domingo, 17 de fevereiro de 2008

De Ciudad a Xauen





















Pelas terras de D. Quixote
Final de Dezembro de 2007

“- acudam, senhores! depressa! valham a meu amo, que anda metido na mais renhida batalha que estes olhos nunca viram! Deus louvado! pregou já uma cutilada no gigante inimigo da senhora Princesa Micomicadela, que lhe cortou a cabeça pelo meio como se fora um nabo.”
D. Quixote de La Mancha (1605), de Miguel de Cervantes [Saavedra] (1547-1616)

O espaço estremenho que atravessa La Mancha e leva a Ciudad Real não surpreende. O ambiente imita a planura e a vegetação rasteira alentejana e, só à passagem sobre o Guadiana - o Wadi Ana árabe - o relevo se agiganta.

Enquanto novidade, Ciudad não espanta. É uma cidade calma, de gente sóbria, edifícios baixos, espaços sensatos, apesar do estacionamento exíguo e da manutenção urbana não parecer eminente.

A Plaza Mayor é, como habitualmente, um sítio vital da vida comercial e turística, além de passeio obrigatório das famílias. Não tem a dimensão monumental das congéneres de outras urbes, mas a arquitectura do edifício da Câmara, de um rendilhado particular, bem como um mecanismo constituído por bonecos robôs. marca a diferença.


Perto, a igreja gótica de S. Pedro, de século XVI, depois a Catedral de século XVI, e o Museu Municipal que ocupa um edifício antigo.

Mais longe, um pequeno pano de muralhas passa quase despercebido, mas a Porta de Toledo, uma relíquia do passado árabe, domina no periférico a rotunda que leva a norte. Tudo isto sobre uma planura imaculada, que permite percorrer toda a cidade a pé sem grande esforço.

A meia dúzia de quilómetros fica Calatrava La Vieja. Vê-se ao longe, no horizonte da ainda campina irrepreensível. É lá que o pequeno cerro que eleva o castelo espanta, raro local para edificar uma urbe que chegou a ser o local mais povoado entre Córdoba e Toledo, até ao século XIII.

É sobretudo o gigantismo dos sistemas hidráulicos, o perímetro das muralhas (1,5 kms) e o número de torres (44) que a fortaleza teria, que permite imaginar a dimensão passada do lugar.

Mas ainda é visível a extensão do Alcazar (1ha), a existência de um fosso (que era inundado artificialmente), entradas assimétricas, uma torre pentagonal em proa, várias torres albarrãs.

Inimaginável foi, porém, o vislumbre dos modelos dos engenhos hidráulicos, capazes de transferir a água do rio passando-a acima das muralhas, através de alcatruzes gigantescos.

Seria, porém, o complexo arqueológico de Alarcos a deslumbrar, situado do lado oposto a Ciudad. Foi difícil dar com o monte, mas, uma vez descoberto, percebe-se que a dimensão vai além do lugar de Calatrava la Vieja. Há vestígios, bastantes e notórios de ocupação ibera (ainda se percebe a planta das casas e as ruas), e ruínas medievais (um castelo árabe e uma ermida românico-gótica).

Do monte onde o castelo está implantado, a vista domina todas as elevações e campos em redor. A fortaleza esteve soterrada durante séculos, tendo sido de novo exposta nos anos 80, mas actualmente ainda é alvo de escavações arqueológicas, uma vez que se estima existirem ainda bastantes vestígios de ocupações do solo enterradas. Há poucos anos, junto de uma das muralhas viradas a sul, foi descoberta uma espécie de vala comum onde foram sepultados os cristãos que pereceram na batalha.


Um cemitério árabe antecede a escada de acesso ao castelo, em cujo interior ainda é perceptível a planta das habitações do século XII. Próximo, uma ermida em bom estado de conservação, com uma rosácea excelente. Mais abaixo, uma loja, um pequeno núcleo museológico e um auditório que projecta um audiovisual sobre a história do lugar. Duas horas, uma guia excelente, uma profícua lição de História.

Almagro já foi uma localidade opulenta. Os pórticos e os brasões de algumas mansões assim o testemunham. Possui uma Plaza Mayor peculiar, com edifícios de 2 pisos e duas galerias comerciais paralelas que envolvem um jardim raso. A localidade é acolhedora, mas faz frio… o mesmo que estava de manhã, dois negativos.

Em Calatrava La Nueva, porém, o ar aqueceu. Fosse do vale que lá leva ou da excitação daquele horizonte casto, a verdade é que é difícil ficar indiferente ao local. Construído no píncaro de um monte aguçado, o convento-castelo é uma obra formidável.



Tem acesso moroso e difícil, complicado e estreito no interior. As muralhas são altíssimas, o ingresso no átrio de entrada obriga a serpentear e a entrar numa espécie de pátio coberto. As dependências são inúmeras e percebem-se bem as divisões do convento, os espaços de outras habitações, uma ermida da Ordem, uma igreja esplêndida e os vários panos de muralhas que envolvem a fortificação.

Do cimo, a vista é impressionante, vislumbrando-se alguns cumes acima do manto de nevoeiro que esconde os vales limítrofes. As pedras estão imaculadas devido à recuperação de que foram alvo. Lê-se que o Estado utiliza desempregados para aqueles trabalhos de restauração...


Depois foi Jaen, a antiga Xauen árabe, a estender-se em redor do monte que alberga o castelo de Santa Catalina. Tal como a fortaleza de Calatrava que havíamos visitado de manhã, este eleva-se a duas centenas de metros de altitude sobre a cidade e estende-se ao longo uma crista rochosa impraticável. Algumas das torres ainda estão perfeitamente conservadas, assim como o pano central de muralhas. O interior ainda alberga algumas divisões, sobretudo na torre principal, onde tem lugar a apresentação de um vídeo sobre a história do castelo. Outro panorama extasiante.


Desce-se à cidade e passa-se pela catedral a caminho das zonas comerciais e dos bairros mais antigos de traça árabe. Tal como as catedrais de Barcelona ou Burgos, também a de Jaen dispõe de um local central destinado a reuniões e concílios, além de capelas laterais ricamente decoradas com uma profusão de talha dourada.

Como habitualmente, foi um périplo com uma forte incidência medieval. Todavia, rara foi a presença de D. Quixote, o cavalheiresco fidalgo esquálido – o tal da “fraca figura” – ou do fiel Sancho Pança, o seu rotundo escudeiro.

Omnipresentes, muitos e saborosos acepipes típicos, como as migas, o pisto manchego, os tiznaos… surpreendente, afinal, foi mesmo um reserva tempranillo Valdepeñas com mais de dez anos, a preço de vinho comum.





Música: Senhor, perlos nostres peccatz
Álbum: Batalla de Alarcos, 1195
Autor: Eduardo Panagua