quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Lusitânia Romana

Guerreiros lusitanos (mil anos a.C.) e berrões (entre VI a.C. e I d.C.)
Quando a inércia da divulgação do património histórico acompanhava a lassidão das instituições e a pachorrenta dinâmica social, queixávamo-nos que raramente algo mudava. Era preciso surgir um “carola”, aparecer uma novidade terrivelmente significativa, um acontecimento sobeja e antecipadamente planeado, para que algo mudasse. Antigamente, dizia-se.
Antigamente, o Museu Nacional de Arqueologia (MNA) tinha essa particularidade. Não me lembro durante quantos anos esteve presente a exposição “Religiões da Lusitânia”. Foram muitos anos seguramente, no mesmo local, com a mesma disposição, as mesmas legendas, as mesmas peças. Julgo que ainda lá está, agora com outra disposição e legendas actualizadas. Provavelmente com uma ou outra peça diferente.
Não parece fácil sair daquela cápsula temática que são as religiões da Lusitânia. Percebe-se que, durante muitos anos no MNA, a Lusitânia e a ocupação romana estão particular e constantemente presentes. Sabe-se que as peças arqueológicas não gostam de andar de um lado para o outro. E que nem mesmo simpatizam com ténues mudanças de local.
Não é fácil mexer em epígrafes, estelas funerárias, estátuas, nem mesmo em certos bustos. E também não é todos os dias que se descobrem vestígios arqueológicos, quanto mais peças. Não é fácil mexer na arqueologia e a arqueologia também não se mexe com agilidade.
No aspecto da estagnação, o MNA era parecido com o Museu Nacional de Etnologia (MNE) que também demorou a mudar a exposição permanente, anos talvez décadas depois de mostrar maioritariamente uma colecção de objectos africanos. Há poucos anos, mudou a exposição permanente para, “O Museu. Muitas Coisas”, já comentado em, http://cordeirus.blogspot.pt/2013/02/o-museu-varias-coisas.html.
Não era apenas a falta de novidade das exposições permanentes que tornavam os museus bolorentos. Era também a falta de exposições temporárias, a ausência de mudança. Raramente havia novidades expostas, uma ou outra peça enfatizada, aconteciam poucas exposições temáticas. Nos últimos anos, porém, algo está a mudar.
No MNA, tem havido mais exposições temporárias – como fosse, “O Tempo Resgatado ao Mar”-, além de iniciativas que têm envolvido outras actividades culturais relacionadas com peças expostas ou com a respectiva temática – como fosse, uma demonstração de kenjutsu (manejo da espada japonesa) -, ambas em http://cordeirus.blogspot.pt/2014/05/o-tempo-resgatado-ao-mar.html

LUSITÂNIA ROMANA
A ORIGEM DE DOIS POVOS


Para quem gosta de siglas, é possível dizer que a Lusitânia já faz parte do DNA do MNA. Diz-se também que a Lusitânia é uma das menos conhecidas províncias romanas. Aliás, já os lusitanos são considerados como um povo à margem da história, dada a escassez de registos vernáculos. Os que abaixo aludimos são os que coexistiram com a ocupação romana.
Berrão - testemunho zoomórfico proto-histórico
Falamos por tanto da Lusitânia criada pelo imperador Augusto, com capital em Emerita Augusta, a Mérida actual, colonizada pelos veteranos (eméritos) das legiões que ocuparam a Península no século I a.C. A região teve diversas configurações que contemplaram sobretudo o centro e sul de Portugal e a região de Mérida, mas chegou a ter como limites na época romana o espaço que ia desde o rio Douro ao Guadiana e incluía ainda os territórios que vinhas desde Talavera de la Reina até à fronteira portuguesa.
Tritão. Não parece, mas faz parte de um
conjunto escultórico inserido num lago
Virada durante muito tempo para o Mediterrâneo, o tal Mare Nostrum, e independentemente do centro nevrálgico se situar em Mérida, Roma passou a dar muito interesse estratégico à Lusitânia, sobretudo a Salacia (Alcácer do Sal), a Cetobriga (Setúbal) e sobretudo Olisipo (Lisboa), portos de ligação ao Império mas também essenciais na criação de um Atlanticum Nostrum.
Bustos de defuntos
A Lusitânia ocupava nessa altura uma grande parte de Portugal, da Estremadura e um espaço mais pequeno da Andaluzia. Desta feita, o MNA trouxe, sobretudo de Mérida e de Coimbra, algumas peças que salientam a importância da Lusitânia e juntou-as ao espólio do museu para criar a exposição “Lusitânia Romana”.
Uma ara em homenagem ao deus Mitra
São peças únicas que tratam a Lusitânia como um todo cultural, distribuídas por diversos pólos organizados em abordagens antropológicas, geográficas, económicas, religiosas e artísticas. Contemplam, entre outras, a visão do outro, as cidades, a sociedade, as formas de produção, o ambiente rural ou as manifestações religiosas.

A LUSITÂNIA NO FEMININO


Da exposição, foram feitas várias propostas temáticas interessantes, algumas alvo de exposições orais e visitas guiadas. Uma dessas propostas tinha como tema a condição da mulher na época da ocupação romana na região lusitana. Intitulava-se, “A Lusitânia no Feminino”.
Hoje, a mulher ocupa cada vez mais postos de trabalho, está representada em áreas económicas e políticas antes sem expressão, ultrapassa o número de homens no mundo universitário e está a entrar em áreas nunca antes franqueadas ao género feminino, caso da instituição militar, da aeronáutica civil, das forças policiais, etc.
Placa da Lua, Mérida, séculos VI-VII
Na Roma antiga, porém, a participação das mulheres nas poucas áreas públicas em que podia estar representada era diminuta, uma vez que a generalidade das raparigas recebia uma educação básica e dedicada, sendo também que a rua era ainda um feudo masculino. Mas a mulher está bastante representada através da escultura ou da cerâmica
Ainda assim, algumas mulheres chegam a assumir relevância social, influência profissional e cultural. Sobretudo a partir da expansão do Império, a mulher adquire cada vez mais autonomia e em alguns casos reforça o poder e a capacidade de gerir o património.
A emancipação da mulher vai sendo fortalecida sobretudo nos aspectos do casamento, do divórcio, da herança e da identidade. No que concerne à identidade, já antes a mulher era identificada pelo seu nome próprio e pelo nome de família. Após o casamento, passou a manter ambos dando continuidade à sua identidade original.
Outra estratégia que mantinha a coesão da família e a possibilitava a gestão dos bens familiares era o facto da mulher, após o casamento, manter a tutela do pai podendo assim administrar os bens da família original. Porém, apesar de a mulher nunca estar socialmente ausente, é no contexto político que se nota mais esse afastamento.
Lívia, século I d.C.
Ainda assim, defende-se que o papel da mulher tenha sido reforçado – à imagem da mulher grega – devido à ausência dos maridos e dos pais na guerra. Esse vazio pode também ter propiciado o aumento do papel político das mulheres, sabendo-se de casos em que figuram mulheres em campanhas de apoio a políticos.
Para além da sensibilidade e da beleza, a luxúria e os prazeres libidinosos eram outros predicados atribuídos às mulheres, afigurados amiúde quer na escultura quer na cerâmica. Na Lusitânia também surgem representações que desvendam esta ligação aos relacionamentos lascivos, nas orgias e na prostituição.
Na exposição, estão patentes algumas peças que destacam a moda, a beleza e a posição social das mulheres, percebendo-se esses aspectos nos detalhes dos vestidos, dos penteados e dos adereços de beleza, por exemplo, nas pedras preciosas, nos colares, nas pulseiras, etc.

A MULHER MITOLÓGICA, MÁGICA E RELIGIOSA

Porém, no aspecto simbólico, mágico-religioso, a mulher recolhe uma importância relevantes que a exposição “Lusitânia Feminina” realça através de algumas peças que destacam o seu papel nas artes e nas competências, na religião, na morte, nas invocações.
Mosaico das Musas, século VI, Palma, Monforte.
O papel simbólico das mulheres está bem patente num painel de mosaico representativo das musas a quem eram arrolados talentos artísticos e competências científicas, que iam, entre outros, da música à poesia, da dança à comédia, da História à Astronomia.
Sarcófago as Quatro Estações
As mulheres participavam também na ritualização de um conjunto de cerimoniais, como por exemplo, quando as virgens sálicas acompanhavam as procissões guerreiras, as esposas flâmines de Júpiter ofereciam um animal sacrificial, ou quando participavam nas nonas caprotinas, nos matronais, na festa da Vénus Verticórdia, de Fortuna Mulieribus, etc, etc.
Além da estatuária e da pintura, a numismática glosou quer as deusas, quer sacerdotisas, quer importantes mulheres de Roma. As deusas Ceres, Vitória e Fortuna, além das acima mencionadas, a mulher de Marco Aurélio, a de Cómodo, a filha de Marco António, bem como a sacerdotisa Vesta, todas foram representadas em moeda.
No mito fundacional, a mãe de Rómulo e Remo – os fundadores de Roma – é a primeira vestal. Vesta, à imagem da Héstia grega, era uma espécie de deusa do lar. A religião da casa também está ligada à origem das vestais, responsáveis pela manutenção do fogo doméstico relacionado com a sobrevivência da família. Na mitologia, as mulheres voltam a estar representadas abrangendo múltiplos aspectos sobretudo da vida mas também na morte. O panteão romano incluía, entre outras, Cibele, deusa da génese da Terra, Minerva deusa a inteligência e da sabedoria, Diana deusa da caça e das florestas ou Vénus deusa do amor. 
Na Lusitânia, o panteão de deusas é imenso, com Arencia, Trebaruna ou Nabia, relacionadas respectivamente com a guerra, com o lar e as famílias, e com a natureza, ou ainda, Atégina, deusa do Renascimento e da Lua, uma das mais veneradas na Lusitânia no período pré-romano. No capítulo das invocações, Atégina – que é reconhecida com outros nomes - possuía o poder de exercer vingança e provocar a morte. Pragmática, a invocação em pedra suplica – “deusa Ataecina Turibrigensis Prosepina, pela tua majestade, rogo, imploro que vingues o roubo que me fizeram…”.
Invocação a Atégina
Na “Lusitânia Romana” é a escultura que domina, mas a cerâmica, a armaria ou a olaria bem representadas. É através do olhar para os objectos, para as peças expostas, que conseguimos criar, mais que não seja, uma ideia do que era a Lusitânia. Muito do que foi continua exposto do Museu Nacional de Arqueologia.