sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Douro. Do Vesúvio à Régua



Descemos lentamente os socalcos que vêm desde Numão. No caminho, uma placa recordava estarmos na Paisagem do Douro Vinhateiro, património da humanidade. À medida que descemos percebe-se porquê. Basta olhar.  
Mais abaixo, o Vesúvio. A estação, aliás o apeadeiro – que não costuma ter muitos fregueses – estava plena de clientes e bagagens. Novos e menos novos, mochilas, malas e sacos, amontavam-se à sombra de um abrigo exíguo.
Ali o Douro estende-se demoradamente de uma margem à outra como um espelho tranquilo esverdeado. O sossego chão é apenas sulcado por um barco que leva em cima um pequeno hotel. Na margem de lá distinguem-se duas ou três quintas iluminadas pelo sol.
À hora certa, o comboio apareceu. Ir para olhar paisagens e ficar bloqueado por uma barreira opaca de mau gosto é tramado. Já sabíamos que tinha sido vandalizado por grafitis. Por isso, escolhemos lugares cuja janela não estivesse pintada. Já basta os reflexos do vidro…
Mas nem isso belisca o deslumbre que a paisagem nos incute. O rio, as margens e o céu. A quietude do Douro, os socalcos do declive, alguns flocos alvos sobre um azul perfeito. É sobretudo a proximidade da terra e a água e os traços da cultura da vinha que fascinam.
Vamos ao lado do rio, a dois, três metros da água. Imagina-se imediatamente cenários invernosos mais radicais… O leito avança pelas gargantas mais esguias proibidas (até) à vinha. Uma e outra quinta, um e outro túnel, e o rio, sempre envoltos numa cumplicidade de verdes que os reflexos do vidro vão esmorecendo.
O encanto do Douro percebe-se na viagem até ao Pinhão. Raramente o rio fende as margens para roubar espaço às arribas. A sua soberania está no caudal possante e volumoso. Depois, é como se as falésias relaxassem e cedessem aquele ímpeto encovo.
Fosse o ritmo do comboio o da respiração, subisse a composição por instantes uma arriba, perpetuasse o silêncio da paisagem e seria provavelmente a antecâmara do Paraíso. Tudo por dez euros na ida e outros tantos no regresso.
Depois do Pinhão, as falésias moderam a altivez. Os socalcos mantêm a harmonia acompanhando cada curva de nível. Só falta a linha do Douro romper por entre a vinha, o comboio reduzir a marcha e consentir deitar a mão a um cacho de uvas.

RÉGUA

Na Régua, depois da ponte, aparecem algumas silhuetas sinistras de prédios que, como os grafitis do comboio, revelam um particular mau gosto. Melhor estiveram os aperitivos que acompanharam um moscatel, já em boa companhia. Mais tarde, voltámos ás provas, já no exterior do museu do Douro, mas não fomos tão bem sucedidos.
Distinta pareceu a capela da Santa Casa da Misericórdia – capela do asilo (?) - cujo telhado da torre parecia “mudéjar”. Porem, não foi fácil distinguir a identificação ou o préstimo do edifício, situado numa rua onde com a Casa do Douro, eram os dois únicos edifícios que se salientavam.
Junto ao rio, próximo dos cais, o ambiente é mais cosmopolita. Os barcos entram e saem lentamente e têm fregueses. A referência é o rio, que se alarga até à outra margem onde há pouca freguesia.

CASA DO DOURO

A Casa do Douro apareceu de repente no caminho. Disseram-nos que valia a pena ver o vitral em tríptico. É do artista Lino António e representa a dinâmica da região ligada ao vinho e à vinha. A escadaria de acesso ao vitral e o salão nobre também surpreendem. No entanto, em certos espaços havia pouca luz, cores escuras, uma decoração algo vetusta, que não atraíam.


MUSEU DO DOURO


O museu também, o do Douro, que guarda memória e mostra a identidade da cultura vinícola da região. Visitámos a exposição permanente intitulada, “Douro: Matéria e Espírito”, que faz também as sínteses da temporalidade e do ambiente geográfico da região demarcada.
Dá também um toque no Douro pré-histórico – Foz Côa oblige – e na época romana – fragmentos de mosaicos de piscinas. O resto é dedicado à vinha e ao vinho: reproduções de barcos rabelos, dispositivos de destilação, garrafas, rótulos, impressoras de rótulos, naipes de odores, engarrafadoras.
Fora do museu, num pequeno jardim virado para o rio, o bilhete oferecia uma prova de vinho do Porto. Embora agradável, foi mais um aroma do que uma prova. Não fosse o cenário e a companhia, sairíamos defraudados.


REGRESSO

Malogrados, porém, foram os esforços do pessoal da estação da Régua. À parte a decoração hip-hop do exterior dos comboios, os geradores também não estão afinados para aquelas temperaturas. O do nosso comboio, disseram-nos, não permitia ligar o ar condicionado…
… afinal, nem sequer conseguia dar energia ao gasóleo da máquina. Entre despejar os passageiros das últimas carruagens de outro comboio e separá-lo para cada metade seguir para seu lado, o abandono da ideia e a chegada da última composição para a estação do Pocinho, foram mais de duas horas.
O intervalo obrigou a passar pelo contentor / casa de banho e experimentar uma fetidez tóxica, triste e pútrido cartão-de-visita de um espaço que junta muita gente que percorre a linha do Douro.

Nesta altura, a maioria são turistas e muitos são estrangeiros. Houve quem tenha preenchido uma página do livro de reclamações e percebido que os problemas são recorrentes. Felizmente, a paisagem reforça a esperança de que um dia a viagem será feita a horas. 


Música: "O Olhar", Madedeus