quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O CRISÂNTEMO E A ESPADA, O Dilema da Arte




Ao princípio é deslumbrante, quando visto à distância do desconhecimento. Depois, mais próximo, reforça-se o encanto. À medida que a vizinhança se estreita, parece que deixamos de ver e a incerteza instala-se. Depois, junta-se o constrangimento, pode surgir a vergonha e a frustração.

Procura-se corrigir, encontrar alternativas, descobrir soluções. Em geral, progride-se e retrocede-se, como se de uma escada se tratasse. Alguns degraus, porém, continuam a ser difíceis de escalar. Outros, após descidos, dificilmente se recuperam. Diz-se que é difícil, por vezes parece impossível. Estamos perante um dilema, mas também devante de um desafio.

A aprendizagem tem destas fases, quer seja nas artes, nas ciências ou no desporto. A prática do Aikido não é excepção. Procura-se “fazer o que deve ser feito”. Age-se de outra maneira, em outro dia, com outra pessoa. Emenda-se a posição, faz-se mais devagar, respira-se mais pausadamente. Surgem resultados positivos, mas também pode tombar o edifício da prática sob uma descoordenação imensa.

Pergunta-se: por que é tão difícil o Aikido? Por que é tão complicado praticar a Arte da Paz? A resposta pode ser morosa e/ou complexa. Por tal, é necessário procurar alicerces sólidos que permitam perceber os respectivos fundamentos. Eu fui procura-los na cultura japonesa.

Estou convencido de que, um dia, conseguirei elaborar um texto mais consequente e interessante sobre a Arte da Paz. Por enquanto, não o faço. Escudo-me na minha inabilidade para “fazer o deve ser feito”. Protejo-me da ‘vergonha’ que sentiria por, ao fazê-lo, não estar suficientemente apto para o compor.

Entendo todavia que a abordagem de um tema que envolva pessoas e a maneira como estas interagem entre si e com as actividades em que participam, se possa analisar e interpretar com recurso ao conhecimento da sociedade a que pertencem os actores, mas sobretudo conhecendo o palco da cultura onde aqueles actuam.

Por tal, a minha opção foi revisitar uma obra, “A Espada e o Crisântemo”, escrita pela antropóloga americana Ruth Benedict que, abreviando, estuda os modelos de comportamento da cultura japonesa, sintetiza o conjunto de costumes, a ética e os deveres morais que a identificam.

Fê-lo numa época em que, durante a Segunda Guerra Mundial, os americanos se debatiam com muitas dúvidas sobre a cultura japonesa, traduzidas nas acções incompreensíveis dos soldados japoneses.

Farei por tanto uma visita à cultura japonesa, uma herança ancestral sobretudo de origem chinesa, baseada na hierarquia, na organização clânica, na religião xintoísta e budista. Proprietária de uma caligrafia trimodelar, a cultura japonesa desenvolveu um conjunto de artes especiais, que vão desde os arranjos florais às artes marciais, passando pelos rituais do chá, pela literatura, por técnicas artesanais, teatro, por música e por culinárias exclusivas.

Opto também por fazer algum paralelismo, identificar e explicar sucintamente, sempre que possível, algumas concordâncias e semelhanças com a prática e a teoria do Aikido, uma arte marcial não-violenta que nasce dentro da cultura japonesa e que funde sobretudo as perícias marciais dos antigos samurais.

Baseado em movimentos fluídos e dinâmicos em círculo e espiral, o Aikido, criado por Morihei Ueshiba, tem como principal característica a não-resistência à força e capacidade de esquiva, projecção e neutralização do opositor.

Nesta matéria, utilizarei como apoio didáctico a obra, A Arte da Paz, escrita por Morihei Ueshiba, conhecido como O Grande Mestre, O’Sensei. O livro contempla a existência, articulando natureza e cultura com enfoque nos três princípios do Aikido: harmonia, energia e caminho.

Escrito em linguagem poética, constituiu-se como um conjunto de ensinamentos que pretendem ser um guião para a vida, realçando as virtudes capitais e o método de as alcançar.

O livro de O’Sensei encerra um grande número de conceitos: a vida, a cólera, o universo, a criação, a paz, o espírito, a desordem, a energia, o vazio, a fluidez, a economia, a respiração. E articula um vasto conjunto de temas: o nascimento e a morte, o vazio e a energia, a vitória e a frustração (derrota), o céu e a terra, o bem e o mal, a natureza e a cultura.

Creio poder relacionar os conteúdos das duas obras, mas encontrar sobretudo no livro da antropóloga americana os suportes culturais que procuro para perceber alguns teores do Aikido. É a isso que venho, à cultura.

A abordagem seguinte destina-se sobretudo aos praticantes de Aikido e aos interessados na cultura nipónica, em particular, bem como aos adeptos das artes marciais e potenciais interessados nas questões existenciais, em geral.


A NOSSA HUMANIDADE



Uma das nossas características enquanto Homens é a de possuirmos a capacidade para fazer perguntas, de questionarmos o mundo, as coisas e as pessoas do mundo. Esta aptidão é uma das particularidades que nos distingue dos animais. E também de outros homens.

É da dúvida que surge a questão, que emerge a pergunta. É o resultado dessas perguntas que nos orienta, que nos identifica, que nos organiza enquanto Homens. São as respostas que nos aquietam e fundamentam. Seja no que for.

Foi assim no princípio do mundo, quando surgiram as primeiras perguntas. (E as primeiras respostas). É assim também no princípio da vida. Hoje, as diversas questões primordiais continuam válidas tal como a pluralidade das respostas.

O que somos? Para que vivemos? Quem somos? Para onde vamos? Quem é o outro? São questões / problemas universais que muitos já colocaram, para as/os quais há inúmeras respostas / soluções. Políticas, económicas, religiosas, sobrenaturais. E culturais.

Muitas das informações, grosso modo, que nos vão permitindo construir respostas, recebemo-las na infância e na adolescência. Com esse conjunto de peças, vamos construindo cenários capazes de nos elucidar. Adequados por tal a organizarmos a nossa vida.

Porém, quando se reatam perguntas ou se reformulam problemas ou, simplesmente, surgem novidades, voltamos a duvidar, a questionar, a problematizar. É frequente. E não são dúvidas universais. São questões específicas.

As “novas” confundem o que está estabelecido, baralham o quotidiano, abalam a tranquilidade. Ficamos agitados, inseguros, exasperados. Inábeis, inclusivamente. Parecemos perdidos em terrenos desconhecidos.

Damos com outras regras, com outras maneiras de ser, de fazer, de pensar. Encontramos outras maneiras de falar, de nomear, de expressar. Também de reconhecer, de simbolizar, de identificar. Outro tipo de família, de rito, de troca, de religião. Outro tipo de cultura. Ficamos surpreendidos.

Até possuirmos um mapa minimamente elucidativo, progredimos errantes. Vamos recolhendo vestígios, juntando indícios, mas também vamos colocando questões, fazendo perguntas. O encontro com essa cultura exige respostas. É uma outra cultura que este texto contempla.

AS NOSSAS DÚVIDAS



Pouco tempo depois de “acharmos” o Aikido, surge em muitos de nós um sentimento de inquietude e/ou inépcia, por vezes de desespero, ao depararmos com um conjunto de procedimentos que não percebemos e/ou dificilmente executamos e cujo efeito se traduz num desempenho medíocre se não inútil.

Quantas vezes nos interrogamos durante a aprendizagem do Aikido sobre a repetição exaustiva de um exercício, de uma técnica, de um movimento? E com tanta replicação…

Quantas vezes ouvimos dizer que a aprendizagem do Aikido tem três princípios: fazer, fazer, fazer? Chegamos a perceber o significado desta profusão de esforços…?

Quantas vezes nos interrogamos sobre acções ofensivas e intimidadoras da Arte da Paz (em contraste com outras suaves e tranquilas)?

Quantas vezes questionamos o porquê da etiqueta ser tão rigorosa e frequente? Tao imperioso é o controlo do “uke” como são imperativos os gestos de cortesia…?

Quantas vezes nos dizem para “não pensarmos”, para “esvaziarmos a mente”? E, depois, como agimos…?

Quantas vezes indagamos sobre a ausência de aconselhamento de leitura de manuais sobre uma arte tão complexa? Como a memorizamos…?

Quantas vezes perguntamos por que uma arte aparentemente fácil é tão difícil de executar?

Já fizemos seguramente mais perguntas - e continuaremos a fazê-las – sobre as aparentes contradições do Aikido. Em resposta a muitas destas interrogações, os nossos mestres vão-nos indicando o melhor caminho para percebermos o Aikido. E para nos descobrirmos a nós mesmos.

Porém, essas descobertas não são rápidas nem acessíveis. O confronto com aquele grupo de regras, com aquele grupo de técnicas, com aquele conjunto de comportamentos e atitudes, enfim com a cultura do Aikido, coloca-nos durante muito tempo perante um palco de contradições. O enredo é dificilmente inteligível.

UM QUADRO INCOERENTE



Foi também um cenário de contradições e comportamentos anómalos que os americanos descobriram quando enfrentaram os soldados japoneses na Segunda Guerra Mundial.

O exército americano, que já tinha entrado em combate com as outras duas potências do Eixo – Alemanha e Itália – haviam estado perante comportamentos culturais semelhantes aos seus.

Porém, no Pacífico, os soldados japoneses continuavam a lutar, capazes de enfrentar a morte a deixarem-se capturar. Ao cair dos últimos anos de guerra, os americanos estavam perante um exército que ao mesmo tempo que era batido se mantinha irredutível.

Mas não era apenas isto que espantava os americanos e não foi só isto que levou os militares a pedir a uma antropóloga, Ruth Benedict, para elaborar um estudo da sociedade japonesa numa perspectiva cultural.

A intenção do estudo ia todavia para além das respostas às questões americanas mais urgentes e paradoxais. Procurava também conhecer melhor a organização cultural japonesa face à potencial ocupação americana do território após o fim da guerra.

O MÉTODO DE ESTUDO

Nessa altura, a antropóloga americana dava enfase a um modo de estudo intitulado método de observação participante, empreendido por uma sua colega, Margareth Mead, que contemplava a estada do investigador junto da comunidade onde partilharia com os autóctones o respectivo quotidiano.

Impossibilitada de utilizar aquele método, uma vez que os Estados Unidos estavam em guerra com o Japão, Ruth Benedict recorreu a processos alternativos de estudo à distância, utilizando a história, a literatura, o teatro, o cinema e outros elementos culturais.

Além disso, procedeu a um conjunto de entrevistas a emigrantes nipónicos – nesta altura reunidos em campos de relocalização e concentração no interior oeste dos EUA – cujos relatos foram matéria-prima cultural de grande interesse para o estudo.

O estudo partiu das interrogações que o exército americano formulava, mas avança outras, que questionavam o facto de os japoneses serem, ao mesmo tempo, corteses e rudes, conservadores e abertos à inovação, fiéis mas capazes de atraiçoar, disciplinados e insubmissos em determinadas ocasiões.

Inquiria também porque é que eram tão afectados pela beleza dos crisântemos mas estavam dispostos a morrer pela espada. Perguntava ainda como é que os japoneses pareciam tao pouco interessados pelas regras do bem do mal, mas eram tão sensíveis às opiniões e juízos dos outros.

Esta demanda dos padrões culturais japoneses aconteceu há mais de 60 anos. Nesta altura, o Japão estava, de novo, fechado ao mundo e o ambiente cultural nipónico não se percebia no exterior.

Morihei Ueshiba criou e desenvolveu o Aikido entre os anos 30 e os anos 60 do século XX. Fê-lo no ambiente cultural que Ruth Benedict irá estudar. A designação Aikido nasce em 1942.

  • Nesta altura, já é reconhecível um conjunto de conceitos com que nos vamos familiarizando na prática do Aikido: hierarquia, auto-disciplina, honra, respeito, etiqueta, ética, treino.


Por seu lado, o estudo de Ruth Benedict contempla sobretudo os conceitos de vergonha, dívida, virtude e perícia, bem como destaca o sistema de aprendizagem das crianças baseada na observação das práticas familiares e os comportamentos posteriores assentes na reprodução dos princípios éticos adquiridos.

Façamos então como os japoneses, comecemos pelo princípio, pelos

PADRÕES DE APRENDIZAGEM



As Ciências Sociais defendem de um modo geral que os comportamentos ulteriores são condicionados em larga medida pela aprendizagem nos primeiros anos de vida e balizados pelos padrões culturais sobretudo dos pais e das instituições de ensino elementar.

INDEPENDÊNCIA E TOLERÂNCIA

No que respeita aos padrões de autonomia e bondade, EUA e Japão, organizam-se de forma diferente. A máxima liberdade e indulgência no Japão eram atribuídas às crianças e aos idosos, enquanto nos EUA se alcançava essa etapa na idade adulta.

A maior repressão mental era remetida para essa fase da vida do homem no Japão, uma vez que era nessa altura que se considera estar o homem melhor preparado para suportar e reagir a um mais intrincado conjunto de dificuldades.

Tal como a maioria das crianças é desde os primeiros tempos de vida que os pequenos japoneses aprendem diversas noções comportamentais, assimiladas sobretudo à base da observação dos pais.

O SER OBSERVADOR

O padrão educativo japonês tenta por um lado soltar a criança o mais possível – sobretudo no que respeita ao rapaz - mas, por outro, incute-lhe a tarefa de se auto observar.

A criança japonesa é educada no sentido de observar os seus próprios actos e julgá-los em função da opinião dos outros. Não é imediato, trata-se de um processo.

Autónomos mas contidos, as crianças vão crescendo com essa dualidade e suportando a vulnerabilidade da apreciação de carácter pelos demais.

É preciso compensar essa fragilidade com o treino – nos diversos aspectos da vida (na escola, no desporto, na arte) – para que esse tipo de aprendizagem seja responsável pelo doseamento do esforço em prol da acção.

  • Os ensinamentos que são transmitidos numa aula de Aikido são apenas uma ínfima parte do que é o Aikido. As outras partes, devem ser descobertas pelo próprio praticante através de treino e da prática persistentes.


A oralidade, que ocupa um papel fundamental nos padrões educativos ocidentais, não é essencial na reprodução da doutrina e na formação da criança. O pai, sobretudo, apenas indica ao filho o que deve fazer com gestos simples.

  • Durante as aulas de Aikido no Japão reina um silêncio extremo. Não é difícil fazer uma analogia com o sistema japonês de ensino do Aikido, onde se privilegia o gesto em desfavor da palavra. O professor demonstra e os alunos reproduzem.


HIERARQUIA E ETIQUETA

A concepção de hierarquia é também aprendida pelos mais novos através do reparo na atitude e representação do pai que é posta em conflito com os comportamentos infantis dos filhos.

Mas também pela posição de relevo que o pai assume em casa, onde mãe e avós o servem e a mãe insiste no respeito que lhe é devido.

No tratamento deferencial, não basta porém saber ante quem um indivíduo se deve inclinar, mas também quanto é necessário inclinar-se e em que circunstâncias sociais.

Além da hierarquia de classe, há que ter em conta o sexo, a idade, os laços familiares. Neste capítulo, há uma ordem que sujeita a mulher a baixar-se mais do que o homem, os mais novos mais dos que os idosos, a mulher mais do que o marido, um cidadão comum mais do que um militar.

  • O Aikido baseia o seu sistema de ensino numa hierarquia de conhecimentos, aos quais junta práticas de auto-disciplina (com algum auto-sacrifício), ética e movimentos circulares, em prol da perícia.

VERGONHA

Uma das mais violentas dificuldades com que o homem japonês se bate é a vergonha (haji), a vergonha social sobretudo ligada à honra e ao respeito.

As crianças japonesas não sentem vergonha, daí resultando parte importante da sua felicidade. Diz-se que um adulto que não sinta vergonha é destituído de decência. Um adulto sem vergonha é uma criança.

Regressaremos ao tema mais à frente.

A AGRESSIVIDADE

Desde crianças que os japoneses aprendem que a ofensa com um insulto (por exemplo, quando dirigida ao giri devido ao nome), é uma virtude. A reacção face ao insulto, enquanto crianças, liberta a agressividade para fora.

Porém, aos meninos a quem foi ensinada e autorizada muita agressividade para com a mãe e irmãs, assim como face aos seus colegas de escola, é deixada para a adolescência a condução da agressividade para si próprios.

  • Morihei Ueshiba escreveu, “Controlar a agressividade sem causar danos é a Arte da Paz”, numa alusão à necessidade de auto-controlo.


A COMPETIÇÃO

Disputas e desafios fazem parte do mundo escolar. Durante a escolaridade básica, a competição e a rivalidade é severamente atenuada.

Porém, à medida que as crianças crescem e entram no liceu, a competição entre colegas é levada ao extremo. Em certos casos pode motivar suicídios.

Esta competição não cessa e pode alargar-se à vida militar. Muitos casos de vexame, injúria, rebaixamento, servilidade forçada, criam sentimentos de vingança sendo necessário tirar desforra.

Como para os japoneses a vingança é uma virtude, a vontade de desagravo é mantida até “não deixar nada por fazer”, condição a que voltaremos mais à frente.

  • Não pode haver espírito de competição entre os praticantes de Aikido, uma vez que um dos objectivos da arte não é derrotar o adversário, mas sim, lutar contra os próprios instintos hostis, apurando a sua própria técnica e transpondo as suas limitações.


RELIGIÃO E CULTO DOS ANTEPASSADOS

A aprendizagem da doutrina mas sobretudo da prática religiosa é feita mediante a observação da prática dos pais. O culto concentra-se em redor dos sacrários budistas e xintoístas no próprio lar, local onde também se reverenciam os antepassados.

  • O agradecimento ritual ao O’Sensei antes de iniciar uma aula e no seu final, não é dirigido apenas ao mestre Morihei Ueshiba, mas também aos seus antepassados, como foi recordado pelo Sensei Agostinho Vaz por ocasião de um workshop na Escola Naval.


Herança chinesa, a homenagem devida aos antepassados clãnicos – são reconhecidas seis ou sete gerações anteriores, embora no caso japonês apenas os mais próximos – é proporcionada na sala de estar da família diante de um pequeno altar simbólico.

  • A presença da imagem do O’Sensei nos dojos de Aikido bem como a saudação “Rei”, fazem parte desse ancestral culto dos antepassados. No caso do O’Sensei, agradecem-se os ensinamentos primevos (OSensei Ni Rei), tal como aos antepassados se reconhecem os ensinamentos antes transmitidos.


A GUERRA E A CULTURA



As contradições entre os envolvidos na guerra do Pacífico também foram reflexo da sua própria alteridade cultural. A ideia nipónica de que a guerra devia colocar o Japão, pelo menos, como líder do mundo asiático – uma concepção de hierarquia - contrastava com a constatação americana da agressão japonesa ter sido um atentado à paz mundial.

Os japoneses sempre acreditaram que o seu espírito combativo – alavancado por um investimento excepcional em armamento (metade do seu PIB) - dominaria a matéria americana. Na derrota, os japoneses admitiram que o seu espírito podia ter sido aperfeiçoado, caso a auto-disciplina tivesse sido potenciada.

ENSINAR O ESPÍRITO

A noção de auto-disciplina dos soldados japoneses foi considerada ímpar. Contava-se durante a guerra uma estória heroica de um comandante de esquadrilha que após terminar o seu voo e feito o relatório diário, caíra morto.

Quando lhe pegaram, o corpo estava frio, indício de que havia redigido o seu relatório já cadáver. Isto traduzia a sua auto-disciplina, uma vez que, já moribundo o seu espírito de sacrifício o levara a preencher o documento.

  • Sabemos que nos dojos de Aikido mais tradicionais, mesmo fora do Japão, o rigor da limpeza e da arrumação não é uma tarefa de outros, mas sim dos aprendizes de samurais mesmo que estes já sejam adultos ou mesmo idosos.


FAZER O QUE DEVE SER FEITO: HONRA E AUTO-DISCIPLINA

Uma das muitas perplexidades dos americanos durante a guerra era a da falta de hospitais na frente de batalha e a escassez ou inexistência de dispositivos de segurança a bordo de barcos e aviões de combate japoneses. A assistência aos feridos era péssima. As preocupações e o tratamento do corpo não tinham qualquer urgência.

Existe uma noção arraigada de dever individual na cultura japonesa. A consciência pessoal do que deve ser feito por si mesmo, ou seja o dever de cada um cumprir o que deve, leva cada um a não precisar de se preocupar consigo mesmo. O que deve ser feito é a tradução da auto-disciplina, fundamental na vida e na morte.

Outra perplexidade face ao comportamento japonês era o facto dos soldados japoneses lutarem até à morte e poucos se renderem. Muitas vezes, o soldado japonês que se rendia levava consigo alguns dos seus captores, suicidando-se logo após. A rendição raramente era opção.

Nesse âmbito, auto-disciplina e honra andam a par, também apegadas à vida e à morte. A acontecer, a rendição causava a “morte” do rendido. Uma morte metafórica, mas todavia o fim de um padrão de comportamento.

RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE

  


A sociologia e a antropologia reverenciam o tema. É uma espécie de reinvenção da economia, colhida no terreno da cultura. As questões da reciprocidade, da dádiva e da contra dádiva, das dívidas cerimoniais e das obrigações éticas, têm sido objecto de estudos, ensaios, livros e continuam a ser dos temas mais discutidos no seio das ciências sociais. 

DÍVIDAS ANCESTRAIS

Nós, ocidentais, sempre percebemos que herdamos o passado. Enquanto produtores da nossa história, sentimo-nos herdeiros dela. Ao contrário, os japoneses pensam que não herdaram o passado, sentem-se devedores da história.

Os japoneses admiram e respeitam o tempo lento e de aprendizagem. É nesse tempo que reconhecem ter aprendido o conhecimento dos antepassados. É com eles que contraem uma dívida, não com a história. Para eles, o débito passado é para com os ancestrais.

  • A aprendizagem do Aikido não é um processo imediato, é um sistema progressivo mas lento, com procedimentos de cópia e reprodução sistemática. Em cada aula, agradecem-se os ensinamentos do mestre fundador, dos seus antepassados e dos mestres actuais. O cerimonial de reconhecimento mostra a existência de uma dívida.


O “ON”

A cultura japonesa reconhece que quem é hierarquicamente responsável deve ter crédito. Essa ratificação implica que os dependentes sejam seus devedores. A dívida intitula-se “On” e significa ”obrigação”, mas também “lealdade”, “bondade”, “amor”, e envolve um ónus face a outros, uma responsabilidade social.

Essa obrigação é para com aqueles cuja hierarquia superior assim o determina: pais, professores, superiores hierárquicos da empresa, até à entidade hierárquica mais elevada, o imperador.

  • Neste contexto é fácil perceber a responsabilidade de um Sensei. A saudação ao Sensei não mostra apenas respeito mas dívida. A dívida faz parte da cultura japonesa. E parte da etiqueta do Aikido. O “domo arigato gozaimashita”, uma saudação que corresponde ao nosso “muitíssimo agradecido/obrigado”, é uma forma polida, educada e reverencial de agradecer os ensinamentos do mestre e aos companheiros de treino.


Como dívida, o “On” é um processo que obriga à lealdade, a uma contrapartida, uma contraprestação por tudo aquilo que o outro, (superior), fez para nós. Um On que celebra uma relação de dependência e nunca diminui. Exagerando, poder-se-ia dizer que o On se evita, ou seja, que se acautela ficar numa relação de subordinação.

Entre os japoneses, a gentileza obriga a uma contrapartida de gentileza, o auxílio a uma contraprestação de auxílio. Ao ser-se gentil ou ao ser-se prestável cria-se uma situação de dívida que, à partida, não é possível saber se se pode cumprir. Auxiliar um japonês pode criar uma relação de dependência, dívida que ele pode não querer subscrever.

  • Muitos dos potenciais leitores devem lembra-se do evento onde a ACPA esteve presente e que teve lugar no Palácio Foz por ocasião do tsunami/desastre nuclear de Fukushima. Nessa altura, os japoneses organizaram uma venda de objectos cujo rendimento se destinava a ajudar as vítimas da catástrofe. A atitude dos vendedores nunca foi empenhada em agradecimentos. Para além das sempre enigmáticas expressões faciais nipónicas, era perceptível essa aparente indiferença, uma aparente apatia que não motiva a compra. Uma questão de acautelamento de uma dívida…?


O UNIVERSO DAS CONTRAPRESTAÇÕES

Apesar de os japoneses dizerem que nunca será possível pagar um décimo milésimo do “On”, este não está isolado no sistema de obrigações continuadas da cultura japonesa, conhecido por “Gimu”.

Do Gimu” fazem parte, além do “On”, sobretudo face ao imperador; o “ko”, para com os pais e antepassados; o “daino”, devido aos professores; “o ninmu”, face ao trabalho; o “giri”, um débito com prestação equivalente, por exemplo o “giri para o nome”, a obrigação de limpar o nome, o dever de vingança, o dever de defender a honra.

A REPUTAÇÃO

O “Giri ligado ao nome” é o dever de manter a reputação intacta, sendo a reputação, por um alado, o que os outros pensam e/ou dizem de nós. A reputação é uma espécie de honra de si mesmo atribuída pelos outros, em que o nome responde pelo todo do eu.

  • Miyamoto Musashi, no Livro dos Cinco Anéis, encontra uma expressão paradigmática para este dever: “A vida de alguém é limitada; a honra e o respeito duram para sempre”. 


A defesa da profissão e a resignação na dor também estão ligados ao “Giri devido ao nome”, bem como o equilíbrio e o auto-controlo em situações de conflito ou acidente. Daí ser invulgar nessas ocasiões surpreender lamentações, correrias ou pânico.

  • As imagens do tsunami que assolou o Japão em 2011, a que se seguiu o acidente nuclear de Fukushima, e que fizeram quase 20 mil mortos, raramente mostraram pavor ou lamúrias. Nas diversas reportagens que foram emitidas pelas televisões ouviam-se a espaços muitas expressões de surpresa, espanto e de inquietação, mas não de pânico ou desorientação.


SISTEMAS DE MEDIAÇÃO

Os japoneses dispõem de alguns sistemas de mediação capazes de minorar, evitar ou regular conflitos. Vejams alguns dos mais relevantes.

Saber o seu lugar. O sistema hierárquico, que já abordamos, tenta reduzir ao mínimo a competição. Cada um deve ocupar e defender o seu lugar, não entrando em confronto nem ocupando o lugar do outro. Para os japoneses os exames são momentos decisivos em que a pressão de falhar se agiganta.

O mediador. Outro sistema de mediação é a utilização de um intermediário. Em situações em que seja possível por um terceiro atenuar o conflito, entra a figura do negociador.

Etiqueta. A criação de um conjunto de regras, é susceptível de evitar situações causadoras de vergonha e por isso passíveis de acarretar giri ao nome. A cortesia faz parte dessa etiqueta e tem como objectivo a acareação entre partes.

  • A etiqueta na sociedade é tão importante como a etiqueta no Aikido. "Entre uma sociedade que presta grande importância à técnica, à força e ao poder, as regras de etiqueta permitem sentir que existem valores globais, e que é importante respeitar sem esforço. Eles são a condição sine qua non de sobrevivência da sociedade”, escreveu Noboyoshi Tamura, em “Aikido - Etiquette and Transmission”.


ENERGIA E LENTIDÃO

Os japoneses haviam posto como objectivo de campanha militar a anexação de territórios chineses. Com o fim da guerra, os objectivos desapareceriam. Nessa altura, os japoneses repousaram e aliviaram a sua energia.

Depois de um esforço hercúleo durante a guerra, os japoneses passaram a uma situação de lassitude. Da ferocidade nos campos de batalha, os japoneses tornaram-se passivos na recepção aos vencedores.

Do frenesim da guerra à passividade da paz, os japoneses haviam encontrado um caminho para a harmonia. Do fulgor da espada, os japoneses passaram à tranquilidade do crisântemo.

  • O controlo e a aplicação da energia, a criação de harmonia ou a procura de um caminho próprio, são atributos fundamentais do Aikido e essenciais na vida.


OS CÍRCULOS DOS SENTIMENTOS, DA ÉTICA E DO MOVIMENTO

A vida japonesa é organizada em diversos círculos - o círculo do Chu, do Ko, do Giri, do Gin – que enquadram um vasto conjunto de atitudes e comportamentos. Tomando como exemplo uma acusação de maldade ou egoísmo, os japoneses determinam o círculo dentro do qual cabe a violação do código de ética.

  • Uma das características mais importantes do Aikido é a de utilizar “movimentos fluidos e dinâmicos em círculo e em espiral, baseados nas leis da natureza”, lê-se na definição de Aikido da nossa Associação. “É significativo que no Aikido todos os movimentos contenham círculos e espirais. E, quando usado, o círculo sempre se compõe de dois aspectos, o Yin e o Yang”, escreveu Wagner Bull, em “Aikido - O Caminho Da Sabedoria, a Teoria”.


A postura comportamental dos japoneses não é um palco de luta entre o bem e o mal. A vida é sim o superar das exigências de um círculo face ao outro. A robustez de carácter japonesa é a que elege as obrigações primeiro do que a felicidade pessoal.

  • O O’Sensei escreveu a este propósito: “assim que te inquietes com o bem e o mal dos teus companheiros, criarás uma abertura no teu coração para que entre a malícia”.


Apesar de adeptos do auto-sacrifício os japoneses não menosprezam a auto-satisfação. Mais, apesar de serem uma das maiores nações budistas a ética japonesa não estigmatiza o desejo pessoal. Todavia, para os japoneses, os prazeres estão mais na esfera da arte do que na da satisfação.

Um dos pequenos deleites mais apreciados era o do banho quente, costume que fazia parte da vida japonesa. Porém, a imersão em água muito fria, sobretudo ao acordar (ou mesmo de madrugada – à hora dos deuses), era uma exigência para os que pretendiam aprender uma arte. Descobrir-se ao frio rigoroso era apreciado como virtude.

  • Sabe-se que o fundador do Aikido, Morihei Ueshiba era um adepto dos banhos gelados pela manhã. Outro adepto desta prática era o Shihan Reishin Kawai, instrutor do nosso mestre José Azevedo.


CONCLUSÃO

 


Aqui chegados, é possível rever sucintamente a abordagem e sintetizar o que aqui nos trouxe: a cultura japonesa.

Começamos pelo paradigma da aprendizagem, pelo ambiente de independência e tolerância das crianças e dos idosos japoneses, em contraponto com o rigoroso escrutínio social dos adolescentes e dos adultos. Identificamos o tipo de aprendizagem ministrado pelos pais, que se baseia na necessidade de reprodução do que é observado.

Realçamos também a preparação da criança para a indispensabilidade de uma auto-observação e para a inevitável opinião dos outros, embaraço para o qual os japoneses criaram modelos de mediação, como sejam, o sistema hierárquico (que inclui a etiqueta), a redução da competição, a figura do intermediário e todo um complexo universo de contraprestações.

Outro aspecto que abordamos e que marca a cultura japonesa de forma derradeira é também um dos maiores constrangimentos do homem japonês: a vergonha, um sentimento ausente nas crianças, mas impossível de não existir no adulto.

A vergonha do fracasso, na escola, no trabalho ou no desporto, é dificilmente sublimada. A vergonha surge como reacção à crítica social e obriga o actor a não limitar o seu desempenho para não perder a honra.

Para não perder a face, os japoneses têm de fazer o que deve ser feito, assumindo uma consciência pessoal que se traduz em auto-disciplina. É essa auto-disciplina, muitas vezes associada ao auto-sacrifício, por tanto uma exigência extraordinária de si próprios, que os liberta da proscrição.

Destacamos ainda, no âmbito do complexo sistema de contraprestações, o universo de obrigações continuadas, “Gimu”, que regula as relações de reciprocidade transversais na cultura japonesa.

Terminamos salientando o carácter japonês do primado das obrigações sociais sobre a felicidade pessoal, mas cujas exigências, apesar de rigorosas e por vezes violentas, deixam espaço aos prazeres individuais que os japoneses transformam amiúde em arte.

Finalmente, importa retomar o tema que, tal com evidenciado n’O Crisântemo e a Espada, aborda a questão das contradições do comportamento sobretudo masculino ditado particularmente pela aprendizagem e pelas relações de reciprocidade da cultura japonesa.

Logo após, elegeremos o core das questões que de forma mais relevante podem conter elementos capazes de estabelecer ligações entre a cultura japonesa e a prática do Aikido.

DUALIDADES, AS CONTRADICÇÕES DA CULTURA JAPONESA

Segundo Ruth Benedict, os japoneses “oscilam entre os excessos de amor romântico e a completa submissão à família”. O seu árduo treino de ponderação leva-os a ser tímidos, mas também podem ser valentes e ousados.

Apesar de se mostrarem especialmente obedientes em conjunturas hierárquicas, isso não quer dizer que sejam consequentemente brandos quando um superior os pretende conduzir.

Não obstante respeitarem escrupulosamente a cortesia da sua etiqueta, podem ser extremamente arrogantes. Apesar de autenticarem a rigorosa disciplina militar, podem não se obedientes e rebelarem-se.

Os japoneses são ao mesmo tempo conservadores e inovadores, respeitam as tradições mas também se empolgam com as coisas novas. Conseguem controlar circunstâncias para as quais se adestraram, mas as situações imprevistas são geridas com muita dificuldade.

  • Foi sobre esse carácter dual da existência que o O’Sensei reconheceu ao escrever: “cada dia da vida humana contém alegria e cólera, dor e prazer, obscuridade e luz, crescimento e decadência”.


As contradições da conduta masculina japonesa são sobretudo ditadas pela descontinuidade da sua educação que, apesar do polimento da vida posterior, deixa marcas profundas de desigualdade entre a vida infantil e a adolescência.

Os japoneses impõem a si próprios uma disciplina rigorosa, criando por um lado uma barreira de defesa face aos outros e, por outro, exigindo para si mesmos um desempenho pessoal excepcional. Muitas vezes, são obrigados a prescindir dos prazeres pessoais para evitarem situações de embaraço ou calúnia.

Por tal, é imprescindível estar vigilante, quer face à própria conduta, quer face às eventuais críticas ao desempenho pessoal. É em ocasiões de ostracismo ou depressão que os japoneses podem experimentar reacções violentas contra os agressores, caso das vinganças homicidas, ou contra si mesmos, caso dos suicídios.

A VERGONHA COMO RAIZ DA VIRTUDE

Uma das várias contradições identificadas face ao pensamento ocidental, admite que os japoneses dão mais importância à vergonha social do que à culpa.

Enquanto para os ocidentais a culpa é sancionada, para os japoneses a vergonha já é uma sanção importante não sendo facilmente aliviada (nem socialmente institucionalizada) pela culpa como no ocidente.

A vergonha obriga a aguardar o julgamento público dos próprios actos. No pensamento japonês, a vergonha tem a “consciência limpa”. Quem reconhecer ter vergonha é considerado honrado. Para os japoneses, a vergonha é a raiz da virtude.

Porém, para um japonês ter vergonha não é condição suficiente para atingir a virtude. Há um processo para conseguir ser virtuoso. Tal como no Aikido há um caminho de aprendizagem, exercício e conhecimento.   
    
  • O O’Sensei dizia que, desde os tempos antigos, a aclaração do corpo e da mente era feita através da virtude do treino, ou seja, a liberdade face aos constrangimentos, como seja a vergonha, ultrapassa-se com a probidade do treino.


A AUTO-DISCIPLINA COMO MEIO DE ATINGIR A VIRTUDE

Ser virtuoso é ser competente e, no limite, ser perito. Para tal, tais conceitos têm de ser organizados pela vontade e não decretados pela obrigação.

A obrigação – ter de comer, de ter fazer, ter de treinar – cria conflitos. Por tal, o governo do corpo deve ser feito através da auto-disciplina que se funda no auto-sacrifício, no auto-sacrifício sem lamento.

  • Pode ler-se n’A Arte da Paz: “A lealdade e a devoção conduzem ao heroísmo. O heroísmo leva ao espírito de auto-sacrificio. O espírito de sacrificio cria a verdade no poder do amor.”


Está na vontade o ónus de reproduzir o que é mostrado. A virtude aprende-se por cópia, não por esforço intelectual, mas através da descoberta individual. Talvez por isso a nossa demanda de manuais de Aikido não seja decisiva no processo de aprendizagem.

A PERÍCIA COMO ESTÁGIO DE VIRTUDE

O círculo da perícia encontra-se num nível superior ao da auto-disciplina. Atingir um estado de perícia é conseguir simultaneamente vontade e acção, um estado que não necessita de sensação.

O treino tem como objectivo alcançar uma “mente calma e bem regulada”. O treino técnico é uma vantagem, um estádio e uma condição par atingir o nível da perícia.

  • No Aikido, a condição de perito atinge-se quando o treino permite não existir qualquer brecha entre vontade e acção, ou seja, quando se encontra o caminho da vontade para a harmonia (e para o amor).

PERÍCIA E MEDITAÇÃO

O empenhamento no treino para alcançar a fase de perito tem algumas similitudes com as práticas individuais de meditação budista, similares na esfera do esvaziamento da mente – o não pensar – da imobilidade do corpo – aguentar até agir - na reprodução sucessiva da mesma frase – repetição da movimentação.

Porém, o zen japonês que se baseia na auto-ajuda, reconhece que a ajuda potencial não é um horizonte longínquo a alcançar, mas que está dentro de nós. 
  • “A Arte da Paz começa contigo. Trabalha em ti mesmo (…)”, escreveu Moreihei Ueshiba, o que significa ser possível alcançar um desenvolvimento superior através dos próprios esforços.


A CONDIÇAO DE PERITO

Atingir a condição de perito é treinar o ser consciente tantas vezes quanto necessário para, a partir de certa altura, ser possível não experimentar desconforto.

  • É fácil recordar as três condições para chegar mais além no Aikido, que o Sensei Azevedo e Silva nos incute frequentemente nas aulas: a primeira condição é treinar, a segunda, treinar, a terceira, treinar. “O progresso vem aqueles que treinam e treinam”, escreveu o O’Sensei.


O treino correcto leva à condição de perito, de ”muga”, ou seja ao estado de ausência de esforço. O indivíduo solta-se e o conflito entre o agente e o observador soluciona-se.

A condição de “muga” descobre que o ser observador, criado pela consciência, deixa de existir. O plano da perícia é então conseguir um estado de não consciência, uma suprema libertação de constrangimentos e conflitos, de eliminação da auto-sensura, ver-se livre do embaraço.

Ruth Benedict descreve este estado de perícia que , “(…) consiste em assinalar as experiências, seculares ou religiosas, em que “não se verifica nenhuma brecha, nem mesmo da espessura de um cabelo” entre a vontade de um homem e o seu ato.”

  • No Aikido, como em outras artes, o propósito passa logo por “harmonizar o consciente e o inconsciente”. A meta é então a transcendência do domínio técnico, de modo que se converta numa produção do inconsciente, tal como sugere, Eugen Herrigel, em “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”.


O alvo é atenuar a sensação de nervosismo e tensão. Os japoneses têm uma frase lapidar nesta matéria: “viver como se estivesse morto”, dito no sentido de que se vive no plano da perícia eliminando o plano da consciência.

ATITUDES CULTURAIS PROACTIVAS

Ao questionarmos o método e a prática, ao sentimos os obstáculos da execução, ao experimentarmos a dificuldade no desempenho do Akido, podemos sentir por vezes uma insatisfação tremenda e uma frustração implacável.

Podemos sentir um desconforto pessoal decorrente da ideia de incapacidade pessoal ou de que os outros nos sancionam com a sua desaprovação, sobretudo quando o resultado imediato do desempenho é tímido ou ineficaz, nos sentimos humilhados.

São situações que se podem repetir em outros aspectos da vida, na profissão ou na escola, e que reclamam por solução, por uma resultado susceptível de reduzir ou eliminar aquelas dificuldades.

Segundo acabamos de ler, é possível encontrar paralelismos entre a cultura japonesa, criadora, e o Aikido, enquanto criação dessa cultura. Nesse sentido, será provável também descobrirmos soluções semelhantes para o imbróglio da vergonha e da humilhação de um desempenho sofrível.

A satisfação pela execução correcta passa irremediavelmente pela vontade, pela auto-disciplina e pelo treino, condições passíveis de nos levar ao nível de perito. Está na nossa mão aderirmos à ideia de fazer da vontade, desobrigando-nos de imposições mais ou menos instituídas ou sugeridas.

A nossa vida pode ser influenciada ou mesmo balizada por uma diversidade de situações e ser constrangida por múltiplas incapacidades, mas também é possível eleger e desenvolver um “caminho”, uma via de disciplina, um método d etreino, um conjunto de anseios que nos oriente e organize.

É através dessa via pessoal que se pode criar uma “harmonia” activa, uma unificação dos nossos desejos, uma complementaridade de posições ou acções, uma focagem colocada na importância do ser e do fazer.

Nesse caminho concorre a “energia” do nosso corpo, relevante no desenvolvimento do espírito de união e não-conflito, na coordenação entre a mente, o corpo e espírito, e na harmonização com a natureza e cultura.

CRISÂNTEMO E A ESPADA 

Chegamos ao final desta visita à cultura japonesa e do périplo pela Arte da Paz, sem esquecer o que sedutor título do livro, “O Crisântemo e a Espada”, ainda nos pode oferecer no âmbito das questões antes colocadas.

Erza Vogel, um eminente professor de Ciências Socias americano, que no prefácio do livro identificara um conjunto de contradições da cultura japonesa descrito por que Ruth Benedict, evidencia aí também a circunstância dos japoneses, à altura, “estarem dispostos a morrer pela espada, mas ao mesmo tempo, serem tão afectados pela cultura dos crisântemos”.

Uma flor e uma espada podem surgir aparentemente como opostos ou contraditórios. Uma flor, ligada à fragilidade e ao feminino, como contraponto da espada, vigorosa e masculina.

Porém, a enfatização destes dois ilusórios contrários não surge inocente, antes de maneira simbólica e com uma intenção mais conciliadora do que controversa.

O cultivo dos crisântemos é feito com o objectivo de obter uma planta perfeita com cada pétala modelarmente disposta, para depois serem mostradas em público e granjearem prestígio. A cultura dos crisântemos é uma arte.

Mas não só. Para além do apreço geral pelas flores que os japoneses nutrem, o crisântemo é também um símbolo do imperador e da religião xintoísta.

Como notou Venceslau de Moraes, escritor, militar e cônsul português no Japão, a arte japonesa dos arranjos florais, “obedece a um rigoroso esquema onde estão simbolicamente representados em harmonia o céu, a terra e a Humanidade.

  • Concomitantemente, a ideia do O’Sensei sobre o Aikido vai de encontro a essa simbologia ao afirmar que, “a Arte da Paz é uma celebração da unificação do céu, da terra e da humanidade”.


Por outro lado, a espada é considerada como extensão do detentor, mas uma parte que partilha a responsabilidade pela consequência dos seus actos. A espada passa a ser o símbolo da auto-responsabilidade, a “espada radiante de pacificação”.

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Poder-se-á concluir destacando alguns dos aspectos culturais japoneses que ao longo deste ensaio se foram revelando mais importantes e que de alguma forma cotejam a prática do Aikido.

Na cultura japonesa, o valor e a dignidade pessoais estiveram sempre presentes como legado maior dos ancestrais que é a honra. A honra é contudo permeável à vergonha se a reacção crítica dos outros não for mediada por exemplo com o treino aturado. Para não perder a face, para fazer o que deve ser feito, os japoneses têm de apelar á vontade para que a sua auto-disciplina lhes ratifique a honra e a dignidade.

De modo semelhante, na prática do Aikido, é preciso exercer uma vigilância pertinaz sobre o desempenho, cumprir uma auto-disciplina constante e, sobretudo, treinar com ponderação e afinco, de modo a ultrapassar todos os constrangimentos que a novidade, o rigor, a dificuldade e a tecnicidade da prática lhe possam causar.



Bibliografia

A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Eugen Herrigel, Editora Pensamento, São Paulo

Aikido - Etiquette et Transmission, Budo Editions, Noisy sur Ecole

El Arte de la Paz, Morihei Ueshiba, traduzido do original por John Stevens, e traduzido do inglês por Pedro J. Riego, Editorial Kairós, Barcelona

O Crisântemo e a Espada, Ruth Benedict, Editora Pensamento, São Paulo

O Livro dos Cinco Anéis, (Gorin No Sho), Miyamoto Musashi, tradução de José Yamashiro, Cultura Editores Associados, São Paulo