Guerreiros lusitanos (mil anos a.C.) e berrões (entre VI a.C. e I d.C.) |
Quando a inércia
da divulgação do património histórico acompanhava a lassidão das instituições e
a pachorrenta dinâmica social, queixávamo-nos que raramente algo mudava. Era
preciso surgir um “carola”, aparecer uma novidade terrivelmente significativa,
um acontecimento sobeja e antecipadamente planeado, para que algo mudasse.
Antigamente, dizia-se.
Antigamente, o
Museu Nacional de Arqueologia (MNA) tinha essa particularidade. Não me lembro durante
quantos anos esteve presente a exposição “Religiões da Lusitânia”. Foram muitos
anos seguramente, no mesmo local, com a mesma disposição, as mesmas legendas,
as mesmas peças. Julgo que ainda lá está, agora com outra disposição e legendas
actualizadas. Provavelmente com uma ou outra peça diferente.
Não parece fácil sair daquela cápsula temática que são as religiões da Lusitânia. Percebe-se que, durante muitos
anos no MNA, a Lusitânia e a ocupação romana estão particular e
constantemente presentes. Sabe-se que as peças arqueológicas não gostam de
andar de um lado para o outro. E que nem mesmo simpatizam com ténues mudanças
de local.
Não é fácil mexer
em epígrafes, estelas funerárias, estátuas, nem mesmo em certos bustos. E
também não é todos os dias que se descobrem vestígios arqueológicos, quanto
mais peças. Não é fácil mexer na arqueologia e a arqueologia também não se mexe com agilidade.
No aspecto da
estagnação, o MNA era parecido com o Museu Nacional de Etnologia (MNE) que também
demorou a mudar a exposição permanente, anos talvez décadas depois de mostrar
maioritariamente uma colecção de objectos africanos. Há poucos anos, mudou a
exposição permanente para, “O Museu. Muitas Coisas”, já comentado em, http://cordeirus.blogspot.pt/2013/02/o-museu-varias-coisas.html.
Não era apenas a
falta de novidade das exposições permanentes que tornavam os museus bolorentos. Era também a falta de exposições temporárias, a ausência de mudança. Raramente havia novidades
expostas, uma ou outra peça enfatizada, aconteciam poucas exposições temáticas. Nos
últimos anos, porém, algo está a mudar.
No MNA, tem havido mais
exposições temporárias – como fosse, “O Tempo Resgatado ao Mar”-, além de
iniciativas que têm envolvido outras actividades culturais relacionadas com
peças expostas ou com a respectiva temática – como fosse, uma demonstração de
kenjutsu (manejo da espada japonesa) -, ambas em http://cordeirus.blogspot.pt/2014/05/o-tempo-resgatado-ao-mar.html
LUSITÂNIA
ROMANA
A
ORIGEM DE DOIS POVOS
Para quem gosta de
siglas, é possível dizer que a Lusitânia já faz parte do DNA do MNA. Diz-se também
que a Lusitânia é uma das menos conhecidas províncias romanas. Aliás, já os lusitanos são
considerados como um povo à margem da história, dada a escassez de registos vernáculos. Os que abaixo aludimos são os que coexistiram com a ocupação
romana.
Berrão - testemunho zoomórfico proto-histórico |
Falamos por tanto da Lusitânia criada pelo imperador Augusto, com capital em Emerita Augusta, a
Mérida actual, colonizada pelos veteranos (eméritos) das legiões que
ocuparam a Península no século I a.C. A região teve diversas configurações que contemplaram sobretudo o centro e sul de Portugal e a região de Mérida, mas chegou a ter como limites na época romana o espaço que ia desde o rio Douro ao Guadiana e incluía ainda os territórios que vinhas desde Talavera de la Reina até à fronteira portuguesa.
Tritão. Não parece, mas faz parte de um conjunto escultórico inserido num lago |
Virada durante
muito tempo para o Mediterrâneo, o tal Mare Nostrum, e independentemente do
centro nevrálgico se situar em Mérida, Roma passou a dar muito interesse
estratégico à Lusitânia, sobretudo a Salacia (Alcácer do Sal), a Cetobriga
(Setúbal) e sobretudo Olisipo (Lisboa), portos de ligação ao Império mas também
essenciais na criação de um Atlanticum Nostrum.
Bustos de defuntos |
A Lusitânia
ocupava nessa altura uma grande parte de Portugal, da Estremadura e um espaço mais
pequeno da Andaluzia. Desta feita, o MNA trouxe, sobretudo de Mérida e de
Coimbra, algumas peças que salientam a importância da Lusitânia e juntou-as ao espólio
do museu para criar a exposição “Lusitânia Romana”.
Uma ara em homenagem ao deus Mitra |
São peças únicas
que tratam a Lusitânia como um todo cultural, distribuídas por diversos pólos
organizados em abordagens antropológicas, geográficas, económicas, religiosas e
artísticas. Contemplam, entre outras, a visão do outro, as cidades, a
sociedade, as formas de produção, o ambiente rural ou as manifestações
religiosas.
A
LUSITÂNIA NO FEMININO
Da exposição,
foram feitas várias propostas temáticas interessantes, algumas alvo de
exposições orais e visitas guiadas. Uma dessas propostas tinha como tema a
condição da mulher na época da ocupação romana na região lusitana.
Intitulava-se, “A Lusitânia no Feminino”.
Hoje, a mulher
ocupa cada vez mais postos de trabalho, está representada em áreas económicas e
políticas antes sem expressão, ultrapassa o número de homens no mundo
universitário e está a entrar em áreas nunca antes franqueadas ao género
feminino, caso da instituição militar, da aeronáutica civil, das forças
policiais, etc.
Placa da Lua, Mérida, séculos VI-VII |
Na Roma antiga,
porém, a participação das mulheres nas poucas áreas públicas em que podia estar
representada era diminuta, uma vez que a generalidade das raparigas recebia uma
educação básica e dedicada, sendo também que a rua era ainda um feudo
masculino. Mas a mulher está bastante representada através da escultura ou da cerâmica.
Ainda assim,
algumas mulheres chegam a assumir relevância social, influência profissional e cultural.
Sobretudo a partir da expansão do Império, a mulher adquire cada vez mais
autonomia e em alguns casos reforça o poder e a capacidade de gerir o
património.
A emancipação da
mulher vai sendo fortalecida sobretudo nos aspectos do casamento, do divórcio,
da herança e da identidade. No que concerne à identidade, já antes a mulher era
identificada pelo seu nome próprio e pelo nome de família. Após o casamento,
passou a manter ambos dando continuidade à sua identidade original.
Outra estratégia
que mantinha a coesão da família e a possibilitava a gestão dos bens familiares
era o facto da mulher, após o casamento, manter a tutela do pai podendo assim
administrar os bens da família original. Porém, apesar de a mulher nunca estar
socialmente ausente, é no contexto político que se nota mais esse afastamento.
Lívia, século I d.C. |
Ainda assim, defende-se
que o papel da mulher tenha sido reforçado – à imagem da mulher grega – devido
à ausência dos maridos e dos pais na guerra. Esse vazio pode também ter
propiciado o aumento do papel político das mulheres, sabendo-se de casos em que
figuram mulheres em campanhas de apoio a políticos.
Para além da sensibilidade e da beleza, a luxúria e os prazeres libidinosos eram outros predicados atribuídos às mulheres, afigurados amiúde quer na escultura quer na cerâmica. Na Lusitânia também surgem representações que desvendam esta ligação aos relacionamentos lascivos, nas orgias e na prostituição.
Na exposição,
estão patentes algumas peças que destacam a moda, a beleza e a posição social
das mulheres, percebendo-se esses aspectos nos detalhes dos vestidos, dos
penteados e dos adereços de beleza, por exemplo, nas pedras preciosas, nos
colares, nas pulseiras, etc.
A
MULHER MITOLÓGICA, MÁGICA E RELIGIOSA
Porém, no aspecto
simbólico, mágico-religioso, a mulher recolhe uma importância relevantes que a
exposição “Lusitânia Feminina” realça através de algumas peças que destacam o
seu papel nas artes e nas competências, na religião, na morte, nas invocações.
Mosaico das Musas, século VI, Palma, Monforte. |
O papel simbólico
das mulheres está bem patente num painel de mosaico representativo das musas a
quem eram arrolados talentos artísticos e competências científicas, que iam,
entre outros, da música à poesia, da dança à comédia, da História à Astronomia.
Sarcófago as Quatro Estações |
As mulheres
participavam também na ritualização de um conjunto de cerimoniais, como por
exemplo, quando as virgens sálicas acompanhavam as procissões guerreiras, as
esposas flâmines de Júpiter ofereciam um animal sacrificial, ou quando
participavam nas nonas caprotinas, nos matronais, na festa da Vénus
Verticórdia, de Fortuna Mulieribus, etc, etc.
Além da estatuária e
da pintura, a numismática glosou quer as deusas, quer sacerdotisas, quer
importantes mulheres de Roma. As deusas Ceres, Vitória e Fortuna, além das
acima mencionadas, a mulher de Marco Aurélio, a de Cómodo, a filha de Marco
António, bem como a sacerdotisa Vesta, todas foram representadas em moeda.
No mito fundacional,
a mãe de Rómulo e Remo – os fundadores de Roma – é a primeira vestal. Vesta, à
imagem da Héstia grega, era uma espécie de deusa do lar. A religião da casa
também está ligada à origem das vestais, responsáveis pela manutenção do fogo
doméstico relacionado com a sobrevivência da família. Na mitologia, as mulheres voltam a estar representadas abrangendo múltiplos aspectos sobretudo da vida mas também na morte. O panteão romano incluía, entre outras, Cibele, deusa da génese da Terra, Minerva deusa a inteligência e da sabedoria, Diana deusa da caça e das florestas ou Vénus deusa do amor.
Na Lusitânia, o
panteão de deusas é imenso, com Arencia, Trebaruna ou Nabia, relacionadas
respectivamente com a guerra, com o lar e as famílias, e com a natureza, ou
ainda, Atégina, deusa do Renascimento e da Lua, uma das mais veneradas na
Lusitânia no período pré-romano. No capítulo das
invocações, Atégina – que é reconhecida com outros nomes - possuía o poder de
exercer vingança e provocar a morte. Pragmática, a invocação em pedra suplica –
“deusa Ataecina Turibrigensis Prosepina, pela tua majestade, rogo, imploro que
vingues o roubo que me fizeram…”.
Na “Lusitânia
Romana” é a escultura que domina, mas a cerâmica, a armaria ou a olaria bem
representadas. É através do olhar para os objectos, para as peças expostas, que
conseguimos criar, mais que não seja, uma ideia do que era a Lusitânia. Muito do que foi continua exposto do Museu Nacional de Arqueologia.