terça-feira, 23 de agosto de 2016

Europa 1986 - Côte D’Azur e Costa Norte de Espanha




Andorra era na altura um local de passagem obrigatória:
os preços não deixavam ninguém indiferente
Há uns anitos, (d)escrevi esta viagem num livro que foi um dos pontos interessantes da minha vida. Estávamos em 2003 e a 'Europa-América' julgou interessante a proposta que lhe fizemos, eu o Paulo Mafra, de publicar um livro sobre viagens de moto feitas por motociclistas portugueses na Europa. O livro intitular-se-ia “Viajar de Moto, Destino Europa”.

Recorrer a supermercados era já na altura uma boa opção:
gasolina e refeições eram mais baratas
A descrição da viagem que partilhei no livro daria pelo título de “Destino: Cidade do Mónaco”. Iríamos por Guadalajara, por Andorra, por Arles e Mandelieu. Regressaríamos por Auch, Biarritz, pelo litoral norte de Espanha e entraríamos em Portugal pelo Minho. Foi isto e mais alguns locais que fomos descobrindo pelo caminho.

Mesmo em pleno Verão, era fácil conseguir alojamento com preços acessíveis.
Em França, havia na altura mais de dez mil parques de campismo.
As aventuras e desventuras do percurso começaram logo em Andorra e só terminaram na Galiza. Os detalhes, na maioria divertidos e / ou esquisitos, estão descritos em 30 das páginas do livro. tantos foram que, no epílogo do livro, escrevi assim: “… depois do calor da meseta castelhana, da chuva dos Pirenéus, dos atiradores de bolos franceses, dos bancos franceses fechados, das obras nas estradas bascas, dos jovens ciclistas asturianos, das melgas galegas e das rãs minhotas… muito ainda ficou por declarar”. 

Embora o texto no livro não seja exaustivo, muito do que aconteceu está nessas trinta páginas. Deixo a seguir uma pequena revisão estética da viagem complementada por uma descrição breve do caminho, mas sobretudo dos locais que, na altura, foram uma boa surpresa. Este relato vai mais aos locais - que assinalarei ao longo do texto - do que às peripécias evidenciadas no livro.

Vamos passar pela aldeia fortificada de Mont-Louis, nos Pirenéus, pelo anfiteatro romano de Arles, pelo autódromo de Paul Ricard, dar um passeio tranquilo e dedicado na Riviera francesa, visitamos D'Artagnan em Auch, percorremos toda a costa norte de Espanha, descobrimos La Coruña e acabamos no Gerêz.

PREÂMBULO


Eu ia de calças de ganga claras, um blusão de cabedal da Butimoto Corba e botas de cabedal compradas na feira de Sintra... Para além de um capacete Jeb’s branco, a "pendura" usava um blusão de cabedal também emprestado, umas calças de cabedal inglesas capazes de matar um camelo no inverno de calor e um par de botas de cabedal de salto alto! Estas já sabiam o caminho desde a década passada.
Não fosse uma ligeira brisa a refrescar a tarde...

A moto - como vêem é um modelo relativamente exclusivo para esta altura - ia carregada até às orelhas, com dois sacos. Um por cima do depósito (de dois “andares”), que continha sobretudo sapatos de mulher. O outro na bagageira levava a tenda, os sacos cama, as almofadas. As duas malas laterais Krauser carregavam roupa para quinze dias. Desta vez, não levava cadeiras…


ATÉ GUADALAJARA


Já era de dia quando deixámos Queluz. Fizemos uma primeira paragem em Badajoz que coincidia com a verificação fronteiriça e o primeiro reabastecimento. Já estava um sol abrasador e os cabedais há muito que tinham deixado entrar o infernal calor de Verão da meseta ibérica. Não há quem não fale desta maldição peninsular.

As habituais paragens para abastecimento
 aproveitadas para arrefecer o corpo e o motor
Voltámos a atestar perto de Puerto de Miravent, junto a pequena albufeira do Tejo, onde habitualmente reabastecíamos a caminho de Madrid. Repeti o ritual de abertura do fecho éclair que ligava o saco à base – base que eu tinha desenhado e cortado e mandado coser num sapateiro – levantei o saco cheio de sapatos, aguentava-lhe estoicamente o peso e voltava a fechar o fecho éclair a toda a volta. Um exercício extra em qualquer reabastecimento.

Voltámos a parar em Talavera de la Reina, outro dos locais-chave onde era habitual fazer uma paragem para descanso antes de atravessar o denso trânsito madrileno. Reabastecemos já depois de Madrid. O calor mantinha-se e obrigava a despir o blusão a cada paragem, mesmo que fosse à sombra.



RECTAS E CURVAS DA N II


Em Calatayud, no célebre Paseo Cortes de Aragon.
Saímos de Guadalajara de manhã, percorremos as longas rectas da estrada nacional que passa por Calatayud – vê-se um dos castelos ao fundo, do lado esquerdo, na foto – e se enrola a partir daqui a caminho de Saragoça. 

Regressámos em 2016. Trinta anos depois, voltamos a passar pelo Paseo Cortes de Aragon. Talvez tenha sido por isso que perdemos parte do grupo este ano... 

A partir daqui, só em Saragoça deixamos o encadeado de curvas que acompanha o relevo do maciço central espanhol.
Numa área de serviço da A2 antes de Lerida
Só aqui – desde Setúbal onde a havíamos deixado – volta a auto-estrada. E volta também o calor abrasador que, aqui perto, tem o reforço do deserto de Badenas Reales. 

Almoçámos na primeira área de serviço e voltamos a parar na que antecede o desvio para Lérida.



ANDORRA



Já chegamos tarde a Andorra. Ficámos no hotel Saint Jordi, numa das avenidas principais, situado relativamente perto do centro. 


Andorra La Vella, as motos e as lojas
Aproveitamos o dia seguinte para actualizar o equipamento de viagem. Andamos de loja em loja, depois de já termos reconhecido bastantes na noite anterior. Compramos dois fatos Mototecnica e uma tenda. Pouco mais.

O resto do tempo foi para passear em Andorra La Vella, quer pelas vielas da parte antiga, quer pela parte alta ou pelas ruas principais. 
Mas o tempo não ajudou. O céu ficou rapidamente enevoado e choveu. O almejado passeio de moto pelas estâncias de esqui gorou-se. 

Porém, nesta altura, Andorra era uma Meca de motociclistas. Antes da comercialização em Portugal era ali que podíamos ver modelos que estreavam ou nem sequer eram vendidos no nosso país.

Era frequente e imperioso passar por quase todas lojas e/ou representantes de marcas motos. A Honda, sobretudo, e a BMW já tinham um representação notável em Andorra La Vella.

Depois vinha a atenção aos restantes gagets e equipamentos que ou não conhecíamos em Portugal ou eram vendidos em Andorra a preços acessíveis. 


Hotel Sant Jordi
Entre eles, além dos equipamentos para motos e motociclismo, estavam os relógios, o material de campismo, os artigos ligados à fotografia, o tabaco e mais alguns artigos de marca.

A tarde foi chuvosa a prometer uma noite tramada. 
Não saímos do centro e fomos aproveitando a protecção dos beirais para ir vendo as últimas novidades nas montras. 

Aproveitamos e, tal como em anos anteriores, enviamos o que ficara supérfluo pelo correio para Portugal, desta vez blusões e calças.

De manhã, o sol voltou a brilhar. Embora estivesse frio - mais frio do que era costume em Andorra La Vella - aquecemos a pé à procura de um banco aberto para aproveitarmos o câmbio favorável andorrano.

Quanto mais tempo passava à espera que os bancos abrissem, mais escuras eram as nuvens que iam cobrindo o céu. Depois, até aos mil metros de altitude a paisagem foi compensando a nebulosidade.



PIRENÉUS SOB TEMPESTADE



Deixamos Andorra La Vella com os novos fatos de cabedal mas não tardou a ser necessário vestir os de chuva. Antes de Pas de la Casa, tivemos de parar para enfiar os “macacos” cor de laranja.
No Port D'Envalira a 2400m de altitude

Felizmente havia um posto de abastecimento a quase dois mil metros praticamente no sítio mais alto por onde passava a estrada de acesso a Pas de la Casa.

Lá em cima não era apenas a chuva que nos batia. O vento mas sobretudo o frio foi derradeiro para que vestíssemos os fatos de chuva. 


FORTALEZA DE MONT-LOUIS




À saída de Mont-Louis ainda
sob a ameaça da chuva
Este foi um dos locais emblemáticos da viagem. Entramos em França sob chuva na direcção de Mont-Louis.
Sabia que tinha sido classificada como património mundial mas desconhecia porquê. Percebia-se à entrada: fazia parte de um conjunto histórico-arquitectónico que contemplava as chamadas fortificações Vauban.

Mont-Louis é uma praça-forte que data de finais do século XVII, assim chamada em homenagem ao rei Luis XIV. É a aldeia fortificada mais alta de França, situada a mais de mil e seiscentos metros de altitude. 
Nesta altura tinha pouco mais duzentos habitantes, menos do que as dotações de guarnições que teve ao longo da sua história.

As muralhas fazem lembrar o forte de Santa Luzia em Elvas, também ele com baluartes em estilo Vauban. 
Pareceu-me que vi algures perto do acesso à aldeia uma indicação de existência de uma unidade militar de forças especiais. Uma vez fortaleza, sempre fortaleza…


COLISEU DE ARLES



Mais um coliseu transformado em arena
Arles era o local-chave seguinte do percurso, o segundo “património da humanidade” que iríamos visitar. Situada no delta do rio Ródano, Arles é uma pequena cidade da Occitânia situada numa planície de acesso rápido à Côte D’Azur.

Além de outros monumentos, entre os quais se conta o teatro romano, o criptopórtico sob o fórum e uma necrópole medieval, era sobretudo o coliseu que nos atraía.

Vestígios romanos em cada esquina













O coliseu data do final do século I e albergava cerca de 25 mil pessoas, um colosso se comparado com o Pavilhão Atlãntico – hoje Meo Arena – com a capacidade de 20 mil pessoas…

O edifício é de forma elíptica e tem dois “andares”. Era destinado sobretudo a combates de gladiadores e a eventos comemorativos das vitórias militares. No final da época do Império Romano, foram construídas quatro torres que albergavam habitação e capelas.

Nesta altura, andava-se em cima das paredes das ruínas...
Nós percebemos outro tipo de utilização temporária naquela actualidade que eram as corridas de touros, sem prejuízo de outro tipo de espectáculos, como seja o teatro e a música.


O bilhete só não dava acesso à arena. Andamos escadas acima e abaixo por todos os recantos. Era permitido inclusivamente andar no topo das paredes laterais do edifício, de onde se vislumbrava praticamente toda a cidade mas sobretudo a parte antiga.


Andamos a pé na zona histórica e especialmente os vestígios romanos surgem bem inseridos no tecido urbano. Mesmo apesar da concorrência do anfiteatro de Nimes, ali próximo, este mereceu sem dúvida a nossa curiosidade.

CIRCUITO DE PAUL RICARD


Entre Marselha e Toulon
Fica perto de Marselha, por onde passamos e paramos num banco para trocar os "famosos" cheques de viagem. Mais próximo ainda fica a aldeia medieval de Le Chatelet. 

Paredes-meias com o autódromo fica o aeroporto internacional com o mesmo nome, Le Chatelet.
Palco de muitas provas de velocidade para motos, o circuito de Paul Ricard é famoso por ser aí que se realiza o Bol D’Or. Trata-se de uma prova de resistência durante 24 horas cuja estreia data de 1922!


O circuito é outra Meca do motociclismo europeu, a juntar a tantos locais emblemáticos como seja a Concentração de Faro ou a dos Elefantes na Alemanha, as curvas alpinas ou as 24 Horas de Le Mans, o Cabo Norte ou o Cabo da Roca.

No Circuito de Paul Ricard


Embora nem sempre aí tenha sido realizado o Bol D’Or, o lugar junta um conjunto de características aliciantes, quer no que respeita à proximidade com a Côte D’Azur, quer em matéria de acessos ou de beleza natural.



Realmente, uma das imagens que retive foi a excelência do traçado e do piso que levava ao autódromo.
Imaginei imediatamente o que seria, neste ano de 86, a 50ª edição.


No dia em que vistamos o autódromo corriam os treinos para uma prova do campeonato francês de motociclismo da polícia nacional.
Havia efectivamente 'gendarmes por todo o lado, inclusivamente na pista...



CÔTE D’AZUR


Parque de campismo de Mandelieu

Passar férias na Côte D’Azur era uma espécie de mito, cujo acesso estava vedado ao comum dos mortais. 
Talvez tenha sido essa aura de atractividade que nos puxou para lá.
Sabíamos que em matéria de preços a diferença era de 1 para 4, sobretudo no que respeitava a refeições e alojamentos.
Em Cannes, nas lojas, descobrindo preços extraordinários...

Mas aqui, a opção seria sem sombra de dúvida a de low cost. O alojamento não seria próximo dos grandes centros turísticos e as refeições passariam a ser as mais simples e económicas do mercado. 

O parque de campismo escolhido foi o de Mandelieu e os menus incluíam habitualmente hambúrgueres ou “cachorros”…

O parque era excelente. Tinha sombras suficientes e um pequeno canal com ancoradouro, onde até era possível passear numa “gaivota”.

E a comida fazia jus ao ambiente, numa simpática esplanada numa varanda sobre o parque, era possível degustar desde o croque-monsieur ao patê de canard…

Em Antibes


Aqui, a ideia era passear e ver, percorrer a marginal que ia de Mandelieu ao Mónaco, espreitar as praias e as marinas, parar nas localidades emblemáticas, passear pelas ruas estreitas, sentar nas cadeiras de palhinha dos bistros, entrar nos antiquários, ver as montras das lojas de moda, descobrir panoramas diferentes, sentir o ambiente.


E foi exactamente o fizemos. Primeiro por Cannes, desde o Quai de Saint Pierre à beira do Vieux Port, continuando para o Boulevard de la Croisette, pelas diversas marinas do percurso, até ao Boulevard de Eugène Gazagnaire.
Não sem antes termos parado numa montra que mostrava o preço de uma camisola de alças, decorada com quatro maçãs, seis vezes superior ao que era pedido na feira de Sintra…


Depois, foi fruir do lazer junto ao Mediterrâneo. Escrevi no texto do livro que, “a certa altura, (…) estamos sentados num banco de jardim fronteiro a uma das marinas observando outros viajantes que confiam às velas a mesma fé que nós depositamos nos motores e nos travões das motos”.



E por ali fomos serenamente ao longo da marginal ladeada por amplos passeios e à vista de praias e marinas, num ambiente tão tranquilo como a quietude das ondas mediterrânicas, parando aqui e ali, sempre que o mar obrigava e a estrada deixava de ter saída, distraídos com a passagem de de dois ou três Ferrraris ou à vista de iates com mais de trinta metros.

Ao fundo, o aeroporto de Nice.
Em Antibes, estivemos mais tempo. O ambiente simpático das ruas, dos cafés, das lojas e das próprias pessoas, obrigavam a ficar.
Sentámo-nos, bebemos café, fomos olhando em redor o fluir das pessoas que passavam lentamente e pareciam ter sempre um sorriso nos lábios.

O tempo era de tal modo nosso que andamos nas estreitas vielas, acima e abaixo, ao sabor do labirinto de ruas que levavam às colinas ou desciam até ao mar. Um dia inteiro nisto, ora a pé ora de moto. Sem compromissos. Entre o recorte da costa, a harmonia das casas e o serpentear das ruas.

Um fusível queimado fez-nos perder meia dúzia de minutos mas, naquele cenário, não é preciso ter motivo para parar. Para-se mesmo sem justificação. Até podemos ser levados a parar para assistir à aterragem de um avião na curta pista de Nice. Ou a estarrecer os olhos numa montra pejada de pedras preciosas.



MÓNACO, IMPRESCINDÍVEL NESSA ALTURA



Junto à marina
Depois de uma noite atribulada - descrita com detalhe no livro – havia que cumprir o programa que nos levara ao pequeno estado monegasco. Dizia-se que era ali a coqueluche da época, o lugar onde moravam ou iam frequentemente os ricos e os famosos. Assegurava-se que era melhor do que Torremolinos ou Marbelha.


Curvar nas às piscinas...
Saímos cedo, para desfrutar de novo da marginal. Passamos por Cannes, Nice e Juan les Pins, e ainda trepamos a encosta em Villefranche, de onde pudemos apreciar a paisagem excelente sobre a zona costeira.

Entramos na cidade do Mónaco por um túnel onde o trânsito era proibido a caravanas. Parámos assim que chegámos à marginal. Estávamos no Mónaco. Olhamos em redor e fomos notando uma fiada de cafés com esplanada virados para o Mediterrâneo. Por cima, os prédios iam trepando as encostas.

A baía era simpática e acolhedora, o tempo estava ameno e a luz excelente. Sentimo-nos tão bem na Costa Azul francesa como se estivéssemos na Costa do Sol espanhola. Demos um pequeno passeio à beira mar e subimos para a zona das piscinas. Voltamos a parar para observar o recorte da costa e a “baixa” do Mónaco.

À medida que íamos subindo, o olhar abrangia cada vez mais o litoral e o alcantilado das habitações que reenchiam praticamente todo o espaço disponível. Voltamos a trepar, desta vez para o casino. Estacionámos perto da famosa zona de jogo, num parque com uma estética clássica mas bem cuidado.

Alargamos de novo a vista até Villefranche, onde escalamos novamente as encostas, ziguezagueando entre moradias, através de ruas estreitas. O panorama volta a ser excelente, tendo sido talvez um dos aspectos mais cativantes do nosso périplo pelo principado, paisagem que documentamos em dezenas de slides.


AUCH, TERRA DE D’ARTAGNAN



Se do Mónaco a Auch a viagem poucas estórias juntou, na terra de D’Artagnan já contemplou tostas mistas, uma temporária bancarrota pessoal, uma lareira maior do que a cama dentro do quarto, um jantar receoso, uma escada para esqueléticos, uma terra fantasma.



Mas antes disso ainda pernoitámos perto de Narbonne. Tínhamos urgência em trocar “cheques de viagem” e, para tanto, era preciso fazê-lo numa grande cidade, provavelmente com casas de câmbio capazes de os descontar ao domingo. Mas não, nem uma. Em Auch, tivemos de pedir ao dono do hotel para nos trocar os célebres cheques, depois de termos jantado à conta dessa possibilidade...


Auch é uma cidade simpática.  Tem ruas estreitas, com prédios baixos e antigos em pedra, de dois ou três pisos, com fachadas de cores claras onde se multiplicam estores esguios em madeira. Além dos passeios revestidos de pequenas pedras claras, quase à imagem dos congéneres portugueses.




D’Artagnan está por todo o lado. Em estátuas, na toponímica, nos cafés, restaurantes. Escolhemos até um hotel com o nome dos amigos dele, Hotel des Trois Mosquitiers, o mais próximo da praça central, do edifício da Câmara local e da catedral. Estávamos na zona antiga de Auch, onde algumas das ruas eram exclusivas para peões.



Nesta altura e aqui, o centro da cidade era a referência cultural e geográfica, mas também uma espécie de placa giratória para quem quisesse conhecer a zona histórica. 
Mais abaixo, o rio Gers dividia a cidade mas era também uma outra referência para quem quisesse parar numa esplanada com cadeiras de palhinha à beira rio.


“VELHO” BIARRTIZ



Parque de campismo Esplendid
No dia seguinte, continuamos na “nacional”, aproveitando para parar nas aldeias mais simpáticas do trajecto. Foi aqui que nos apercebemos de uma herança deixada pela Segunda Grande Guerra. A maioria, se não todas as pequenas localidades do trajecto, tinham um memorial com os nomes dos soldados mortos locais no conflito.


No Rochedo da Virgem
Chegamos a Biarritz e avançamos meia dúzia de quilómetros até ao parque de campismo Esplendid, escolhido de três possíveis que não distavam cem metros uns dos outros. 
Julgo que ficamos no que parecia possuir mais sombras. Talvez porque precisavamos de mais fresco, já que o dia havia estado muito quente.

Depois, foi passear pela zona mais turística. Passamos uma ponte para visitar o Rochedo da Virgem, uma pequena ilha onde Napoleão III mandou colocar uma imagem da mãe de Cristo e que também serve de miradouro sobre a falésias e as casas da zona costeira da cidade.

Um dos Casinos de Biarritz
Dali é possível descobrir que muitas das moradias que ficam mais próximo do mar são na realidade apalaçadas, sendo algumas de grandes dimensões. 
Esse facto está relacionado com o passado aristocrático da cidade que, de alguma maneira, se reconhece nos edifícios e nas pessoas.

Entre palacetes e gente bem vestida, carros e restaurantes de luxo, viam-se muitas pessoas de idade, parecendo por vezes estarmos numa zona de excelência para reformados. Não fosse o alcantilado de algumas casas e o acesso à zona central ser feito por escadas, dir-se-ia estarmos num grande centro de dia a céu aberto.  

A boa manutenção dos edifícios reconhecia-se nas fachadas limpas e bem pintadas, na limpeza dos passeios e na decoração dos cafés e nas múltiplas esplanadas dos bistros e dos restaurantes. Almoçamos numa delas. Neste dia, não houve grandes sobressaltos, como era habitual...


Andámos da Grande Plage ao Vieux Port, do Casino Bellevue às Galeries Lafayette. Andámos entre as casas baixas de um bairro de moradias, passámos pela praia e ainda parámos à porta do casino, um edifício pequeno, mas tão bem conservado que parecia ter sido feito há pouco tempo, quando se trata de uma construção com cerca de século e meio.

DA AQUITÂNIA À GALIZA



Da planura da costa...
Nesta altura, percorrer o norte de Espanha junto à costa era coisa para dias. Não apenas pela morosidade do trajecto – com obras nas “nacionais” desde o País Basco até às Astúrias – mas também pela beleza da paisagem, que nos obrigava a parar frequentemente, ora numa falésia, ora junto ao rio que desaguava no oceano. 


...aos Picos de Europa. 
E foi logo após Bilbao que a jornada se tornou excelente rodando sempre à vista do golfo da Biscaia, num sobe e desce simpático que tinha o azul do mar por companhia. Ainda parámos em Santander, num morro fronteiro à cidade, junto do parque de campismo, mas o vento era demasiado para montar a tenda. 
Ria de VIllaviciosa, no parque de campismo

Continuamos para Llanes, onde voltamos a parar. Antes, porém, e sempre que possível, mesmo numa nesga de terra, parávamos a moto e tirávamos uma fotografia, que invariavelmente contemplava o mar, a moto, a estrada e um de nós. 
Andamos nisto até Villaviciosa, onde finalmente montamos a tenda num parque junto ao mar. 

Este dia - exceptuando o acidente com um camião de matrícula portuguesa a que quase assistimos, termos percorrido dezenas de quilómetros em estrada em mau estado e atrás de camiões de obras, a conta do restaurante ter demorado uma eternidade e mesmo a falta a electricidade naquela zona - até foi divertido. 

Continuamos no dia seguinte por Avilés e Cudillero, paramos em Luarca e em mais meia dúzia de lugares, quer urbanos, quer à vista das falésias. 
Só depois de Ribadeo viramos para Lugo, deixando definitivamente as estradas costeiras que deram lugar a rectas mais extensas mas também ao aumento da temperatura.

Pouco depois, entravamos na Galiza onde, num dos reabastecimentos, me perguntaram em bom galego, não se queria o depósito ‘lleno’, em castelhano, mas se o queria 'cheio'. 
A paisagem muda, ficando mais árida, e as cores regressam aos ocres da meseta.

Parque de campismo de Betanzos, Galiza
Como era habitual – a Julieta tomou nota cuidadosamente de todos os detalhes que nos iam assombrando a viagem – não acabamos o dia sem que tivessemos apanhado uma prova juvenil de ciclismo, lenta sob um sol terrível - e a sorte de não estarmos no sítio onde não parou a tempo um carro espanhol que entrou desenfreado num posto de abastecimento.

O pior surgiu já ao entardecer e teve como protagonistas, além da Julieta, um enxame de melgas que bordejam um ponto de água no parque de campismo. 
Tão beras foram as picadas – e o grau de incapacidade para lhes resistir – que fomos obrigados a ir ao hospital de Betanzos de madrugada. A Julieta tomou uma injecção, já com um olho cerrado e a face a inchar significativamente, que só lhe garantiu melhoras dois dias depois.


HÉRCULES NA CORUÑA

Farol de Hércules, La Coruña
Dedicamos o dia seguinte à cidade de La Coruña. Ficamos inicialmente pela zona portuária, próximo de um grande complexo desportivo. 

Entramos num parque, paramos numa praça com um jardim simpático, andamos pelo porto de recreio e terminamos na Torre de Hércules.


Trata-se de uma torre-farol de origem romana, situada num quase istmo da cidade mas cujo espaço circundante é campestre.

Como estava nevoeiro dificilmente se via muito em redor, mas o local era tão bucólico que até contava com algumas vacas que pastavam nas ervas húmidas.


Paramos depois no castelo de San Anton, que dispõe de um museu arqueológico, para observar a distribuição espacial da zona costeira muito recortada, com uma baía muito simpática e a ria de La Coruña anfitriã do porto, da marina local e das pequenas praias da zona leste.

Tão húmido estava o ambiente, que a Honda se "engasgou" por diversas vezes. Só já na estrada para Vigo a moto recuperou daquela humidade radical.

Voltamos ao centro, paramos a moto próximo da Câmara e passeamos a pé pelas ruas da cidade, quer pela marginal, quer pelas ruas mais estreitas no interior. Uma das características mais notórias das fachadas são as janelas, altas, grandes e esguias, divididas numa profusão de vidros que parecem rendas.



DA CORUÑA AO GERÊZ


Olhar sobre a Caniçada
Deixamos a Corunha envolta em nevoeiro e fomos descendo a Galiza à medida que o tempo ia melhorando sensivelmente. 
Só já perto de Tui o sol se descobriu e a temperatura aumentou.


Motociclistas portugueses a caminho de uma Concentração na Galiza
Até lá, a máquina foi-se queixando de tão pouca luz disponível. A maior parte dos slides ficou pardacento, cheios de "grão".

Não espantava que os campos, mesmo no Verão, estivessem viçosos. Mas a névoa ocultava toda a beleza das Rias Bajas, sobretudo junto a Pontevedra e já a caminho de Vigo. 

De pouco valeu baixarmos a velocidade de cruzeiro a que atravessamos a Galiza, uma vez que continuávamos com um campo de visão muito limitado.

Parque de campismo no Gerês
Já em território nacional, mas ainda perto da fronteira, reabastecemos junto de um grupo de motociclistas portugueses que se dirigiam para uma Concentração na Galiza, numa altura em que o sol já parecia estar em pleno auspiciando o retomar do tempo quente.

Apesar das estradas nacionais continuarem a estar em piores condições do que as espanholas, a paisagem minhota consegue ser mais atractiva do que a galega.

Ainda paramos em Ponte de Lima e perto de Prado, após termos andado junto aos meandros do Cávado, para perguntar a direcção do parque de campismo de Vidoeiro, situado depois das Caldas do Gerêz.

Chegamos a meio da tarde, não sem antes termos feito nova paragem à vista da albufeira da Caniçada.

E, como não podia deixar de ser, o dia não acabaria sem que quase nos tivessem revistado a bagagem na fronteira - "têm alguma coisa a declarar?", julgo que foi a última vez que ouvi esta frase... -, a mulher a quem perguntamos o caminho se tenha assustado com a cara da Julieta - ainda muito inchada - e o irmão dela não a ter reconhecido no parque de campismo quando se cruzaram na recepção.

Entretivemos o entardecer a esconder rãs na tenda das vizinhas, três gralhas que não paravam de falar, e o jantar foi numa das tendas mais próximas, passando em revista os últimos dias de viagem.

Acabamos no Manjar do Marquês, a meio caminho de casa, a almoçar com a família. Acabo como terminava o texto no livro:"...depois do calor da meseta castelhana, da chuva nos Pirenéus, dos atiradores de bolos franceses, dos bancos franceses fechados, das obras nas estradas bascas, dos jovens ciclistas asturianos, das melgas galegas, e das rãs minhotas... muito ainda ficou por declarar".