Da partida à chegada, o hábito continua fazer o monge. Quilómetros fartos, paisagens soberbas onde não falta um pôr-do-sol com ganas, refeições saborosas q.b., sítios catitas onde pontua arte sobretudo, conversas agradáveis e até um pezinho de dança em sítios e com protagonistas improváveis.
Surpreendeu o dançarete num casamento em Calatayud, assistir ao Grande Prémio de Itália em Lérida em ecrã gigante, o “milagre” da estrada quase seca na subida para Montserrat, um barman inacreditável em Cardona, o sempre extraordinário medieval em Vic e Besalu, assim como o admirável Dali em Figueres e Portligatt.
Excelente foi também a marginal de Cadaqués e o passeio entre as ruínas milenares de Empuries. De pasmar, a moto no meio das mesas em Tossa de Mar. Barcelona arrasou com Gaudi na Sagrada Família e na Casa Batló. Tarazona surpreendeu pelo conjunto histórico.
Muita gente, muitas motos, algum gin e refeições comedidas em geral. Bons pisos, outros nem por isso, estradas morosas, outras mais céleres. O tempo aguentou-se até ao último dia, de excelente a bera. E muito, muito mais. Algum desse muito, já a seguir, passo a passo.
1 e 2
ROTA DE DALI
DE CALATAYUD A CARDONA
Foi sob o signo da ‘meia hora de atraso’ que passamos uma semana a viajar de moto rumo à e na Catalunha. Embora tenhamos saído de casa à hora prevista, talvez o facto da área de serviço de Palmela estar agora apenas dedicada ao abastecimento de veículos tenha atrasado a jornada.
Por tal, já só fomos beber café a Montemor. Quando chegamos junto do Arlindo, que nos esperava na área de serviço Amal já em Espanha, quatrocentos e oitenta quilómetros depois da partida, levávamos um pouco mais de meia hora ao almoço.
Tapas daqui e dali e fizemos a refeição mais célere. Já aquecia desde o reabastecimento em Talavera la Real e a temperatura foi aumentando á medida que nos aproximávamos de Calatayud. Lá, o tempo parecia de Verão e mesmo à sombra não era preciso casaco.
UM CASAMENTO EM CALATAYUD
Tão notável estava o tempo que o local de encontro no Hotel Castillo de Ayud foi na respectiva esplanada, entre um edifício centenário e um bloco de apartamentos recentes. Saíram dali as últimas da viagem do primeiro dia e as primeiras expectivas para os dias seguintes.
Ao jantar, revimos os dias seguintes mas, desta vez, nem foi preciso muitas explicações. Foi seguir quem ia à frente. Poucas perguntas, para o que é habitual, pelo que a rapaziada desta vez fez os trabalhos de casa para positiva.
Calatayud ainda mostra vestígios de cinco castelos. A norte da cidade o sistema defensivo medieval conta com mais de onze séculos de idade, sendo o mais antigo construído pelos árabes na Península Ibérica. Só pela vetustez merecia uma visita.
Desta vez, porém, ficamos mais por baixo, pela zona mais recente, ainda assim próximo do Passeo de Aragon, um jardim por onde se passava obrigatoriamente no tempo em que a ligação viária de Madrid a Saragoça se fazia unicamente pela N-II.
Ali perto, fica o “casco histórico” que integrou uma judiaria e ainda hoje encerra alguns edifícios religiosos, declarados património da humanidade da arte mudejar. Espreitamos pelo menos uma torre nesse estilo que devia pertencer à igreja de Santa Maria.
A noite levou-nos pelo hotel Mosteiro Beneditino - onde podíamos ter ficado se houvesse vagas para todos e a luz indirecta fosse mais recatada. Por isso, à noite, seguimos até à Plaza de S. Francisco e fomos beber um copo ao bar Avalon.
Nós, os convidados e os noivos - provavelmente já não tão noivos quanto isso - que celebravam a boda em ambiente de discoteca. Embora a música se ouvisse no bar, era na cave que estavam as bolas de espelhos e as lantejoulas.
Daí termos descido e passado ao dançarete, actividade que foi excelente para preparar as pernas para alguns passeios pedestres que não deixamos de cumprir à conta de Dali e de Gaudi. A digressão começou em festa.
DA SÉ AO ROCK, EM LÉRIDA
Deixámos o hotel com pouco menos de meia hora de atraso face ao previsto. Afinal, nesta manhã o objectivo era chegar por volta do meio-dia a Lérida, de modo a podermos visitar a respectiva catedral e a fortaleza que a envolve, bem como usufruir da paisagem que se disfruta desde o miradouro.
Depois de uma tentativa frustrada de nos perdermos ainda à saída de Calatayud, efetuámos apenas uma paragem para reabastecimento numa área de serviço da AP2 em Pina del Ebro, a partir da qual passamos a analisar o comportamento de uma das Pans cujo depósito tinha agora bastante gasóleo.
Chegar à colina onde estão situados o castelo e a catedral não é fácil. Há que atravessar um bairro onde foi o GPS que liderou e nos conduziu ao enorme parque de estacionamento do complexo. Em cerca de 30 anos – última vez que aqui havia estado – muito mudou para melhor, pelo menos no enquadramento paisagístico do lugar.
O principal edifício de Lérida é a sua Sé Velha, uma igreja românica gótica que foi construída no início do século XIII e que se destaca por ter uma planta fora os cânones da época, ao localizar o claustro na frente do edifício. Perto, ainda sobrevivem as ruínas da muralha da cidade velha, bem como alguns muros de Zuda, uma fortaleza árabe do século IX.
É mais ou menos isto que dizem os roteiros. Só não especificaram onde é a entrada da catedral. Talvez só abrisse a partir da recepção do castelo, já que todas as portas da catedral estavam fechadas. Por isso, ficámos pelo exterior onde é perceptível a antiguidade do complexo, a existência de um claustro com vista para o exterior e as muralhas que a cercam.
Como já estávamos atrasados, seguimos para o MagicRock um restaurante situado numa das principais avenidas de Lérida cujo logotipo faz lembrar – e julgo que propositadamente, já que os donos são “moteros” – o da Harley-Davidson.
Foi lá que assistimos ao Grande Prémio de Itália e ao despique entre Rossi e Lorenzo, projectados em ecrã gigante, enquanto nos batíamos com caracóis assados na grelha – um dos pratos típicos de Lérida (o outro é um cozido semelhante ao nosso) – e com uns chuletons de ternera.
Quando saímos de Lérida já tínhamos um pouco mais de meia hora de atraso. Sabíamos que a seguir tínhamos um percurso em autovia pelo que podíamos recuperar aí andando um pouco mais depressa. Todavia, não é fácil manter coeso um grupo de quinze motos, sem que uns achem que a velocidade é demasiadamente elevada e outros sintam alguma sonolência.
PELA TRANQUILIDADE DE MONTSERRAT
Tomámos a A2 e saímos para a nacional já perto de Montserrat, quando o céu ainda estava negro de chuva por trás da montanha. Começamos a trepar com a estrada molhada e no cimo ainda se notava que tinha chovido há pouco tempo.
Aparentemente safamo-nos de uma boa carga de água e ainda conseguimos estacionar as motos perto do complexo monástico. De cima dos monólitos - formações rochosas decorrentes do choque de placas tectónicas cujo redor sofreu uma erosão significativa – a paisagem é soberba.
Estamos a mais de 720 de metros de altitude – nota-se bem quando se vislumbra o vale – e há picos que vão a mais de 1200. Os trens de cremalheira vão até lá. O comboio fica a meio caminho. É apanhá-lo em Barcelona ou no sopé da montanha e sair quase em frente de uma aprazível doçaria.
Ainda há cerca de oitenta monges beneditinos, uma das ordens com regras mais severas, no complexo monástico. Não os vislumbramos mas havia um clérigo que rezava em voz alta na catedral que, não mostrando a sumptuosidade de muitas congéneres, é clara e harmoniosa.
Para além do museu, que encerra obras de El greco, Picasso e Dali – era a hipóteses de começar o roteiro Daliano por Montserrat – o complexo monástico possui uma biblioteca tem cerca de 300 mil volumes e é costume ouvir a horas certas um coro de pequenos cantores.
Apesar do complexo ter sítios interessantes e diversificados, como sejam, o portal da muralha, a Praça de Santa Maria, o claustro gótico, o miradouro da praça e a basílica – que visitamos – também possui sepulcros, um baptistério e o antes mencionado museu que encerra peças de arqueologia, obras de pintura, escultura e desenho.
Trata-se de um local tranquilo, nesta altura sem grande agitação e com poucos visitantes, que possui uma paisagem ímpar, espaços interiores e exteriores agradáveis, alguns sítios com um toque gótico e ainda uma extensa rede de percursos assinalados dedicados a passeios pedestres.
De Montserrat a Cardona são pouco mais de meia centena de quilómetros. Escolhemos a estrada nacional, todavia com trânsito lento devido à extensão do traço contínuo e também decorrente de um acidente entre um carro e uma moto.
UM BARMAN ESPECIAL EM CARDONA
A partir de Manresa a estrada continua com bom piso e deixa de ter trânsito. Aproveitamos quase todos para reabastecer e fazer os pouco menos de vinte quilómetros que nos separavam de Cardona, local de pernoita neste dia. À chegada o castelo estava iluminado pelo pôr do sol.
Subimos para o castelo, percorrendo a sinuosa estrada de acesso, ultrapassando alguns ganchos que nos levaram à muralha exterior. Dentro da muralha interior está situado um dos Paradores mais caros de Espanha de onde se vê todo o burgo de Cardona.
O hotel Bremon estava a um par de minutos, dispunha de uma parque de estacionamento fronteiro e de uma garagem praticamente exclusiva para as motos, em cuja entrada e saída era preciso ter atenção para não raspar os capacetes na ombreira do portão.
O hotel de gestão praticamente familiar foi o mais simpático da jornada. Sem grande luxo ou mesuras, conseguia criar um ambiente familiar, servir bem e ter uma localização excelente. Talvez tenha sido o hotel que mais agradou em matéria de conforto pessoal.
Foi lá que jantamos distribuídos por duas mesas próximas. A seguir, fomos pelas ruas estreitas e praticamente desertas descobrir Cardona “by night”. Depois de descortinarmos alguns túneis sob os pisos superiores das casas mais antigas, ainda desembocamos na igreja de São Miguel, uma construção gótica do século XI.
Mais tarde, a surpresa viria do bar El Celler, onde um barman especial entusiasmou a noite com um desempenho singular. O nosso multifacetado barman conseguiu acompanhar brindes ao Real e ao Barça e foi o animador de uma espécie de discoteca improvisada numa das ruas mais tranquilas de Cardona.
Já não havia ninguém na rua quando regressámos a hotel. Se o dançarete da noite anterior já tinha servido de preparação para os quilómetros do dia seguinte, a animação do bar prometia dar alma aos valentes protagonistas desta noite. O desempenho ficou registado em vídeo, tal como estes dois primeiros dias de viagem, em
https://vimeo.com/169294131