes e hotéis) e outros deploráveis (um hotel, em particular);
Como sejam, as que descobrem no tempo: onde se passa um conflito entre lentidão e rapidez, sobretudo o vagar dos passos na edina quando sós e a rapidez desse percurso quando guiados; quando o sossego da montanha contrasta com a velocidade da campina; quando a morosidade das esperas (p.e. na fronteira) contraria a celeridade na angariação (de compradores); quando o tempo parece conservar-se nos olhares e nos gestos (ao esperarem ou motivarem para a compra), que contrastam com certos momentos de violência da voz (quando parecem discutir, zangados).
Como sejam, as que se descortinam na cultura, por exemplo: nas estratégias económicas que se percebem na fronteira, nos guias da medina, nos guardas de estacionamento (uma rede organizada de gestão de serviços, coisas e pessoas); como no caso dos produtos/objectos aos quais são atribuídos valores discrepantes, para serem vendidos por valores muito inferiores; como sejam as diversas hierarquias que se vão reconhecendo pelo simples trajecto de um guia (entre patrões e serventes) que altera cumprimentos e prestações mútuas.
Apesar da perspectiva quase compulsiva de ser surpreendido, essa condição tem sido progressivamente atenuada por um pacto que, ainda assim, permite que me maravilhe com pequenos nadas que parecem tanto, tais como: a graça do Kasbah des Oudaias, em Rabat; com aquele conjunto medina/porto de Essaouira; com alguns pedaços da medina de Fez; com os almoços programados ou não, desde o de Casablanca, passando pelo de Oualidia e Meknes; considerando o de Ouzoud tão saboroso e, arrisco, a sorte que tivemos com "o das bicicletas"; com o facto de que Marrocos estivesse tão verde; de beber um excelente vinho de Meknes em Casablanca; da festarola em Meknes; da excelente companhia da Nênê.
Também me sinto admirado de não ter caído redondo depois do almoço na praça de Essaouira; da moto chegar a casa com os amortecedores ainda a amortecer; de não ter sido preso por fotografar a fronteira; de não termos sido expulsos do hammam em Afourer; de não ter sido linchado depois da estrada(?) para Volubilis…
Fica ainda a lembrança dos que me acompanharam que, à imagem de uma espécie de confraria, cevou o espírito de viagem, num ambiente de cumplicidade, contribuindo sobretudo para o bem-estar de todos.
Mas também recordo aqueles que não puderam ir e, evidentemente, todos os que levamos na memória e no coração e, por tanto, nos obrigam sempre a regressar. É por eles que cumprimos o provérbio árabe que aconselha a não construir uma casa no caminho da viagem.
E o futuro? Por que não Atenas? Recuar mais um instante no tempo e no espaço da nossa cultura. Além disso, nesta altura, é consensual que precisam de ajuda.