quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Jardins da Gulbenkian



Os jardins da Gulbenkian são uma ilha, porém aberta, protegida mas facilmente franqueável. Uma ilha ecológica, uma ilha de diálogos, de interpenetração, de permanente renovação. E tem tantos anos, que parece incrível como a inovação, a flexibilidade das configurações, a comunicação e o ambiente celebrados em meados dos anos 60 parecem tão actuais.
Embora a ideia da Gulbenkian seja dos últimos anos da década de 50, as obras do jardim decorreram de 63 até ao final da década de 60. A ideia do(s) edifício(s) surgiu dos arquitectos, Ruy Athouguia, Pedro Cid e Alberto Pessoa. O(s) jardin(s) foram projectados pelos arquitectos paisagistas, António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles.
A Gulbenkian, que parece ser o que se vê – e o que se vê é admirável – é mais do que se vê, é mais do que o que está à vista. É também o que não se vê. Parte do está oculto, parte do que está encoberto, do que está em outra perspectiva, do que lá está para quem procura, do que lá existe para ser utilizado ou simplesmente estar à mercê do tempo.
A natureza e a cultura foram e tem sido importantes protagonistas na vida do jardim. O relevo – modificado para criação de um lago e do anfiteatro -, as espécies vegetais implantadas – componentes arbóreas e florais -, os espaços aquíferos - o lago e os riachos, por exemplo -, foram criados também com a ideia de intervenção posterior, de uma renovação que os reinventasse.
É desse diálogo continuado entre a criatividade dos projectistas e os elementos naturais que fazem o jardim, que o espaço se tem reanimado, aliando o crescimento da vegetação, bem como a introdução de novas espécies, a renovadas propostas de configuração e inserção de espelhos de água ou novos percursos pedestres.
Esses renovamentos são mais ou menos perceptíveis, como seja uma das últimas intervenções datada do início do século XXI, projectada pelo arquitecto paisagista Ribeiro Telles. O que talvez não seja/tenha sido, tão notório, é o que, sendo inicial, dificilmente se detecta, poucos sabem que existe.
Como seja, um dos mais espaçosos parques de estacionamento de Lisboa. Ou as instalações dos serviços médicos e sociais da Gulbenkian. Onde estão, que se não veem? E o edifício do museu, que nem sequer se vê do exterior! E as raízes das árvores, espetam-se no telhado do parque de estacionamento? Há muito que se não vê e muito que se desconhece.
O que se percebe imediatamente é a estreita relação entre os jardins e o edifício, entre o exterior e o interior, entre o dentro e o fora, entre o exterior e os seus próprios reflexos. E, se não bastasse os vidros com efeito de espelho, também os objectos decorativos andam num vai e vem entre o jardim e os átrios e vice-versa.   
Esferas e cubos ondulam de dentro para fora, enviando-nos os sentidos de um lado para outro. Provavelmente para não nos limitarmos à “ilha”, para nos estendermos para fora, para nos imiscuirmos no interior do edifício, para dialogarmos constantemente com a natureza e com a cultura.
Estando onde estivermos, só muito perto dos edifícios os vemos e percebemos a sua dimensão. Se nos afastarmos, parte ou a maior parte deles ficam ocultos pela vegetação ou pela inserção em plano diferente. Desde o monumento a Calouste Gulbenkian, o edifício de 125 metros de comprimento parece ter pouco mais de uma trintena e dos quatro pisos acima do chão apenas se notam dois.
Grande parte dos edifícios da Gulbenkian está oculta. O parque de estacionamento – onde é possível estacionar camiões TIR – é um exemplo. Outro, é o dos gabinetes médicos e área de acção social, que também se encontram abaixo do jardim. Estes dois exemplos são desafios de pesquisa, quase de investigação.
 É que, se há, pelo menos, um piso abaixo do jardim, como é que é possível existirem árvores, ou melhor, como é que as raízes das árvores não furam o tecto desse piso? A solução arquitectónica não se vê. Mas está lá. E é simples. Uma espécie de labirinto, uma rede de betão – com cerca de 80 centímetros de altura – que vai conduzindo as raízes entre o tecto do parque de estacionamento e a base do jardim. Engenhoso, não é?
Outro conceito que está associado ao jardim é o da extensão, do aumento do espaço através de superfícies com efeito de espelho, com efeito de ampliação da “ilha”. Para além dos vidros com uma tonalidade que lhes permite reflectir o exterior, para além também do lago maior e do pequeno lago, há agora mais espelhos de água.
Espelhos de água duplicam o ambiente e servem de fonte aos pássaros
Entretanto, o jardim ora se “abre”, ora se “fecha” sobre si, mostrando clareiras ou escondendo betões. Para tal, conta também com a vegetação, com uma panóplia de espécies arbóreas que vai modificando a paisagem à medida que se avança no jardim, em contínuo diálogo com a água e com os edifícios.
Em redor, a Gulbenkian tem hoje dois eixos viários que lhe violam a tranquilidade. Mas a “ilha” mantém uma cintura de árvores e arbustos que a abrigam do exterior, defesas que não são sendo radicais ocultam e abrigam o ambiente interior.
A Avenida de Berna está ali a meia dúzia de metros...
Há espaços onde sabemos da presença do betão, ali muito próximo que quase podemos tocar-lhe. Mas não vemos, ou notamos por instantes. É possível estar pertíssimo do lado poente do museu, cuja envergadura deve andar pela vintena de metros de altura e mal o percebemos.
É sobretudo a vegetação que tem esse papel dialogante entre os espaços, essa tarefa de proteger e tranquilizar o olhar sobre o betão. Mesmo quando este está muito exposto, a flora anda pelas janelas, pelos alpendres, pelas varandas, estendendo-se sobre os cinzentos dos edifícios.
A vegetação parece fazer parte do edifício
Outros pontos referenciais no jardim passam pelos recantos, que possibilitam mais privacidade em diversos íntimos do jardim. Muitas vezes, são locais sem outra saída que não seja o acesso único. A folhagem e o desnível do terreno fazem o resto.

A configuração e ocupação da superfície do jardim junto ao chão contemplam várias opções. As mais notórias, para além da relva, dos espelhos de água, dos passeios em betão, das esculturas e dos lagos, são as plantas rasas, muitas e variadas que chegam a preencher o chão de um minúsculo bosque ou a rodear um pequeno lago.
Cores, texturas, formas, reflexos e perfumes árvores, dos arbustos e das flores misturam-se, provocam e encantam. A água chama os animais, sobretudo os pássaros e as aves aquáticas. As pedras circunscrevem e adornam. As esculturas decoram, ilustram e celebram. Os passeios conduzem. Os lagos refrescam e embalam. 
Pode perguntar-se, como a propósito de tudo, que inspiração, fantasia ou crença impele os artistas para a criação, para a invenção de tais jardins. É pergunta obrigatória. A resposta não é fácil, mas pode ser procurada num poema, no poema nacional, na saga de Portugal e dos Portugueses.
No início aludi a uma ilha, à ilha Gulbenkian, uma metáfora útil e, agora, também elucidativa. Camões, há cinco séculos, já havia descoberto uma ilha tão especial que a imortalizou em poesia

E pera isso queria que, feridas
As filhas de Nereu no ponto fundo,
D'amor dos Lusitanos incendidas
Que vêm de descobrir o novo mundo,
Todas nüa ilha juntas e subidas,
(Ilha que nas entranhas do profundo Oceano terei aparelhada,
De dões de Flora e Zéfiro adornada);
Lusíadas, Canto IX

A epopeia dos Portugueses mar fora tem sido muito inspiradora. E sustentável. Foi dessa aventura que trouxemos o mundo para cá, que elegemos a diversidade como uma das nossas musas. Percebemos, gostámos e transferimos a variedade ecológica dos outros para nós.
A ilha que Camões glosa é musa da diversidade, da felicidade e do prazer. Foi nesse sentido que os paisagistas orientaram o traço que lhes desenhou os Jardins da Gulbenkian. Estes são uma ode aos Descobrimentos, uma Ilha de Amores que continua a encantar, a cevar a fantasia dos Portugueses.
Percorremos metade dos jardins, digamos a área que envolve o museu e o edifício-sede. Chegámos ao grande lago já ao fim do dia, quando o sol trepava Monsanto a caminho de Sintra. As sombras vão dominar o espaço, os verdes tornar-se mais pálidos, porém os os espelhos de água vão pratear os reflexos e os pássaros anunciar a noite. Hoje foi assim, 


link vídeo: https://vimeo.com/195815308