Ao princípio é deslumbrante,
quando visto à distância do desconhecimento. Depois, mais próximo, reforça-se o
encanto. À medida que a vizinhança se estreita, parece que deixamos de ver e a incerteza instala-se. Depois,
junta-se o constrangimento, pode surgir a vergonha e a frustração.
Procura-se
corrigir, encontrar alternativas, descobrir soluções. Em geral, progride-se e
retrocede-se, como se de uma escada se tratasse. Alguns degraus, porém,
continuam a ser difíceis de escalar. Outros, após descidos, dificilmente se
recuperam. Diz-se que é difícil, por vezes parece impossível. Estamos perante
um dilema, mas também devante de um desafio.
A aprendizagem tem
destas fases, quer seja nas artes, nas ciências ou no desporto. A prática do
Aikido não é excepção. Procura-se “fazer o que deve ser feito”. Age-se de outra
maneira, em outro dia, com outra pessoa. Emenda-se a posição, faz-se mais
devagar, respira-se mais pausadamente. Surgem resultados positivos, mas também
pode tombar o edifício da prática sob uma descoordenação imensa.
Pergunta-se: por
que é tão difícil o Aikido? Por que é tão complicado praticar a Arte da Paz? A
resposta pode ser morosa e/ou complexa. Por tal, é necessário procurar
alicerces sólidos que permitam perceber os respectivos fundamentos. Eu fui
procura-los na cultura japonesa.
Estou convencido
de que, um dia, conseguirei elaborar um texto mais consequente e interessante
sobre a Arte da Paz. Por enquanto, não o faço. Escudo-me na minha inabilidade
para “fazer o deve ser feito”. Protejo-me da ‘vergonha’ que sentiria por, ao
fazê-lo, não estar suficientemente apto para o compor.
Entendo todavia que
a abordagem de um tema que envolva pessoas e a maneira como estas interagem
entre si e com as actividades em que participam, se possa analisar e
interpretar com recurso ao conhecimento da sociedade a que pertencem os
actores, mas sobretudo conhecendo o palco da cultura onde aqueles actuam.
Por tal, a minha
opção foi revisitar uma obra, “A Espada e o Crisântemo”, escrita pela
antropóloga americana Ruth Benedict que, abreviando, estuda os modelos de
comportamento da cultura japonesa, sintetiza o conjunto de costumes, a ética e
os deveres morais que a identificam.
Fê-lo numa época
em que, durante a Segunda Guerra Mundial, os americanos se debatiam com muitas
dúvidas sobre a cultura japonesa, traduzidas nas acções incompreensíveis dos
soldados japoneses.
Farei por tanto
uma visita à cultura japonesa, uma herança ancestral sobretudo de origem
chinesa, baseada na hierarquia, na organização clânica, na religião xintoísta e
budista. Proprietária de
uma caligrafia trimodelar, a cultura japonesa desenvolveu um conjunto de artes
especiais, que vão desde os arranjos florais às artes marciais, passando pelos
rituais do chá, pela literatura, por técnicas artesanais, teatro, por música e
por culinárias exclusivas.
Opto também por
fazer algum paralelismo, identificar e explicar sucintamente, sempre que
possível, algumas concordâncias e semelhanças com a prática e a teoria do
Aikido, uma arte marcial não-violenta que nasce dentro da cultura japonesa e
que funde sobretudo as perícias marciais dos antigos samurais.
Baseado em
movimentos fluídos e dinâmicos em círculo e espiral, o Aikido, criado por
Morihei Ueshiba, tem como principal característica a não-resistência à força e
capacidade de esquiva, projecção e neutralização do opositor.
Nesta matéria,
utilizarei como apoio didáctico a obra, A Arte da Paz, escrita por Morihei
Ueshiba, conhecido como O Grande Mestre, O’Sensei. O livro contempla a
existência, articulando natureza e cultura com enfoque nos três princípios do
Aikido: harmonia, energia e caminho.
Escrito em
linguagem poética, constituiu-se como um conjunto de ensinamentos que pretendem
ser um guião para a vida, realçando as virtudes capitais e o método de as
alcançar.
O livro de
O’Sensei encerra um grande número de conceitos: a vida, a cólera, o universo, a
criação, a paz, o espírito, a desordem, a energia, o vazio, a fluidez, a
economia, a respiração. E articula um vasto conjunto de temas: o nascimento e a
morte, o vazio e a energia, a vitória e a frustração (derrota), o céu e a
terra, o bem e o mal, a natureza e a cultura.
Creio poder relacionar
os conteúdos das duas obras, mas encontrar sobretudo no livro da antropóloga
americana os suportes culturais que procuro para perceber alguns teores do
Aikido. É a isso que venho, à cultura.
A abordagem
seguinte destina-se sobretudo aos praticantes de Aikido e aos interessados na
cultura nipónica, em particular, bem como aos adeptos das artes marciais e
potenciais interessados nas questões existenciais, em geral.
A NOSSA HUMANIDADE
Uma das nossas
características enquanto Homens é a de possuirmos a capacidade para fazer
perguntas, de questionarmos o mundo, as coisas e as pessoas do mundo. Esta
aptidão é uma das particularidades que nos distingue dos animais. E também de
outros homens.
É da dúvida que
surge a questão, que emerge a pergunta. É o resultado dessas perguntas que nos
orienta, que nos identifica, que nos organiza enquanto Homens. São as respostas
que nos aquietam e fundamentam. Seja no que for.
Foi assim no
princípio do mundo, quando surgiram as primeiras perguntas. (E as primeiras
respostas). É assim também no princípio da vida. Hoje, as diversas questões
primordiais continuam válidas tal como a pluralidade das respostas.
O que somos? Para
que vivemos? Quem somos? Para onde vamos? Quem é o outro? São questões /
problemas universais que muitos já colocaram, para as/os quais há inúmeras
respostas / soluções. Políticas, económicas, religiosas, sobrenaturais. E
culturais.
Muitas das
informações, grosso modo, que nos vão permitindo construir respostas,
recebemo-las na infância e na adolescência. Com esse conjunto de peças, vamos
construindo cenários capazes de nos elucidar. Adequados por tal a organizarmos
a nossa vida.
Porém, quando se
reatam perguntas ou se reformulam problemas ou, simplesmente, surgem novidades,
voltamos a duvidar, a questionar, a problematizar. É frequente. E não são
dúvidas universais. São questões específicas.
As “novas”
confundem o que está estabelecido, baralham o quotidiano, abalam a
tranquilidade. Ficamos agitados, inseguros, exasperados. Inábeis,
inclusivamente. Parecemos perdidos em terrenos desconhecidos.
Damos com outras
regras, com outras maneiras de ser, de fazer, de pensar. Encontramos outras
maneiras de falar, de nomear, de expressar. Também de reconhecer, de
simbolizar, de identificar. Outro tipo de família, de rito, de troca, de
religião. Outro tipo de cultura. Ficamos surpreendidos.
Até possuirmos um
mapa minimamente elucidativo, progredimos errantes. Vamos recolhendo vestígios,
juntando indícios, mas também vamos colocando questões, fazendo perguntas. O
encontro com essa cultura exige respostas. É uma outra cultura que este texto
contempla.
AS NOSSAS DÚVIDAS
Pouco tempo depois
de “acharmos” o Aikido, surge em muitos de nós um sentimento de inquietude e/ou
inépcia, por vezes de desespero, ao depararmos com um conjunto de procedimentos
que não percebemos e/ou dificilmente executamos e cujo efeito se traduz num
desempenho medíocre se não inútil.
Quantas vezes nos
interrogamos durante a aprendizagem do Aikido sobre a repetição exaustiva de um
exercício, de uma técnica, de um movimento? E com tanta replicação…
Quantas vezes
ouvimos dizer que a aprendizagem do Aikido tem três princípios: fazer, fazer,
fazer? Chegamos a perceber o significado desta profusão de esforços…?
Quantas vezes nos
interrogamos sobre acções ofensivas e intimidadoras da Arte da Paz (em
contraste com outras suaves e tranquilas)?
Quantas vezes
questionamos o porquê da etiqueta ser tão rigorosa e frequente? Tao imperioso é
o controlo do “uke” como são imperativos os gestos de cortesia…?
Quantas vezes nos
dizem para “não pensarmos”, para “esvaziarmos a mente”? E, depois, como
agimos…?
Quantas vezes
indagamos sobre a ausência de aconselhamento de leitura de manuais sobre uma
arte tão complexa? Como a memorizamos…?
Quantas vezes
perguntamos por que uma arte aparentemente fácil é tão difícil de executar?
Já fizemos
seguramente mais perguntas - e continuaremos a fazê-las – sobre as aparentes
contradições do Aikido. Em resposta a muitas destas interrogações, os nossos
mestres vão-nos indicando o melhor caminho para percebermos o Aikido. E para
nos descobrirmos a nós mesmos.
Porém, essas
descobertas não são rápidas nem acessíveis. O confronto com aquele grupo de
regras, com aquele grupo de técnicas, com aquele conjunto de comportamentos e
atitudes, enfim com a cultura do Aikido, coloca-nos durante muito tempo perante
um palco de contradições. O enredo é dificilmente inteligível.
UM QUADRO INCOERENTE
Foi também um
cenário de contradições e comportamentos anómalos que os americanos descobriram
quando enfrentaram os soldados japoneses na Segunda Guerra Mundial.
O exército
americano, que já tinha entrado em combate com as outras duas potências do Eixo
– Alemanha e Itália – haviam estado perante comportamentos culturais
semelhantes aos seus.
Porém, no
Pacífico, os soldados japoneses continuavam a lutar, capazes de enfrentar a
morte a deixarem-se capturar. Ao cair dos últimos anos de guerra, os americanos
estavam perante um exército que ao mesmo tempo que era batido se mantinha
irredutível.
Mas não era apenas
isto que espantava os americanos e não foi só isto que levou os militares a
pedir a uma antropóloga, Ruth Benedict, para elaborar um estudo da sociedade
japonesa numa perspectiva cultural.
A intenção do
estudo ia todavia para além das respostas às questões americanas mais urgentes
e paradoxais. Procurava também conhecer melhor a organização cultural japonesa
face à potencial ocupação americana do território após o fim da guerra.
O MÉTODO DE ESTUDO
Nessa altura, a
antropóloga americana dava enfase a um modo de estudo intitulado método de
observação participante, empreendido por uma sua colega, Margareth Mead, que
contemplava a estada do investigador junto da comunidade onde partilharia com
os autóctones o respectivo quotidiano.
Impossibilitada de
utilizar aquele método, uma vez que os Estados Unidos estavam em guerra com o Japão,
Ruth Benedict recorreu a processos alternativos de estudo à distância,
utilizando a história, a literatura, o teatro, o cinema e outros elementos
culturais.
Além disso,
procedeu a um conjunto de entrevistas a emigrantes nipónicos – nesta altura
reunidos em campos de relocalização e concentração no interior oeste dos EUA –
cujos relatos foram matéria-prima cultural de grande interesse para o estudo.
O estudo partiu
das interrogações que o exército americano formulava, mas avança outras, que
questionavam o facto de os japoneses serem, ao mesmo tempo, corteses e rudes,
conservadores e abertos à inovação, fiéis mas capazes de atraiçoar,
disciplinados e insubmissos em determinadas ocasiões.
Inquiria também
porque é que eram tão afectados pela beleza dos crisântemos mas estavam
dispostos a morrer pela espada. Perguntava ainda como é que os japoneses
pareciam tao pouco interessados pelas regras do bem do mal, mas eram tão
sensíveis às opiniões e juízos dos outros.
Esta demanda dos
padrões culturais japoneses aconteceu há mais de 60 anos. Nesta altura, o Japão
estava, de novo, fechado ao mundo e o ambiente cultural nipónico não se
percebia no exterior.
Morihei Ueshiba
criou e desenvolveu o Aikido entre os anos 30 e os anos 60 do século XX.
Fê-lo no ambiente cultural que Ruth Benedict irá estudar. A designação Aikido
nasce em 1942.
- Nesta altura, já é reconhecível um conjunto de conceitos com que nos vamos familiarizando na prática do Aikido: hierarquia, auto-disciplina, honra, respeito, etiqueta, ética, treino.
Por seu lado, o
estudo de Ruth Benedict contempla sobretudo os conceitos de vergonha, dívida,
virtude e perícia, bem como destaca o sistema de aprendizagem das crianças
baseada na observação das práticas familiares e os comportamentos posteriores
assentes na reprodução dos princípios éticos adquiridos.
Façamos então como
os japoneses, comecemos pelo princípio, pelos
PADRÕES DE APRENDIZAGEM
As Ciências
Sociais defendem de um modo geral que os comportamentos ulteriores são
condicionados em larga medida pela aprendizagem nos primeiros anos de vida e
balizados pelos padrões culturais sobretudo dos pais e das instituições de
ensino elementar.
INDEPENDÊNCIA E
TOLERÂNCIA
No que respeita
aos padrões de autonomia e bondade, EUA e Japão, organizam-se de forma
diferente. A máxima liberdade e indulgência no Japão eram atribuídas às crianças
e aos idosos, enquanto nos EUA se alcançava essa etapa na idade adulta.
A maior repressão
mental era remetida para essa fase da vida do homem no Japão, uma vez que era
nessa altura que se considera estar o homem melhor preparado para suportar e
reagir a um mais intrincado conjunto de dificuldades.
Tal como a maioria
das crianças é desde os primeiros tempos de vida que os pequenos japoneses
aprendem diversas noções comportamentais, assimiladas sobretudo à base da
observação dos pais.
O SER OBSERVADOR
O padrão educativo
japonês tenta por um lado soltar a criança o mais possível – sobretudo no que
respeita ao rapaz - mas, por outro, incute-lhe a tarefa de se auto observar.
A criança japonesa
é educada no sentido de observar os seus próprios actos e julgá-los em função
da opinião dos outros. Não é imediato, trata-se de um processo.
Autónomos mas
contidos, as crianças vão crescendo com essa dualidade e suportando a
vulnerabilidade da apreciação de carácter pelos demais.
É preciso
compensar essa fragilidade com o treino – nos diversos aspectos da vida (na
escola, no desporto, na arte) – para que esse tipo de aprendizagem seja
responsável pelo doseamento do esforço em prol da acção.
- Os ensinamentos que são transmitidos numa aula de Aikido são apenas uma ínfima parte do que é o Aikido. As outras partes, devem ser descobertas pelo próprio praticante através de treino e da prática persistentes.
A oralidade, que
ocupa um papel fundamental nos padrões educativos ocidentais, não é essencial
na reprodução da doutrina e na formação da criança. O pai, sobretudo, apenas
indica ao filho o que deve fazer com gestos simples.
- Durante as aulas de Aikido no Japão reina um silêncio extremo. Não é difícil fazer uma analogia com o sistema japonês de ensino do Aikido, onde se privilegia o gesto em desfavor da palavra. O professor demonstra e os alunos reproduzem.
HIERARQUIA E
ETIQUETA
A concepção de
hierarquia é também aprendida pelos mais novos através do reparo na atitude e
representação do pai que é posta em conflito com os comportamentos infantis dos
filhos.
Mas também pela
posição de relevo que o pai assume em casa, onde mãe e avós o servem e a mãe
insiste no respeito que lhe é devido.
No tratamento
deferencial, não basta porém saber ante quem um indivíduo se deve inclinar, mas
também quanto é necessário inclinar-se e em que circunstâncias sociais.
Além da hierarquia
de classe, há que ter em conta o sexo, a idade, os laços familiares. Neste
capítulo, há uma ordem que sujeita a mulher a baixar-se mais do que o homem, os
mais novos mais dos que os idosos, a mulher mais do que o marido, um cidadão
comum mais do que um militar.
- O Aikido baseia o seu sistema de ensino numa hierarquia de conhecimentos, aos quais junta práticas de auto-disciplina (com algum auto-sacrifício), ética e movimentos circulares, em prol da perícia.
VERGONHA
Uma das mais
violentas dificuldades com que o homem japonês se bate é a vergonha (haji), a
vergonha social sobretudo ligada à honra e ao respeito.
As crianças
japonesas não sentem vergonha, daí resultando parte importante da sua
felicidade. Diz-se que um adulto que não sinta vergonha é destituído de
decência. Um adulto sem vergonha é uma criança.
Regressaremos ao
tema mais à frente.
A AGRESSIVIDADE
Desde crianças que
os japoneses aprendem que a ofensa com um insulto (por exemplo, quando dirigida
ao giri devido ao nome), é uma virtude. A reacção face ao insulto, enquanto
crianças, liberta a agressividade para fora.
Porém, aos meninos
a quem foi ensinada e autorizada muita agressividade para com a mãe e irmãs,
assim como face aos seus colegas de escola, é deixada para a adolescência a
condução da agressividade para si próprios.
- Morihei Ueshiba escreveu, “Controlar a agressividade sem causar danos é a Arte da Paz”, numa alusão à necessidade de auto-controlo.
A COMPETIÇÃO
Disputas e
desafios fazem parte do mundo escolar. Durante a escolaridade básica, a
competição e a rivalidade é severamente atenuada.
Porém, à medida
que as crianças crescem e entram no liceu, a competição entre colegas é levada
ao extremo. Em certos casos pode motivar suicídios.
Esta competição
não cessa e pode alargar-se à vida militar. Muitos casos de vexame, injúria,
rebaixamento, servilidade forçada, criam sentimentos de vingança sendo
necessário tirar desforra.
Como para os
japoneses a vingança é uma virtude, a vontade de desagravo é mantida até “não
deixar nada por fazer”, condição a que voltaremos mais à frente.
- Não pode haver espírito de competição entre os praticantes de Aikido, uma vez que um dos objectivos da arte não é derrotar o adversário, mas sim, lutar contra os próprios instintos hostis, apurando a sua própria técnica e transpondo as suas limitações.
RELIGIÃO E CULTO
DOS ANTEPASSADOS
A aprendizagem da
doutrina mas sobretudo da prática religiosa é feita mediante a observação da
prática dos pais. O culto concentra-se em redor dos sacrários budistas e
xintoístas no próprio lar, local onde também se reverenciam os antepassados.
- O agradecimento ritual ao O’Sensei antes de iniciar uma aula e no seu final, não é dirigido apenas ao mestre Morihei Ueshiba, mas também aos seus antepassados, como foi recordado pelo Sensei Agostinho Vaz por ocasião de um workshop na Escola Naval.
Herança chinesa, a
homenagem devida aos antepassados clãnicos – são reconhecidas seis ou sete
gerações anteriores, embora no caso japonês apenas os mais próximos – é proporcionada na sala de estar da família
diante de um pequeno altar simbólico.
- A presença da imagem do O’Sensei nos dojos de Aikido bem como a saudação “Rei”, fazem parte desse ancestral culto dos antepassados. No caso do O’Sensei, agradecem-se os ensinamentos primevos (OSensei Ni Rei), tal como aos antepassados se reconhecem os ensinamentos antes transmitidos.
A GUERRA E A CULTURA
As contradições
entre os envolvidos na guerra do Pacífico também foram reflexo da sua própria
alteridade cultural. A ideia nipónica de que a guerra devia colocar o Japão,
pelo menos, como líder do mundo asiático – uma concepção de hierarquia - contrastava
com a constatação americana da agressão japonesa ter sido um atentado à paz
mundial.
Os japoneses
sempre acreditaram que o seu espírito combativo – alavancado por um
investimento excepcional em armamento (metade do seu PIB) - dominaria a matéria
americana. Na derrota, os japoneses admitiram que o seu espírito podia ter sido
aperfeiçoado, caso a auto-disciplina tivesse sido potenciada.
ENSINAR O ESPÍRITO
A noção de
auto-disciplina dos soldados japoneses foi considerada ímpar. Contava-se
durante a guerra uma estória heroica de um comandante de esquadrilha que após
terminar o seu voo e feito o relatório diário, caíra morto.
Quando lhe
pegaram, o corpo estava frio, indício de que havia redigido o seu relatório já
cadáver. Isto traduzia a sua auto-disciplina, uma vez que, já moribundo o seu
espírito de sacrifício o levara a preencher o documento.
- Sabemos que nos dojos de Aikido mais tradicionais, mesmo fora do Japão, o rigor da limpeza e da arrumação não é uma tarefa de outros, mas sim dos aprendizes de samurais mesmo que estes já sejam adultos ou mesmo idosos.
FAZER O QUE DEVE
SER FEITO: HONRA E AUTO-DISCIPLINA
Uma das muitas
perplexidades dos americanos durante a guerra era a da falta de hospitais na
frente de batalha e a escassez ou inexistência de dispositivos de segurança a
bordo de barcos e aviões de combate japoneses. A assistência aos feridos era
péssima. As preocupações e o tratamento do corpo não tinham qualquer urgência.
Existe uma noção
arraigada de dever individual na cultura japonesa. A consciência pessoal do que
deve ser feito por si mesmo, ou seja o dever de cada um cumprir o que deve,
leva cada um a não precisar de se preocupar consigo mesmo. O que deve ser feito
é a tradução da auto-disciplina, fundamental na vida e na morte.
Outra perplexidade
face ao comportamento japonês era o facto dos soldados japoneses lutarem até à
morte e poucos se renderem. Muitas vezes, o soldado japonês que se rendia
levava consigo alguns dos seus captores, suicidando-se logo após. A rendição
raramente era opção.
Nesse âmbito,
auto-disciplina e honra andam a par, também apegadas à vida e à morte. A
acontecer, a rendição causava a “morte” do rendido. Uma morte metafórica, mas
todavia o fim de um padrão de comportamento.
RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE
A sociologia e a
antropologia reverenciam o tema. É uma espécie de reinvenção da economia,
colhida no terreno da cultura. As questões da reciprocidade, da dádiva e da
contra dádiva, das dívidas cerimoniais e das obrigações éticas, têm sido
objecto de estudos, ensaios, livros e continuam a ser dos temas mais discutidos
no seio das ciências sociais.
DÍVIDAS ANCESTRAIS
Nós, ocidentais,
sempre percebemos que herdamos o passado. Enquanto produtores da nossa
história, sentimo-nos herdeiros dela. Ao contrário, os japoneses pensam que não
herdaram o passado, sentem-se devedores da história.
Os japoneses
admiram e respeitam o tempo lento e de aprendizagem. É nesse tempo que
reconhecem ter aprendido o conhecimento dos antepassados. É com eles que
contraem uma dívida, não com a história. Para eles, o débito passado é para com
os ancestrais.
- A aprendizagem do Aikido não é um processo imediato, é um sistema progressivo mas lento, com procedimentos de cópia e reprodução sistemática. Em cada aula, agradecem-se os ensinamentos do mestre fundador, dos seus antepassados e dos mestres actuais. O cerimonial de reconhecimento mostra a existência de uma dívida.
O “ON”
A cultura japonesa
reconhece que quem é hierarquicamente responsável deve ter crédito. Essa
ratificação implica que os dependentes sejam seus devedores. A dívida
intitula-se “On” e significa ”obrigação”, mas também “lealdade”, “bondade”,
“amor”, e envolve um ónus face a outros, uma responsabilidade social.
Essa obrigação é
para com aqueles cuja hierarquia superior assim o determina: pais, professores,
superiores hierárquicos da empresa, até à entidade hierárquica mais elevada, o
imperador.
- Neste contexto é fácil perceber a responsabilidade de um Sensei. A saudação ao Sensei não mostra apenas respeito mas dívida. A dívida faz parte da cultura japonesa. E parte da etiqueta do Aikido. O “domo arigato gozaimashita”, uma saudação que corresponde ao nosso “muitíssimo agradecido/obrigado”, é uma forma polida, educada e reverencial de agradecer os ensinamentos do mestre e aos companheiros de treino.
Como dívida, o
“On” é um processo que obriga à lealdade, a uma contrapartida, uma contraprestação
por tudo aquilo que o outro, (superior), fez para nós. Um On que celebra uma
relação de dependência e nunca diminui. Exagerando, poder-se-ia dizer que o On
se evita, ou seja, que se acautela ficar numa relação de subordinação.
Entre os
japoneses, a gentileza obriga a uma contrapartida de gentileza, o auxílio a uma
contraprestação de auxílio. Ao ser-se gentil ou ao ser-se prestável cria-se uma
situação de dívida que, à partida, não é possível saber se se pode cumprir.
Auxiliar um japonês pode criar uma relação de dependência, dívida que ele pode
não querer subscrever.
- Muitos dos potenciais leitores devem lembra-se do evento onde a ACPA esteve presente e que teve lugar no Palácio Foz por ocasião do tsunami/desastre nuclear de Fukushima. Nessa altura, os japoneses organizaram uma venda de objectos cujo rendimento se destinava a ajudar as vítimas da catástrofe. A atitude dos vendedores nunca foi empenhada em agradecimentos. Para além das sempre enigmáticas expressões faciais nipónicas, era perceptível essa aparente indiferença, uma aparente apatia que não motiva a compra. Uma questão de acautelamento de uma dívida…?
O UNIVERSO DAS
CONTRAPRESTAÇÕES
Apesar de os
japoneses dizerem que nunca será possível pagar um décimo milésimo do “On”,
este não está isolado no sistema de obrigações continuadas da cultura japonesa,
conhecido por “Gimu”.
Do Gimu” fazem
parte, além do “On”, sobretudo face ao imperador; o “ko”, para com os pais e
antepassados; o “daino”, devido aos professores; “o ninmu”, face ao trabalho; o
“giri”, um débito com prestação equivalente, por exemplo o “giri para o nome”,
a obrigação de limpar o nome, o dever de vingança, o dever de defender a honra.
A REPUTAÇÃO
O “Giri ligado ao
nome” é o dever de manter a reputação intacta, sendo a reputação, por um alado,
o que os outros pensam e/ou dizem de nós. A reputação é uma espécie de honra de
si mesmo atribuída pelos outros, em que o nome responde pelo todo do eu.
- Miyamoto Musashi, no Livro dos Cinco Anéis, encontra uma expressão paradigmática para este dever: “A vida de alguém é limitada; a honra e o respeito duram para sempre”.
A defesa da
profissão e a resignação na dor também estão ligados ao “Giri devido ao nome”,
bem como o equilíbrio e o auto-controlo em situações de conflito ou acidente.
Daí ser invulgar nessas ocasiões surpreender lamentações, correrias ou pânico.
- As imagens do tsunami que assolou o Japão em 2011, a que se seguiu o acidente nuclear de Fukushima, e que fizeram quase 20 mil mortos, raramente mostraram pavor ou lamúrias. Nas diversas reportagens que foram emitidas pelas televisões ouviam-se a espaços muitas expressões de surpresa, espanto e de inquietação, mas não de pânico ou desorientação.
SISTEMAS DE
MEDIAÇÃO
Os japoneses
dispõem de alguns sistemas de mediação capazes de minorar, evitar ou regular
conflitos. Vejams alguns dos mais relevantes.
Saber o seu lugar.
O sistema hierárquico, que já abordamos, tenta reduzir ao mínimo a competição.
Cada um deve ocupar e defender o seu lugar, não entrando em confronto nem
ocupando o lugar do outro. Para os japoneses os exames são momentos decisivos
em que a pressão de falhar se agiganta.
O mediador. Outro
sistema de mediação é a utilização de um intermediário. Em situações em que
seja possível por um terceiro atenuar o conflito, entra a figura do negociador.
Etiqueta. A
criação de um conjunto de regras, é susceptível de evitar situações causadoras
de vergonha e por isso passíveis de acarretar giri ao nome. A cortesia faz
parte dessa etiqueta e tem como objectivo a acareação entre partes.
- A etiqueta na sociedade é tão importante como a etiqueta no Aikido. "Entre uma sociedade que presta grande importância à técnica, à força e ao poder, as regras de etiqueta permitem sentir que existem valores globais, e que é importante respeitar sem esforço. Eles são a condição sine qua non de sobrevivência da sociedade”, escreveu Noboyoshi Tamura, em “Aikido - Etiquette and Transmission”.
ENERGIA E LENTIDÃO
Os japoneses
haviam posto como objectivo de campanha militar a anexação de territórios
chineses. Com o fim da guerra, os objectivos desapareceriam. Nessa altura, os
japoneses repousaram e aliviaram a sua energia.
Depois de um
esforço hercúleo durante a guerra, os japoneses passaram a uma situação de
lassitude. Da ferocidade nos campos de batalha, os japoneses tornaram-se
passivos na recepção aos vencedores.
Do frenesim da
guerra à passividade da paz, os japoneses haviam encontrado um caminho para a
harmonia. Do fulgor da espada, os japoneses passaram à tranquilidade do
crisântemo.
- O controlo e a aplicação da energia, a criação de harmonia ou a procura de um caminho próprio, são atributos fundamentais do Aikido e essenciais na vida.
OS CÍRCULOS DOS SENTIMENTOS, DA ÉTICA E DO MOVIMENTO
A vida japonesa é
organizada em diversos círculos - o círculo do Chu, do Ko, do Giri, do Gin –
que enquadram um vasto conjunto de atitudes e comportamentos. Tomando como
exemplo uma acusação de maldade ou egoísmo, os japoneses determinam o círculo
dentro do qual cabe a violação do código de ética.
- Uma das características mais importantes do Aikido é a de utilizar “movimentos fluidos e dinâmicos em círculo e em espiral, baseados nas leis da natureza”, lê-se na definição de Aikido da nossa Associação. “É significativo que no Aikido todos os movimentos contenham círculos e espirais. E, quando usado, o círculo sempre se compõe de dois aspectos, o Yin e o Yang”, escreveu Wagner Bull, em “Aikido - O Caminho Da Sabedoria, a Teoria”.
A postura
comportamental dos japoneses não é um palco de luta entre o bem e o mal. A vida
é sim o superar das exigências de um círculo face ao outro. A robustez de
carácter japonesa é a que elege as obrigações primeiro do que a felicidade
pessoal.
- O O’Sensei escreveu a este propósito: “assim que te inquietes com o bem e o mal dos teus companheiros, criarás uma abertura no teu coração para que entre a malícia”.
Apesar de adeptos
do auto-sacrifício os japoneses não menosprezam a auto-satisfação. Mais, apesar
de serem uma das maiores nações budistas a ética japonesa não estigmatiza o
desejo pessoal. Todavia, para os japoneses, os prazeres estão mais na esfera da
arte do que na da satisfação.
Um dos pequenos
deleites mais apreciados era o do banho quente, costume que fazia parte da vida
japonesa. Porém, a imersão em água muito fria, sobretudo ao acordar (ou mesmo
de madrugada – à hora dos deuses), era uma exigência para os que pretendiam
aprender uma arte. Descobrir-se ao frio rigoroso era apreciado como virtude.
- Sabe-se que o fundador do Aikido, Morihei Ueshiba era um adepto dos banhos gelados pela manhã. Outro adepto desta prática era o Shihan Reishin Kawai, instrutor do nosso mestre José Azevedo.
CONCLUSÃO
Aqui chegados, é possível
rever sucintamente a abordagem e sintetizar o que aqui nos trouxe: a cultura
japonesa.
Começamos pelo
paradigma da aprendizagem, pelo ambiente de independência e tolerância das
crianças e dos idosos japoneses, em contraponto com o rigoroso escrutínio
social dos adolescentes e dos adultos. Identificamos o tipo de aprendizagem
ministrado pelos pais, que se baseia na necessidade de reprodução do que é
observado.
Realçamos também a
preparação da criança para a indispensabilidade de uma auto-observação e para a
inevitável opinião dos outros, embaraço para o qual os japoneses criaram
modelos de mediação, como sejam, o sistema hierárquico (que inclui a etiqueta),
a redução da competição, a figura do intermediário e todo um complexo universo
de contraprestações.
Outro aspecto que
abordamos e que marca a cultura japonesa de forma derradeira é também um dos
maiores constrangimentos do homem japonês: a vergonha, um sentimento ausente
nas crianças, mas impossível de não existir no adulto.
A vergonha do
fracasso, na escola, no trabalho ou no desporto, é dificilmente sublimada. A
vergonha surge como reacção à crítica social e obriga o actor a não limitar o
seu desempenho para não perder a honra.
Para não perder a
face, os japoneses têm de fazer o que deve ser feito, assumindo uma consciência
pessoal que se traduz em auto-disciplina. É essa auto-disciplina, muitas vezes
associada ao auto-sacrifício, por tanto uma exigência extraordinária de si
próprios, que os liberta da proscrição.
Destacamos ainda,
no âmbito do complexo sistema de contraprestações, o universo de obrigações
continuadas, “Gimu”, que regula as relações de reciprocidade transversais na
cultura japonesa.
Terminamos
salientando o carácter japonês do primado das obrigações sociais sobre a
felicidade pessoal, mas cujas exigências, apesar de rigorosas e por vezes
violentas, deixam espaço aos prazeres individuais que os japoneses transformam
amiúde em arte.
Finalmente,
importa retomar o tema que, tal com evidenciado n’O Crisântemo e a Espada,
aborda a questão das contradições do comportamento sobretudo masculino ditado particularmente
pela aprendizagem e pelas relações de reciprocidade da cultura japonesa.
Logo após,
elegeremos o core das questões que de forma mais relevante podem conter
elementos capazes de estabelecer ligações entre a cultura japonesa e a prática
do Aikido.
DUALIDADES, AS
CONTRADICÇÕES DA CULTURA JAPONESA
Segundo Ruth Benedict,
os japoneses “oscilam entre os excessos de amor romântico e a completa
submissão à família”. O seu árduo treino de ponderação leva-os a ser tímidos,
mas também podem ser valentes e ousados.
Apesar de se mostrarem
especialmente obedientes em conjunturas hierárquicas, isso não quer dizer que
sejam consequentemente brandos quando um superior os pretende conduzir.
Não obstante
respeitarem escrupulosamente a cortesia da sua etiqueta, podem ser extremamente
arrogantes. Apesar de autenticarem a rigorosa disciplina militar, podem não se
obedientes e rebelarem-se.
Os japoneses são
ao mesmo tempo conservadores e inovadores, respeitam as tradições mas também se
empolgam com as coisas novas. Conseguem controlar circunstâncias para as quais se
adestraram, mas as situações imprevistas são geridas com muita dificuldade.
- Foi sobre esse carácter dual da existência que o O’Sensei reconheceu ao escrever: “cada dia da vida humana contém alegria e cólera, dor e prazer, obscuridade e luz, crescimento e decadência”.
As contradições da
conduta masculina japonesa são sobretudo ditadas pela descontinuidade da sua
educação que, apesar do polimento da vida posterior, deixa marcas profundas de
desigualdade entre a vida infantil e a adolescência.
Os japoneses impõem
a si próprios uma disciplina rigorosa, criando por um lado uma barreira de defesa
face aos outros e, por outro, exigindo para si mesmos um desempenho pessoal excepcional.
Muitas vezes, são obrigados a prescindir dos prazeres pessoais para evitarem
situações de embaraço ou calúnia.
Por tal, é
imprescindível estar vigilante, quer face à própria conduta, quer face às eventuais
críticas ao desempenho pessoal. É em ocasiões de ostracismo ou depressão que os
japoneses podem experimentar reacções violentas contra os agressores, caso das
vinganças homicidas, ou contra si mesmos, caso dos suicídios.
A VERGONHA COMO
RAIZ DA VIRTUDE
Uma das várias
contradições identificadas face ao pensamento ocidental, admite que os
japoneses dão mais importância à vergonha social do que à culpa.
Enquanto para os
ocidentais a culpa é sancionada, para os japoneses a vergonha já é uma sanção importante não sendo facilmente aliviada (nem socialmente institucionalizada)
pela culpa como no ocidente.
A vergonha obriga
a aguardar o julgamento público dos próprios actos. No pensamento japonês, a
vergonha tem a “consciência limpa”. Quem reconhecer ter vergonha é considerado
honrado. Para os japoneses, a vergonha é a raiz da virtude.
Porém, para um
japonês ter vergonha não é condição suficiente para atingir a virtude. Há um
processo para conseguir ser virtuoso. Tal como no Aikido há um caminho de aprendizagem,
exercício e conhecimento.
- O O’Sensei dizia que, desde os tempos antigos, a aclaração do corpo e da mente era feita através da virtude do treino, ou seja, a liberdade face aos constrangimentos, como seja a vergonha, ultrapassa-se com a probidade do treino.
A AUTO-DISCIPLINA
COMO MEIO DE ATINGIR A VIRTUDE
Ser virtuoso é ser
competente e, no limite, ser perito. Para tal, tais conceitos têm de ser
organizados pela vontade e não decretados pela obrigação.
A obrigação – ter
de comer, de ter fazer, ter de treinar – cria conflitos. Por tal, o governo do
corpo deve ser feito através da auto-disciplina que se funda no
auto-sacrifício, no auto-sacrifício sem lamento.
- Pode ler-se n’A Arte da Paz: “A lealdade e a devoção conduzem ao heroísmo. O heroísmo leva ao espírito de auto-sacrificio. O espírito de sacrificio cria a verdade no poder do amor.”
Está na vontade o
ónus de reproduzir o que é mostrado. A virtude aprende-se por cópia, não por
esforço intelectual, mas através da descoberta individual. Talvez por isso a
nossa demanda de manuais de Aikido não seja decisiva no processo de
aprendizagem.
A PERÍCIA COMO
ESTÁGIO DE VIRTUDE
O círculo da
perícia encontra-se num nível superior ao da auto-disciplina. Atingir um estado
de perícia é conseguir simultaneamente vontade e acção, um estado que não
necessita de sensação.
O treino tem como
objectivo alcançar uma “mente calma e bem regulada”. O treino técnico é uma
vantagem, um estádio e uma condição par atingir o nível da perícia.
- No Aikido, a condição de perito atinge-se quando o treino permite não existir qualquer brecha entre vontade e acção, ou seja, quando se encontra o caminho da vontade para a harmonia (e para o amor).
PERÍCIA E
MEDITAÇÃO
O empenhamento no
treino para alcançar a fase de perito tem algumas similitudes com as práticas
individuais de meditação budista, similares na esfera do esvaziamento da mente
– o não pensar – da imobilidade do corpo – aguentar até agir - na reprodução
sucessiva da mesma frase – repetição da movimentação.
Porém, o zen
japonês que se baseia na auto-ajuda, reconhece que a ajuda potencial não é um
horizonte longínquo a alcançar, mas que está dentro de nós.
- “A Arte da Paz começa contigo. Trabalha em ti mesmo (…)”, escreveu Moreihei Ueshiba, o que significa ser possível alcançar um desenvolvimento superior através dos próprios esforços.
A CONDIÇAO DE
PERITO
Atingir a condição
de perito é treinar o ser consciente tantas vezes quanto necessário para, a
partir de certa altura, ser possível não experimentar desconforto.
- É fácil recordar as três condições para chegar mais além no Aikido, que o Sensei Azevedo e Silva nos incute frequentemente nas aulas: a primeira condição é treinar, a segunda, treinar, a terceira, treinar. “O progresso vem aqueles que treinam e treinam”, escreveu o O’Sensei.
O treino correcto
leva à condição de perito, de ”muga”, ou seja ao estado de ausência de esforço.
O indivíduo solta-se e o conflito entre o agente e o observador soluciona-se.
A condição de
“muga” descobre que o ser observador, criado pela consciência, deixa de
existir. O plano da perícia é então conseguir um estado de não consciência, uma
suprema libertação de constrangimentos e conflitos, de eliminação da
auto-sensura, ver-se livre do embaraço.
Ruth Benedict descreve
este estado de perícia que , “(…) consiste em assinalar as experiências,
seculares ou religiosas, em que “não se verifica nenhuma brecha, nem mesmo da
espessura de um cabelo” entre a vontade de um homem e o seu ato.”
- No Aikido, como em outras artes, o propósito passa logo por “harmonizar o consciente e o inconsciente”. A meta é então a transcendência do domínio técnico, de modo que se converta numa produção do inconsciente, tal como sugere, Eugen Herrigel, em “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”.
O alvo é atenuar a
sensação de nervosismo e tensão. Os japoneses têm uma frase lapidar nesta
matéria: “viver como se estivesse morto”, dito no sentido de que se vive no
plano da perícia eliminando o plano da consciência.
ATITUDES CULTURAIS
PROACTIVAS
Ao questionarmos o
método e a prática, ao sentimos os obstáculos da execução, ao experimentarmos a
dificuldade no desempenho do Akido, podemos sentir por vezes uma insatisfação
tremenda e uma frustração implacável.
Podemos sentir um
desconforto pessoal decorrente da ideia de incapacidade pessoal ou de que os
outros nos sancionam com a sua desaprovação, sobretudo quando o resultado
imediato do desempenho é tímido ou ineficaz, nos sentimos humilhados.
São situações que
se podem repetir em outros aspectos da vida, na profissão ou na escola, e que
reclamam por solução, por uma resultado susceptível de reduzir ou eliminar
aquelas dificuldades.
Segundo acabamos
de ler, é possível encontrar paralelismos entre a cultura japonesa, criadora, e
o Aikido, enquanto criação dessa cultura. Nesse sentido,
será provável também descobrirmos soluções semelhantes para o imbróglio da
vergonha e da humilhação de um desempenho sofrível.
A satisfação pela execução
correcta passa irremediavelmente pela vontade, pela auto-disciplina e pelo
treino, condições passíveis de nos levar ao nível de perito. Está na nossa mão
aderirmos à ideia de fazer da vontade, desobrigando-nos de imposições mais ou
menos instituídas ou sugeridas.
A nossa vida pode
ser influenciada ou mesmo balizada por uma diversidade de situações e ser
constrangida por múltiplas incapacidades, mas também é possível eleger e
desenvolver um “caminho”, uma via de disciplina, um método d etreino, um
conjunto de anseios que nos oriente e organize.
É através dessa
via pessoal que se pode criar uma “harmonia” activa, uma unificação dos nossos
desejos, uma complementaridade de posições ou acções, uma focagem colocada na importância
do ser e do fazer.
Nesse caminho
concorre a “energia” do nosso corpo, relevante no desenvolvimento do espírito de
união e não-conflito, na coordenação entre a mente, o corpo e espírito, e na harmonização
com a natureza e cultura.
O CRISÂNTEMO E A
ESPADA
Chegamos ao final
desta visita à cultura japonesa e do périplo pela Arte da Paz, sem esquecer o que
sedutor título do livro, “O Crisântemo e a Espada”, ainda nos pode oferecer no
âmbito das questões antes colocadas.
Erza Vogel, um
eminente professor de Ciências Socias americano, que no prefácio do livro
identificara um conjunto de contradições da cultura japonesa descrito por que
Ruth Benedict, evidencia aí também a circunstância dos japoneses, à altura,
“estarem dispostos a morrer pela espada, mas ao mesmo tempo, serem tão
afectados pela cultura dos crisântemos”.
Uma flor e uma
espada podem surgir aparentemente como opostos ou contraditórios. Uma flor,
ligada à fragilidade e ao feminino, como contraponto da espada, vigorosa e
masculina.
Porém, a
enfatização destes dois ilusórios contrários não surge inocente, antes de
maneira simbólica e com uma intenção mais conciliadora do que controversa.
O cultivo dos
crisântemos é feito com o objectivo de obter uma planta perfeita com cada
pétala modelarmente disposta, para depois serem mostradas em público e granjearem
prestígio. A cultura dos crisântemos é uma arte.
Mas não só. Para
além do apreço geral pelas flores que os japoneses nutrem, o crisântemo é
também um símbolo do imperador e da religião xintoísta.
Como notou
Venceslau de Moraes, escritor, militar e cônsul português no Japão, a arte
japonesa dos arranjos florais, “obedece a um rigoroso esquema onde estão
simbolicamente representados em harmonia o céu, a terra e a Humanidade.
- Concomitantemente, a ideia do O’Sensei sobre o Aikido vai de encontro a essa simbologia ao afirmar que, “a Arte da Paz é uma celebração da unificação do céu, da terra e da humanidade”.
Por outro lado, a
espada é considerada como extensão do detentor, mas uma parte que partilha a
responsabilidade pela consequência dos seus actos. A espada passa a ser o
símbolo da auto-responsabilidade, a “espada radiante de pacificação”.
-
Poder-se-á
concluir destacando alguns dos aspectos culturais japoneses que ao longo deste
ensaio se foram revelando mais importantes e que de alguma forma cotejam a
prática do Aikido.
Na cultura japonesa, o valor e a
dignidade pessoais estiveram sempre presentes como legado maior dos ancestrais
que é a honra. A honra é contudo permeável à vergonha se a reacção crítica dos
outros não for mediada por exemplo com o treino aturado. Para não perder a
face, para fazer o que deve ser feito, os japoneses têm de apelar á vontade
para que a sua auto-disciplina lhes ratifique a honra e a dignidade.
De modo
semelhante, na prática do Aikido, é preciso exercer uma vigilância pertinaz
sobre o desempenho, cumprir uma auto-disciplina constante e, sobretudo, treinar
com ponderação e afinco, de modo a ultrapassar todos os constrangimentos que a
novidade, o rigor, a dificuldade e a tecnicidade da prática lhe possam causar.
Bibliografia
A
Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Eugen Herrigel,
Editora Pensamento,
São Paulo
Aikido - Etiquette et Transmission,
Budo Editions, Noisy sur
Ecole
El Arte de la Paz, Morihei Ueshiba, traduzido do
original por John Stevens, e traduzido do inglês por Pedro J. Riego, Editorial
Kairós, Barcelona
O Crisântemo e a Espada, Ruth Benedict, Editora Pensamento,
São Paulo
O
Livro dos Cinco Anéis, (Gorin No Sho), Miyamoto Musashi, tradução de José
Yamashiro, Cultura Editores Associados, São Paulo