sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Alfama. Olhar o Tejo por Entre o Casario



















Lisboa de Séculos

No castelo ponho o cotovelo
Em Alfama descanso o olhar
E assim desfaço o novelo
De azul e mar,

i
n Lisboa, Menina e Moça,
de Ary dos Santos


Pertenceu, até há pouco mais de uma trintena de anos, aos descendentes do vice-rei da Índia, Afonso de Albuquerque. A Casa dos Bicos fica aos pés de Alfama.
Daí, atrevemo-nos por um túnel e trepamos à Sé. É perto e bom caminho. Lá em cima, recebe-nos a fachada românica afonsina, um cenário de séculos, do século da nossa nacionalidade.

É o estilo gótico que (me) surpreende (sempre). Simples, austero, estreito, alto, poderoso, o espaço compele à contemplação que leva à devoção. A nave central da sede da Caixa Geral de Depósitos, por exemplo, imita-lhe o estilo e o propósito.

De lá, apetece subir ao castelo. Mas é uma placa a indicar “Teatro Romano”, que altera o intento e motiva a entrada. Lá dentro, envolvem-nos vestígios de frisos, colunas, bustos e capitéis do teatro romano de Lisboa. Num instante, foram dois milénios que resgatámos. As ruínas são do início da era cristã.

Há outro piso que reúne mais peças e dá outra perspectiva das paredes do monumento. Das janelas, avista-se um Tejo tranquilo. Fora, como miradouro, uma espécie de varanda larga encontra o edifício contíguo e abre para a rua das traseiras. Atravessando-a, há mais teatro. Percebem-se paredes, colunas, bancadas num espaço mais amplo.

Depois descemos, a caminho do miradouro junto da Cerca Moura. Fica logo após um pano de muralhas mouriscas de dez séculos. Regressamos ao medieval.

Para baixo, as ruas estreitam, é Alfama, o antigo bairro mouro Al Hamma. Já lá vamos. Para cima, é a igreja de São Vicente cujo interior barroco e monumental esmaga. Depois, a passagem pelo terreiro da Feira da Ladra leva à Igreja de Santa Engrácia, vulgo Panteão Nacional, de arquitectura invulgar, já que se trata de uma igreja circular.

Muitos nomes da História nacional estão lá sepultados. Amália Rodrigues é quem monopoliza as romagens. Do alto do zimbório, após meia dúzia de lanços de escada, a vista vai de novo ao Tejo, ao porto mercante, ao convento de São Vicente, a arquitecturas recentes da capital.

Daí a pouco, o espaço aperta, recomeça o labirinto mourisco. Aparecem becos e pátios, entre vielas que, em escadaria, serpenteiam Alfama. Chefchaouen, em Marrocos, só é mais azul.
As janelas estreitam-se e encolhem, as portas mirram, a roupa aparece a secar, os cães surgem à janela. As pessoas aproximam-se, ouvem-se as conversas, entra-se em contacto.

Confudem-nos com estrangeiros. Descemos com paroquianos acompanhados pelo prior. As missas dominicais adiavam-se para o fim da tarde.

Descobrimos um recanto simpático, logo após passarmos pela porta lateral dos "banhos públicos". A Xauen marroquina salta imediatamente da memória e estala de semelhança.

Estão velhas, muitas habitações antigas. Algumas rivalizavam com as ruínas romanas, ali perto, a dois mil anos; outras, já foram recuperadas, com cores quentes, janelas com molduras de pedra, estores metalizados, gradeamentos pintados.

Mais abaixo, à imagem do Panteão, nova capela, também circular, muito iluminada pela luz que vem do rio. Voltamos a olhar o Tejo, ali aos pés.

A descer, o dédalo atenua-se, mas o aperto das ruelas resiste. Há mais pátios, onde rompem algumas lojas e restaurantes, casas de fado.

Desembocamos quase na margem do rio, com a sensação de que abandonámos uma fortaleza, cujos meandros dificultam a progressão, mas aproximam as pessoas que lá vivem de si próprias e dos outros que as visitam.

No final, uma rua estreita leva a uma viela. Ao fundo, um revistimento diferente nas paredes de uma casa grande. É um palácio que ainda resiste ao tempo.

Tal como este bairro de séculos…




Música: Asas Sobre o Mundo
Álbum: Dialogues


Autores: Carlos Paredes e Charlie Haden