Quantos de nós não sentimos
já o desencanto de não conseguirmos executar um procedimento curto e simples?
... ansiedade para terminar uma acção? ...estivemos perante o insucesso de uma intervenção?
...o constrangimento de um erro? Sim, muitos de nós, se não, todos.
Quantas vezes não fazemos o
que vemos ou que os mestres nos dizem para fazer? ...pensamos no detalhe e prendemos-nos às
etapas? ...e não conseguimos soltar-nos da didáctica? ...ou de nós próprios? E,
depois, algures, surge como surpresa um bom desempenho, a ausência de
hesitação, uma decisão rápida e eficaz.
O espanto de uma boa execução
contribui certamente para melhorar a auto-estima, orientar o provir, no limite
satisfazer o ego. Mas não explica a arte. Mais do que encontrar uma
razão ou um “porquê” para/das coisas que fazemos, das iniciativas que criamos,
das decisões que tomamos, “A Arte do Arqueiro Zen” explica a conduta,
desenvolvendo o modelo e o caminho para o 'saber desempenhar' que, em última
instância, se pode considerar arte.
Ao ler o livro é impossível
não descobrir semelhanças com a aprendizagem e prática de Aikido. É, também, encontrar
imensos detalhes da didáctica e da pedagogia do Aikido. E reconhecer ainda que o que
nos é transmitido nas aulas de Aikido tem muitos pontos de contacto com os
princípios da Arte do Arco, Kyudo.
A ARTE COMO NÃO-ARTE
Apesar de abordar o tema da
actividade de tiro com arco - uma das artes mais inúteis que existem, nas
palavras do prefácio - este livro trata sobretudo da atitude e da filosofia
Zen. Se as quisermos definir à luz dos seus próprios credos, diríamos que são
aquilo que não são.
Estranho, não é?
"Para ser um autêntico arqueiro, o domínio técnico é
insuficiente. É necessário transcendê-lo, de tal maneira que ele se converta
numa arte sem arte, emanada do inconsciente.",
in, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen
in, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen
É verdadeiramente um alvoroço
que ressalta da leitura. A dificuldade de entendimento da filosofia budista, da
didáctica japonesa e do comportamento Zen, parece comparável às dificuldades de
executar um bom Aikido. Porém, tal como alude a doutrina Zen, devemos
experimentar para perceber. Por tanto, neste caso, convém ler para entender.
Diz-se que “o verdadeiro mestre revela a sua coragem com
atitudes, jamais com palavras”. Talvez o “jamais” ali esteja para reforçar a
atitude. Talvez ali surja para salientar a prática. Todavia, a palavra (do
mestre) orienta, complementa e também releva para o fazer, para o treino, para
a atitude da prática.
Entre outros aspectos, o que
também se pode apreender do conteúdo do livro é um conjunto de procedimentos,
uma espécie de manual de comportamento, que aborda de uma forma abrangente os
temas da frustração, da impaciência, do fracasso, da vergonha, e lhes contrapõe
“soluções”, baseadas na respiração, na concentração/meditação, na ausência de
pensamento.
O "Go Rin No Sho", O Livro dos Cinco Anéis, baseava-se da
arte da espada para sistematicamente aludir a procedimentos e técnicas,
pormenorizando perícias e práticas, às quais ia associando comportamentos
assentes em estratégias de combate/conflito/decisão.
A Arte Cavalheiresca do
Arqueiro Zen, embora aborde a técnica – neste caso do tiro com arco -
preocupa-se sobretudo em contextualizar essa destreza com a atitude adequada
para o praticar.
A atitude Zen é, por assim
dizer - e se se pode definir - o meio e o fim da arte (do arqueiro, mas também
de outras actividades artísticas/culturais). É através dessa postura que o
praticante consegue, com esforço mínimo e concentração máxima, superar a
técnica e praticar a arte.
Por outro lado, e uma vez que
a sabedoria oriental se escora na prática, a experiência não é transmissível,
pelo que o contágio da educação não se dá pela simples transmissão de
conhecimento. É preciso praticar, praticar, praticar.
É fácil autenticar a reprodução deste modelo tantas vezes
reproduzido (e repetido) pelo meu saudoso Sensei José Azevedo e Silva (1928-2018),
um conhecido decano do Aikido Nacional. “O Aikido tem três regras fundamentais:
a primeira é treinar, a segunda treinar e a terceira... treinar!”, dizia, no seu
estilo chistoso e assertivo.
TRANSCENDER O PENSAMENTO
Este livro foi escrito por um
professor de filosofia alemão, Eugen Herrigel, que, praticamente com 40 anos de
idade, viajou para o Japão nos anos 20 do século passado, para aprender mais
sobre misticismo oriental, estudando-o por dentro.
Download em http://megaalexandria-metablog.blogspot.com/2008/11/download-arte-cavalheiresca-do-arqueiro.html
Através de um colega
académico japonês, conseguiu contactar um mestre-arqueiro que o convenceu a
aceitar a aprendizagem do Zen através da prática de uma arte, a arte do tiro
com arco. Eugen ficará no Japão durante seis anos.
O prefácio coloca em
evidência a diferença, a divergência que terá de ser experimentada entre a
lógica, a estrutura, as relações do pensamento ocidental e as premissas Zen que
não são mediadas pelo intelecto, e vão além das “palavras, do silêncio, dos
gestos”, e do entendimento.
É o acto de deliberar,
calcular, conceptualizar que nos domina o pensamento. Porém, “grandes obras
realizam-se quando não se pensa e não se calcula”. Tal remete para a necessidade
de abandonar a nossa lógica e os procedimentos analíticos tipicamente
ocidentais que nos caracterizam e nos moldam a prática.
Parece, então, que as
dificuldades nas abordagens iniciais e nos desenvolvimentos imediatos, a
maioria decorre de racionalizar demais sobre coisas que deveriam somente ser
sentidas e por ansiosamente buscar resultados visíveis e eficazes.
Depois, a Introdução volta a
surpreender afirmando o que a arte não é, explicando que o objectivo não é o
“aprimoramento do prazer estético, mas excitar a consciência ao máximo”. O
propósito da arte passa logo por “harmonizar o consciente e o inconsciente”. A
meta é então a transcendência do domínio técnico, de modo que se converta numa
produção do inconsciente.
O GENESIS DA APRENDIZAGEM
As primeiras páginas do texto
central descrevem o acesso à arte, mas também as dúvidas, as primeiras abordagens,
a frustração inicial, as percepções imediatas, a aprendizagem dos princípios.
Uma realidade pessoal é sistematicamente assinalada: a dificuldade do percurso
de aprendizagem, nesta fase ainda elementar.
No meu
tirocínio de Aikido, foi também o que aconteceu. No início, raramente conseguia
lidar com os constrangimentos da novidade, da execução e, pior, com a
“exigência” de estar permanentemente a fazer uma auto-análise, sem sequer ter
alguma experiência. Sem sequer saber esperar.
Colocam-se várias questões,
como seja a da ausência ou insuficiência de manuais. A essa dificuldade
contrapõe-se a componente insubstituível da aprendizagem, que é o
acompanhamento por um mestre. Outra, é o problema do esforço (ao esticar o
arco), a que é contraposto o relaxe e a respiração, sugerindo-se uma expiração
lenta e uniforme.
Não se trata por tanto de
superar qualquer artifício técnico, mas de descobrir uma outra respiração. E
“porque é que a respiração não foi ensinada de início?”, perguntava-se. É
preciso que o aluno experimente a diferença entre o antes e o depois,
respondia-se posteriormente.
O tema da
respiração está sempre presente no Aikido. O poder da respiração – Kokyu Ryoku
– a extensão da nossa energia e o aproveitamento da energia do parceiro,
representa um papel fundamental na prática.
Outra circunstância que é
salientada no livro relaciona-se com a impaciência, com a necessidade de obter
resultados, uma espécie de causa-efeito compulsiva. A alusão de que “é preciso
naufragar nos próprios insucessos para aceitar o colete salva-vidas” é
paradigmática e esclarecedora.
Era
habitual perder-me nos “labirintos” do processo técnico, pretendendo
racionalizar cada etapa. Quando o resultado do desempenho era sofrível, a
frustração surgia imediatamente.
A ideia é desprender-se de si
mesmo, exactamente o contrário da obstinação em ser eficaz, a teimosia no
empenho, aquilo que no texto é salientado como “vontade demasiado activa”. É
preciso aprender a esperar e tomar consciência que devemos ser reeducados.
“A tensão é dolorosa”, repete o aprendiz. “Isso acontece
porque não existe desprendimento do eu”, responde o mestre,
escreveu Eugen Herrigel.
Ausente surge também a preocupação
do mestre com os fracassos do aluno. Parece que o mestre devia ter outro papel,
mais intrusivo. Todavia, ressalva-se essa atitude frisando que o mestre apenas
existe para lhe indicar o caminho.
FAZER E CELEBRAR
Articulada com a filosofia, surge
a didáctica japonesa: prática, repetição, divulgação. O papel do aluno é
observar e reproduzir o que é ensinado pelo mestre. O papel do mestre é
demonstrar, postura metaforicamente associada a uma “vela acesa que acede
outra”.
Relacionado com o filosófico
e com o didáctico, surge o sagrado particularmente ligado ao cerimonial. Todas
as fases da prática integram e constituem uma cerimónia, uma celebração de
índole sacra, onde o ritual está sempre presente.
Segundo
Nobuyoshi Tamura, um dos discípulos do fundador do Aikido, Morihei Ueshiba, o espaço
em que nos movemos quando estamos a praticar Aikido deve ser considerado como
um templo - daí o carácter religioso -, uma vez que é também o local onde têm
lugar os os rituais associados à prática. Mas não só.
Cumprimentos,
postura, silêncio, comunicação, fazem parte do cerimonial da arte. Em qualquer
das práticas, tiro com arco ou Aikido, o cerimonial, além de respeitoso,
continua ser prático e didáctico, uma vez que os diversos momentos vão servindo
para sintonização/concentração para a acção criativa.
APRENDER COM O ERRO E COM A PRÁTICA
Com o alvo (do tiro com arco)
mais afastado, o processo de imperfeições e equívocos repete-se e o
protagonista lembra-se da vergonha que sofreu com os tiros falhados. A
intervenção do mestre voltou a frisar a necessidade de libertação do processo
de “vaguear entre o prazer e o desprazer”, remetendo-o para uma “descontraída
imparcialidade”.
Foi apenas quando o autor se
surpreendeu com alguns dos seus tiros, que recebeu uma discreta aprovação do
mestre. Só quando revelou ter identificado o tal “algo que disparava” –
desprendimento do eu -, o mestre lhe assegurou que, doravante, estava pronto
para… “nunca parar de praticar”.
A parte final do livro
menciona que o mestre–arqueiro era também um espadachim. A partir daí, o autor
traça um paralelismo entre as duas artes e desenvolve um pouco a da espada.
Começa por referir a
importância do aprendiz assimilar a esquiva, de impedir que reflicta sobre o
ataque, de o ensinar a desprender-se de si próprio. Como resultado, relata que
o cumprimento daquelas etapas provoca a ausência de distância entre a esquiva e
o ataque e este último surge espontaneamente.
A esquiva
e a distância são dois elementos fundamentais no Aikido. A movimentação do
corpo (e dos pés), tai (e ashi) sabaki, permitem evitar a eficácia dos ataques.
A distância (ma ai) permite assegurar espaço de manobra para esquivar ataques e
contra-atacar.
Termina abordando a
similitude da vida e da morte. Relaciona a aprendizagem com a capacidade de
abstrair os iniciados do medo da vida e do medo da morte, isto é, com a
possibilidade de “não sentirem a angústia da vida nem o temor da morte”,
salientando que a ideia da morte deixa de estar presente, assim como de
perturbar o percurso de vida.
AS FACETAS DA ARTE
A aprendizagem permite então
dissipar o mal-estar induzido pelo erro, fazendo com que o aluno o aprenda a
reconhecer, o corrija e consequentemente o evite. Aprender é um processo que
prepara o corpo para uma (re)acção automatizada e assegura uma (boa) evolução
do desempenho, independentemente do processo ter diversas fases.
Para tanto, a acção deve
apropriar-se cada vez mais da auto-suficiência, eliminar etapas de pensamento e
facilitar a rapidez da resposta. O pensar é substituído pelo ‘não-pensar’ ou
pelo livre fluir do pensamento.
Morihei
Ueshiba escreveu no seu livro A Arte da Paz: “Mantém sempre a tua mente
brilhante e clara como o vasto céu, o grande oceano e o pico mais alto, vazia
de todos os pensamentos”, acrescentando que, “a Paz começa com a fluidez das
coisas”.
Além desse livre fluir do
pensamento, o foco é na respiração tranquila, a acompanhar movimentos
compassados, para assegurar a diminuição da agitação mental. A tranquilidade,
melhor, a naturalidade da respiração harmoniza-se com a acção.
“A
respiração é o elo de ligação de toda a criação”, escreveu O-Sensei, em A Arte
da Paz, justificando que “a tua respiração é o verdadeiro elo que te liga ao
universo”.
A fluidez do pensamento e a
respiração tranquila aliam-se então para constituírem uma consciência,
automatismo, postura e/ou prontidão, necessárias/os para enfrentar uma situação
em que o desempenho tenha de ser rápido, eficiente e definitivo, o que, em
muitas artes marciais, incluindo o Aikido, se denomina “Zanshin”.
Morihei
Ueshiba defendia que “(...) as técnicas do Caminho da Paz mudam constantemente:
cada encontro é único e a resposta apropriada deverá surgir naturalmente”. Tal
como um um tiro de um arqueiro deve ser certeiro.
O que “A Arte do Arqueiro
Zen” defende é muito semelhante ao que o Aikido moderno afirma, um meio para
atingir a auto-realização, um (re)encontro consigo mesmo. O foco da
aprendizagem está na fusão de corpo, mente e espírito.
"A
Arte da Paz não tem forma - é o estudo do espírito –", escreveu Morihei
Ueshiba. “No fim, deves esquecer-te da técnica. Quanto mais progredires, menos
terás a aprender. O Grande Caminho afinal é um Não Caminho.”
Bibliografia
A Arte
Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Eugen Herrigel, Editora Pensamento, São Paulo
Aikido - Etiquette et
Transmission, Budo Editions, Noisy sur Ecole
El Arte de
la Paz, Morihei Ueshiba, traduzido do original por John Stevens, e traduzido do
inglês por Pedro J. Riego, Editorial Kairós, Barcelona
O Livro
dos Cinco Anéis, (Gorin No Sho), Miyamoto Musashi, tradução de José Yamashiro,
Cultura Editores Associados, São Paulo
Música: Busshido
https://adrianvonziegler.bandcamp.com