Pelas terras de D. Quixote
Final de Dezembro de 2007
“- acudam, senhores! depressa! valham a meu amo, que anda metido na mais renhida batalha que estes olhos nunca viram! Deus louvado! pregou já uma cutilada no gigante inimigo da senhora Princesa Micomicadela, que lhe cortou a cabeça pelo meio como se fora um nabo.”
D. Quixote de La Mancha (1605), de Miguel de Cervantes [Saavedra] (1547-1616)
D. Quixote de La Mancha (1605), de Miguel de Cervantes [Saavedra] (1547-1616)
O espaço estremenho que atravessa La Mancha e leva a Ciudad Real não surpreende. O ambiente imita a planura e a vegetação rasteira alentejana e, só à passagem sobre o Guadiana - o Wadi Ana árabe - o relevo se agiganta.
A Plaza Mayor é, como habitualmente, um sítio vital da vida comercial e turística, além de passeio obrigatório das famílias. Não tem a dimensão monumental das congéneres de outras urbes, mas a arquitectura do edifício da Câmara, de um rendilhado particular, bem como um mecanismo constituído por bonecos robôs. marca a diferença.
Perto, a igreja gótica de S. Pedro, de século XVI, depois a Catedral de século XVI, e o Museu Municipal que ocupa um edifício antigo.
A meia dúzia de quilómetros fica Calatrava La Vieja. Vê-se ao longe, no horizonte da ainda campina irrepreensível. É lá que o pequeno cerro que eleva o castelo espanta, raro local para edificar uma urbe que chegou a ser o local mais povoado entre Córdoba e Toledo, até ao século XIII.
Mas ainda é visível a extensão do Alcazar (1ha), a existência de um fosso (que era inundado artificialmente), entradas assimétricas, uma torre pentagonal em proa, várias torres albarrãs.
Inimaginável foi, porém, o vislumbre dos modelos dos engenhos hidráulicos, capazes de transferir a água do rio passando-a acima das muralhas, através de alcatruzes gigantescos.
Seria, porém, o complexo arqueológico de Alarcos a deslumbrar, situado do lado oposto a Ciudad. Foi difícil dar com o monte, mas, uma vez descoberto, percebe-se que a dimensão vai além do lugar de Calatrava la Vieja. Há vestígios, bastantes e notórios de ocupação ibera (ainda se percebe a planta das casas e as ruas), e ruínas medievais (um castelo árabe e uma ermida românico-gótica).
Um cemitério árabe antecede a escada de acesso ao castelo, em cujo interior ainda é perceptível a planta das habitações do século XII. Próximo, uma ermida em bom estado de conservação, com uma rosácea excelente. Mais abaixo, uma loja, um pequeno núcleo museológico e um auditório que projecta um audiovisual sobre a história do lugar. Duas horas, uma guia excelente, uma profícua lição de História.
Em Calatrava La Nueva, porém, o ar aqueceu. Fosse do vale que lá leva ou da excitação daquele horizonte casto, a verdade é que é difícil ficar indiferente ao local. Construído no píncaro de um monte aguçado, o convento-castelo é uma obra formidável.
Do cimo, a vista é impressionante, vislumbrando-se alguns cumes acima do manto de nevoeiro que esconde os vales limítrofes. As pedras estão imaculadas devido à recuperação de que foram alvo. Lê-se que o Estado utiliza desempregados para aqueles trabalhos de restauração...
Desce-se à cidade e passa-se pela catedral a caminho das zonas comerciais e dos bairros mais antigos de traça árabe. Tal como as catedrais de Barcelona ou Burgos, também a de Jaen dispõe de um local central destinado a reuniões e concílios, além de capelas laterais ricamente decoradas com uma profusão de talha dourada.
Como habitualmente, foi um périplo com uma forte incidência medieval. Todavia, rara foi a presença de D. Quixote, o cavalheiresco fidalgo esquálido – o tal da “fraca figura” – ou do fiel Sancho Pança, o seu rotundo escudeiro.
Omnipresentes, muitos e saborosos acepipes típicos, como as migas, o pisto manchego, os tiznaos… surpreendente, afinal, foi mesmo um reserva tempranillo Valdepeñas com mais de dez anos, a preço de vinho comum.
Música: Senhor, perlos nostres peccatz
Álbum: Batalla de Alarcos, 1195
Autor: Eduardo Panagua