quarta-feira, 15 de março de 2017

Sitiados


Os “Sitiados” vão tocar, juntos… escreveu-me o Mário Miranda um dia destes. Juntos e ao vivo! Juntos, com muitos dos que com eles tocaram. Apesar de ter sido o primeiro a sair da formação, o Mário é um deles. Acompanhou-os no início e continua com eles. Isso diz muito dele e dos Sitiados.
“Sitiados” era, para mim, “A Vida de Marinheiro”…. e pouco mais. “A Noite” e “O Circo”, talvez. Há anos, não ia além de uma mísera trilogia da música dos Sitiados e da poesia de João Aguardela. Mas, a tempo, aventurei-me por alguns títulos que não conhecia. E gostei. Aliás, é difícil não gostar.
E fui surpreendido… primeiro, com a faceta da intervenção política, prenhe de crítica social, tão notória nas letras, muitas ainda malvadamente actuais. Depois, a forte componente da música tradicional portuguesa, que se foi esbatendo na Linha da Frente, mas reapareceu n’A Naifa.
E fiquei pregado a muitos títulos… sobretudo, pelos textos. O amor e a paixão, o escárnio do quotidiano, a crítica social, principalmente. E também fiquei cravado em algumas músicas. Pelas melodias e pela mudança de ritmos. Foram mesmo os momentos de explosão do ritmo a meio das faixas ou no refrão, que me apaixonaram. E, aquele acordeão, também é emocionante.
Também, por isso, fui… e testemunhei o que havia percebido. Ao vivo, em São Domingos de Rana, num pavilhão pequeno para aquela arte de fascinar os outros. O tributo a João Aguardela foi uma celebração de uma pessoa que foi o cerne dos “Sitiados”.
Aliás, algures dei por mim a perguntar-me… por que não houve continuidade para os “Sitiados”. E a resposta foi dual. Não houve, porque João Aguardela morreu. Porém, continuam a juntar-se, pela mesma razão. Juntarem-se, de vez em quando, para festejar os Sitiados e Aguardela, é capaz de ser uma boa ideia.
O mundo é simples... o Mário encontrou o Resende numa  paragem de autocarro. O Mário levava um baixo e o Resende perguntou-lhe se sabia tocar. O Mário disse que sim. Mais um no grupo. A vida é como as marés, uma leva e outra trás. Uma vida de marinheiro.
O que tinha o João diferente dos outros… foi não querer ser igual aos outros. Como dizia o Ricardo no livro de homenagem ao João, este entendia que ser diferente é “não fazer o que é suposto um gajo fazer”. O João era diferente dos outros. Tinha a vontade de fazer, de fazer diferente. Neste caso, música diferente a que juntou poema inéditos. Era alguém que não queria “morrer sem acreditar”.
O mundo pode ser pequeno, mas também há acasos… tal como João Marques substituiu Mário Miranda no baixo, também o Mário Miranda me substituiu na RTP quando passou a ser ele a fazer a análise do serviço público de televisão. "Estava outro parvo no meu lugar", faixa que nunca tinha ouvido, recordou-me, no bom sentido, que o estar não é definitivo. Muito pode mudar.
Há sítios mágicos… o Restelo é um deles. O João compôs 21 músicas numa casa de banho de uma moradia no Restelo. Na mesma casa onde adaptou um tema dos Mata-Ratos, intitulando-o, "Marcha dos Electrodomésticos", que dizia diversas amabilidades a uma sogra. Dizem que foi uma noite pândega…
E temas fascinantes…  como “Os Dias Sem Ti”, uma balada que vai a tudo o que é paixão, que diz, “os dias sem ti (…), são dias a mais”… como em, “Amanhã”, que vai às quimeras, à alegria de acreditar “numa esperança que resiste”… como em , “Vida”, um tema provocador e estimulante, um grito de liberdade da vida que leva “todo o santo dia a trabalhar”, uma deliciosa ode ao ócio.
A "A Noite" é dos Sitiados… e foram os “Resistência” e os "Xutos" que a tornaram famosa. Ou foram mesmo os Sitiados que a tornaram no que é. "A Noite", foi escrita por Francisco Resende, que diz, "aqui ao lado / ao pé de ti / ao pé do mar / só o sonho fica / só ele pode ficar". É épico.
Ainda não terminei… a leitura do livro do Ricardo Alexandre, “João Aguardela, Esta Vida de Marinheiro”. O subtítulo, “Dos Sitiados à Naifa, a rasgar a vida”, e as mais de 200 páginas do livrodiz muito da personalidade multifacetada, da criatividade exacerbada, da constante procura de inovação e do arreigado sentimento de liberdade do João.
Fiquei também a saber que… houve uma quantidade de músicos e cantores a acompanhar o percurso musical dos “Sitiados”. Muitos estiveram presentes neste Tributo: Francisco Resende, Mário Miranda, Rodrigo Dias, Samuel Palitos, Jorge Buco, Sandra Baptista, João Cabrita, João Marques, Jorge Ribeiro…
Além de outros... como Mitó Mendes, Viviane, Rui Duarte, Paulo Riço e Paulo Costa, e até o Tim, dos “Xutos”, que protagonizou “A Noite”, original de Resende. E Aguardela nao ficou por ali, partilhou outros projectos musicais com Paulo Bragança, Luís Varatojo, Vasco Vaz, Dora Fidalgo, Janelo.
Talvez, um dia, eles voltem… os músicos e os cantores têm este condão. Conseguem juntar-se. E, ao mesmo tempo que festejam a memória, conseguem inovar. E, ao fazê-lo, fascinam. É esse encantamento que faz a festa. E houve festa, uma celebração de amigos, uma festa de pessoas que gosta de música, que gosta de Sitiados, que entoou as canções de Aguardela.


O vídeo em  https://vimeo.com/207623472