quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Europa 1984, Pela Costa do Sol Espanhola


Já lá trinta e dois anos. Nos idos de 84, as férias seriam dedicadas ao sul de Espanha, mais propriamente à Costa del Sol espanhola. No regresso, passaremos rapidamente pela Costa da Luz. Voltaremos a acampar mas os critérios de escolha são agora mais exigentes face aos anos anteriores.
Desta vez, queremos estar sossegados e não ouvir motos a entrar em parques de campismo às duas da manhã com escapes estridentes. Por isso, escolhemos acampar fora dos núcleos turísticos com maior procura mas em parques onde o preço já era um factor de diferenciação.
Mesmo assim, o orçamento era controlado "à peseta". Sabíamos no final de cada dia quanto havíamos gasto. Além de orientarmos o orçamento, ficávamos com o registo dos preços de alguns produtos hoje, sabemos que se almoçava por 2 euros, e que o bilhete de barco para Ceuta não chegava a 10 euros - mas também, de modo a podermos compará-los mais tarde com os praticados em Portugal.

Este ano, em que vamos passear mais perto de casa, o orçamento está mais orientado para algumas despesas extra e um passeio especial. E também para a hotelaria. Estaria desnorteado para outros consumos, sobretudo algumas compras de oportunidade, os derradeiros "já agora".
Quando não acamparmos, a opção foi para pernoitar num hostal, como será o caso de Córdoba. Em Marbella, escolhemos ficar duas noites num apartamento com dois quartos e mais uma ou duas num parque de campismo. Acamparemos também a seguir a Málaga e no regresso em Portugal.
Estamos no Verão, está calor, a dia nasce cedo e o sol continua ser motivador e guia da viagem. O percurso, esse, com a auto-estrada portuguesa a terminar em Setúbal, vai para mais de quinhentos quilómetros, caso queiramos cumprir o planeado de ficar em Córdoba no primeiro dia de viagem.
É para lá que vamos. Para conhecer a cidade, bem como para experimentar o calor nas estradas da Andaluzia. Não levamos nada marcado. Estimámos que Córdoba enquanto cidade de interior não deva ter muitos veraneantes. Para nós, a urbe é uma estreia, tal como as estradas que para lá vão desde Zafra.
A velha Honda CB 750 ainda estava “p’rás curvas”. Sabemos que vai estar bastante calor,  e muita gente na Costa do Sol, que os preços sobem no Verão, que o Mediterrâneo não é sítio para dar grandes mergulhos, que a noite tem muito para onde ir. Sabíamos mais, porque já lá havíamos estado por duas vezes. 
Levávamos connosco o Manuel e a Cila. Eles iam numa CB 750 F1, uma versão melhorada da CB 750F, com idêntica autonomia, mais recente e aperfeiçoada, como fossem as suspensões, os travões, o banco, a potência. Também dispunha de malas Krauser, iguais às nossas. Até o suporte das malas era igual. Não íamos sozinhos…

…PARA CÓRDOBA COM CALOR Q.B.



Estávamos a 15 de Agosto. Saímos já o sol iluminava o dia. Os prédios da primeira fase de Massamá cresciam lentamente ainda envoltos em campos de trigo que estavam a prazo. Ainda não havia IC19 ou A5. Íamos pela estrada de Sintra, apanhávamos os “Cabos D’Ávila” e entrávamos para a Duarte Pacheco. Só depois desviávamos para a “ponte”. Mal entrávamos no tabuleiro estávamos em férias.
Fizemos uma primeira paragem em Montemor-o-Novo, bebemos café a e relembrámos o trajecto através do mapa. Naquela altura, o cabedal ainda dominava. Dizíamos que o calor demorava a entrar e, uma vez lá dentro, era muito difícil sair. Todavia, a precaução ultrapassava o desconforto.
Montemor-o-Novo
Parámos logo a seguir à fronteira para efectuar o seguro da praxe, e lá ficaram mais 940 pesetas, mesmo considerando que no papelito constava a vila onde devia estar a rua, e o valor cobrado não ter sido igual ao valor registado. Tinha validade de 15 dias, tantos quanto os que esperávamos passar em Espanha.
Abastecemos logo após e ainda fizemos outra paragem para nos forçar a acreditar na realidade: antes de almoço, o calor já se instalara de tal ordem, que as (raras) sombras e o streap tease não tardaram em ser adoptados como tentativa de evasão daquele tormento.
Exceptuando a paragem para almoço, ainda fomos obrigados a verificar o que se passava com o suporte das malas da F1. Confirmamos que estava partido, pelo que tivemos de resolver o problema com uma pequena barra de ferro e recorrer à famosa fita isoladora. 
Trabalho extraordinário no suporte das Krauser
Levámos a moto para a sombra das casas baixas no início de uma povoação, desmontámos as malas, fixámos o suporte, voltámos a montar as malas e lá foi mais meia hora de serviço. Fizémo-lo a caminho de...

…CÓRDOBA QUE FERVILHA



Chegámos à cidade ao fim da tarde, a tempo de procurar lugar para pernoita. Apesar de levarmos tendas e sacos-cama, seria demasiado incómodo irmos para um parque de campismo, sobretudo porque Córdoba escaldava. Optámos por ficar num hostal, próximo do centro histórico e do rio.
Quarto com vista para o estacionamento
O que escolhemos tinha várias particularidades curiosas: um pátio muito simpático, onde estava sempre uma bilha com água fresca; dois quartos com ligação, mas para aceder ao segundo era preciso entrar e passar pelo primeiro; um terreno de estacionamento quase privativo para as motos. Por isso tudo, e para duas noites, deixámos lá mil e duzentas pesetas por casal.

Sabíamos que visitar Córdoba nesta altura era uma tarefa árdua de calor. Mas não sabíamos que seria neste ano de 1984 que o centro histórico da cidade seria considerado património da Humanidade pela Unesco. E era mesmo o centro histórico que procurávamos como ponto de visita obrigatória.
Jardins do Alcazar
Por isso, à noite, avançámos ainda sem qualquer orientação que não fosse a sinalização turística. Andámos à volta da mesquita, fomos à ponte romana, mas só no dia seguinte percebemos a estética e a respectiva dimensão. Nesta noite, ficamos mais surpreendidos pela Porta do Poente.
Trata-se de uma construção do século XVI que fazia parte das muralhas que rodeavam a cidade e foi edificada para homenagear o rei Filipe II que visitou a cidade naquela altura. A porta estava bem iluminada, mas os holofotes não facilitavam as fotografias.
Passámos ainda próximo da mesquita, continuámos no centro histórico através das ruas estreitas e fomos ficando com a ideia de que toda a acidade estava confinada aquelas paredes brancas, aquelas vielas, à luz amarela que tudo inundava. Mas também existia uma…

…ZONA (MAIS) RECENTE


Acordámos cedo com a ajuda de uma luz imensa que entrava pelo intervalo dos típicos estores de madeira espanhóis. Uma das primeiras surpresas com que nos deparámos no dia seguinte, ao pequeno-almoço, foi a mudança quase radical de ambiente, entre a zona onde estávamos e meia dúzia de ruas para norte.
Agora, apareciam avenidas, lojas, centros comerciais, os Preciados do costume, as esplanadas, muita gente na rua, aquela barulheira tão típica do estar espanhol. Jugámos que havíamos deixado a Córdoba que tínhamos imaginado, visigótica, romana, árabe, católica. E nós, que vínhamos fascinados para visitar a…

…MESQUITA

Reorientámos a nossa bússola para o centro histórico e voltámos à mesquita. Compramos duzentas pesetas de bilhetes e fomos entrando. Da claridade agreste que nos cercava na rua, passámos ao crepúsculo do interior do templo. Voltámos a acreditar que estávamos em Córdoba.
Tecto da mesquita
De um lado, envolvia-nos agora uma atmosfera bicolor proveniente das múltiplas arcadas e colunas que sustentam o tecto. De outro, éramos sitiados pelos dourados e verdes-água das cúpulas, de outro ainda rodeados pelos mármores rosa e azul para, logo após estarmos perante a rudeza da pedra e do tijolo.
Mais à frente, percebemos que, dentro do mesmo espaço, coexistem diferentes estilos arquitectónicos e religiosos. Da época islâmica é o período do califado Omíada mais representado, da época cristã estão lá o visigótico (pouco, ainda antes do islâmico), o gótico, o renascentista e o barroco.
Torre da catedral de Córdoba
 no complexo da mesquita
Com efeito, a primeira edificação religiosa no local era uma basílica visigótica que chegou a ser partilhada após a conquista árabe da península. Depois, a mesquita foi construída sobre as ruínas daquela. A partir de meados de 900, logo a partir do primeiro califado al-Andaluz, a mesquita sofre intervenções de Abd al Rahman, Almançor e, mais tarde, de Al Haken.
Da penumbra interior, passámos à claridade extrema do exterior. Outro local alterado por diversas vezes é o Pátio de Los Naranjos, antes com minarete e galerias. O primeiro foi destruído ainda pelos árabes e as galerias foram alteradas para claustros durante o século XVI.
Pátio de Los Naranjos, visto da torre da catedral
Mais, ninguém diria que, dentro das paredes da mesquita pudesse existir um pátio com mais de cem metros de comprimento. Sob o pátio há uma cisterna que fornece água para a zona de abluções. Ainda é possível reconhecer uma coluna de origem visigótica, decoração de origem moçárabe, duas fontes e duas portas com arcos de ferradura. Também ninguém diria que havia uma…

…CATEDRAL NA MESQUITA



Antes de sairmos para o pátio e subirmos à torre da catedral, descobrimos a catedral. É estranho, não é? Uma catedral dentro da mesquita… mas, nem tanto. Os espanhóis não foram tão radicais como os portugueses na questão da reconquista. Enquanto os nossos antepassados pouco de árabe deixaram de pé, os espanhóis conseguiram preservar muito daquele legado.
Foi já no século XVI que a catedral começou ser erigida no interior da mesquita. O que admira desde logo é a mudança na arquitectura: a planta de cruz latina, os arcos góticos e barrocas e ainda a cúpula renascentista, bem como o cadeiral de concílio quase negro, contratam com os arcos de ferradura e as corres quentes da arquitectura islâmica da mesquita.
Estou em crer que nesta data o Guia Breve de la Mezquita Catedral de Córdoba ainda não registava a nomeação para Património da Humanidade, que incluía não apenas a Mesquita/Catedral, mas também abrangia a Sinagoga, a Ponte Romana, o bairro da Judiaria e o…

… ALCAZAR DOS REIS CRISTÃOS

Saímos da mesquita e percorremos a marginal do rio durante uma dezena de minutos. O Alcázar dos Reis Cristãos não fica longe do Guadalquivir, o rio que banha Córdoba. Continuamos no medieval, agora por apenas cinquenta pesetas. Na década de setenta do século XV os árabes ainda resistiam no reino de Granada. Foi nesta altura que os réis católicos, Isabel e Fernando, decidiram iniciar uma campanha militar contra o que seria o último reino muçulmano da Península Ibérica.
O Alcázar tornou-se então no centro nevrálgico da conquista de Granada. 
Porém, após a capitulação árabe, o que era um palácio-fortaleza que ainda encerrava vestígios de arquitectura romana, visigoda e árabe, passou a acolher o Santo Tribunal da Inquisição.
O que mais surpreende hoje é a beleza do desenho e da decoração dos jardins, os pátios e ainda as cúpulas góticas em pedra. Depois, são os banhos árabes, um salão coberto de mosaicos. Quando voltamos aos pátios, o de estilo mudéjar é o que mais admirado.
Deixámos o templo romano para outra oportunidade e passeámos durante largo tempo nas margens do rio. À noite, jantámos na Mesón D. Manuel, muito próxima do hostal, um tablao flamenco a cujo espectáculo assistíamos pela primeira vez. Era a nossa última noite em Córdoba. No dia seguinte, seguiríamos…

…PARA SUL


  
O calor mantinha-se embora conforme fossemos andando a caminho do mar a temperatura fosse baixando. Como não partimos cedo, a meio da manhã o calor já se tinha instalado nos campos dourados da Andaluzia, que mostravam povoados brancos alcantilados em pequenos morros…
…ou desvendavam velhos castelos em contraluz, rodeados de searas pintadas em largos pedaços como se fossem mantas enormes, tapetes colossais coloridos com as cores de Verão, para raramente se descortinarem algumas árvores a ladear a estrada ou a pontear um outeiro.
Parámos por diversas vezes para tentar dispersar o calor, quer em cimento, quer pleno campo à sombra das árvores, quer em postos de abastecimento, quer nas pequenas localidades por onde íamos passando. O ambiente, porém, era árido e a rara vegetação que cobria a planície e as poucas colinas deixava ver o solo pedregoso.
Foi quase um dia inteiro para chegar ao mar. Neste dia, andámos devagar. Não recordo qual foi exactamente o percurso mas, calculando-o através dos slides, a opção de parar na zona costeira aconteceu apenas no regresso de…

…ADRA

Havíamos combinado acampar nesta noite e na seguinte. Escolhemos o parque de campismo, “Las Gaviotas”, situado perto de Adra, numa colina sobre o mar, com uma passagem subterrânea sob a estrada marginal, que dava acesso directo à praia.
Tinha uma subida a quase 45º até à recepção, com alguma gravilha que continuava para o interior do parque, não possuía grandes instalações sanitárias, nem um restaurante de jeito, tinha uma hora de entrada de veículos muito conservadora. Se não fosse a proximidade da praia... 
Montámos as tendas à sombra, dispusemos as cadeiras de praia como se estivéssemos numa residencial, revimos o “plano de actividades”, demos dois dedos de conversa, fomos espreitar a praia e partimos para Adra. Jantámos com alguma esperança de que o dia de praia almejado se realizasse com sucesso…
Praia do parque de campismo "Las Gaviotas"
….o que se veio a verificar, por um lado, com a água excelentemente tépida, mas também com as toalhas colocadas em cima de um tapete misto de pedras e areia acinzentada, desconfortável e feiosa. Valeu…

…O DIA SEGUINTE


Este sim, dedicado a passear, à beira mar, de moto. O tempo e o cenário justificavam que andássemos devagar. Havia muito que ver, muito por onde parar e, como habitualmente, muito trânsito. Motril foi mais difícil de ultrapassar. Percebia-se que estávamos em pleno Verão.
Havia sol, muito sol. Salobreña apareceu no horizonte bem iluminada, numa colina alva junto ao Mediterrâneo. Os acessos estavam superlotados. Parecia que toda a gente ia visitar alguém na localidade. Continuámos, agora mais longe da costa tentando evitar as praias.
Salobreña
Entretanto, a estrada ora ia junto ao mar, ora subia as colinas. Nesta altura, não nos apercebemos da quantidade de estufas que trepavam os montes e que hoje fazem parte da paisagem da região . Talvez não estivéssemos focados nesse cenário, mas não me lembro daquele panorama de plástico que hoje domina as colinas da zona.
Aliás, era mais o recorte da costa e as pequenas aldeias brancas do percurso que já nos tinham motivado em anos anteriores que, agora, nos voltavam a despertar os sentidos. Uma delas era…

…NERJA



Havíamos percorrido esta estrada em 80 e em 81. No último ano, tínhamos deixado um companheiro de viagem, alemão com uma Z650, em Nerja. Disse-nos que os compatriotas apreciavam a localidade. Fomos até lá, o que se revelou uma excelente surpresa.
Parámos as motos praticamente em pleno Balcón de Europa, um promontório panorâmico antecedido por um jardim com palmeiras. Dessa “varanda”, o panorama era magnífico, quer para a povoação quer sobre as falésias e as pequenas praias das quais não me lembro terem a água tão límpida como há sensivelmente quatro anos quando visitámos Nerja de novo.
No Balcón de Europa
O centro de Nerja é muito simpático, com ruas estreitas e casas baixas, muitas lojas com produtos variados e peças de decoração coloridas, tão típico dos lugares do sul. Também há hotéis, restaurantes e esplanadas muito próximo do promontório. Os preços, esses, sobretudo os das ementas, e mesmo com restaurantes quase de porta em porta, revelavam-se acima da média.
Saímos para a “nacional”, almoçámos algures e continuámos a divisar o Mediterrâneo, ora por cima dos telhados ora quase a tocar na água. Perto de Málaga o trânsito aumentou praticamente no sítio onde em 81 havia ficado com o carter quase seco. Chegámos cedo, e só já conhecemos…

…MARBELHA DE NOITE

Tínhamos reservado (e pago) um apartamento – Las Palmeras - com dois quartos, uma sala e uma pequena varanda ainda com vista de mar na parte alta da vila. O apartamento permita-nos estar a cerca de um quilómetro das praias de Marbelha e mais perto ainda da zona histórica da urbe.
Tínhamos seis dias para conhecer melhor a região. E ainda para dar um pulo a Ceuta. Era esse o extra da viagem que não sabíamos ainda se seria concretizado. Começámos perto a explorar desde a antiga de Marbelha até à zona da pequena marina que ficava praticamente a lado das praias centrais da cidade.
Panorama desde o apartamento em Marbelha
Andámos nas ruas estreitas da zona histórica, espiolhando as inúmeras lojas (abertas até tarde), que preenchem o rés-do-chão das casas de poucos andares que vão da rua principal até ao castelo. E ainda bebemos um copo na Plaza de los Naranjos, uma praça relativamente pequena na zona histórica, plena de esplanadas e de laranjeiras.
Lojas abertas à noite na zona histórica
Depois de jantar, fomos descendo até à marina. Naquela altura, havia música nos bares da marina, ou melhor, a partir da meia-noite os sítios transformavam-se como a abóbora da Gata Borralheira. Apareciam holofotes e bolas de espelhos a iluminar o ritmo 'disco'. No dia seguinte, partíamos para desvendar a…

…COSTA DO SOL


Fizemo-lo devagar. Começamos pela vizinhança, passando pelas urbanizações de férias contíguas à água, a caminho de Torremolinos, sondando a hipótese de lá voltarmos numa próxima oportunidade. Não resultou. Voltámos a Marbella há poucos anos, mas não ficámos na "velha" Torremolinos.
Por tal, continuámos à vista do mediterrâneo, serenamente pela marginal que leva a Fuengirola. A dado passo, vimos uma muralha no cimo de uma colina. Levámos para lá a moto e estacionámos com uma panorâmica ímpar. Devia ter tirado um slide do local. Era como estar na proa de um navio a abraçar o mar. O filme chegou anos depois…
Na altura, nem sequer sabíamos onde estávamos. Aliás, a muralha era uma ruína não assinalada e o lugar estava deserto. Tratava-se então do castelo de Sohail, construído no século X, pelo califa de Córdoba, sobre o que terá sido a cidade romana de Suei ou Suelitânia.
Muralha do castelo de Sohail, hoje reconstruído
Não havia dúvida de que há mais de dez séculos, fenícios, romanos, cartaginenses e muçulmanos sabiam escolher lugares de sonho para erguer fortalezas ou simples lugares de vigia. Dali, a vista ia e vinha facilmente ao mar, depois alargava-se para um lado e para outro da costa e ainda voava pelas encostas das falésias mediterrânicas.
E o êxtase panorâmico não se sentia apenas a partir daquela colina. Assim que começávamos a subir os penhascos que bordejam a costa, a paisagem estendia-se ainda mais sobre a planície costeira e ao longo das vertentes pétreas que levam olhar a percorrer dezenas de quilómetros. Quando se chega a…

…MIJAS


A mais de quatrocentos metros acima do nível do mar, o cenário é deslumbrante. Mas não só. O sítio encanta pela paisagem mas também fascina pelo gosto das decorações urbanas, pela arquitectura das casas e pela alvura das fachadas que contrasta com o cinzento dos penhascos.
Panorama desde Mijas, ao fundo o Mediterrâneo
As casas trepam a vertente como de relva branca se tratasse. As ruas são estreitas, também para se defenderem do calor e do sol, percebendo-se imediatamente a herança árabe. Possui no entanto uma praça central grande, na altura cheia de gente, onde todos chegam e de onde todos partem. 
Descobrimos ainda pequenas praças floridas, espreitámos o interior de uma quantidade de lojas de decoração e artesanato, visitámos dois ou três miradouros. Às tantas, estávamos dentro de uma pequena praça de touros, alcantilada na ponta de um penhasco. 
Mijas tinha uma atmosfera cosmopolita que se notava sobretudo nos cafés e nas lojas. Havia mais estrangeiros do que espanhóis a deambular. Na rua, não se notava tanto barulho como em outros lugares. O sol ilumina as fachadas como se mil holofotes estivessem para ali apontados. Continuamos para…

…TORREMOLINOS

São mais cerca de vinte quilómetros, mas mais de meia hora para lá chegar. O trânsito torna-se muito lento por volta de Fuengirola e arrasta-se até Benalmadema em filas de carros que avançam em pára-arranca. Refugiámo-nos perto do mar durante algum tempo e até estacionámos à porta do Casino de Benalmadema.
Entrada do Casino Torrequebrada, em Benlamadema
Ao chegar a Torremolinos, deixámos a moto e fomos a pé até ao Barrondillo, uma das praias mais conhecidas da zona. Trepámos até ao Bar Inglês e demos um passeio pela zona da "Vaca Sentada". Quando voltámos tínhamos um convite no banco da moto que nos desafiava a irmos a casa de amigos.
Eu tinha uma vaga ideia, mas não me lembrava onde ficava  exactamente a casa. Por tal, jantámos na zona central, perto de onde havíamos estacionado a moto, e esperámos que eles viessem beber café “cá abaixo”. E, claro que vieram. Estivemos juntos até às tantas da noite envolvidos pela habitual cálida temperatura nocturna.
Com amigos, em Torremolinos
Não me recordo de termos entrado em discotecas em Torremolinos. Contudo, na lista de despesas – é verdade, até havia tempo para tomar nota da contabilidade! – aparecem mil e seiscentas pesetas antes do item, “boite”. 
É muito possível que tenhamos entrado no Piper's que, neste ano, aparecia como "New". mas não devemos ter lá estado até de manhã, uma vez que, no dia seguinte, era a vez de conhecer…

…MARBELHA DE DIA



Regressámos à zona histórica. As ruas estavam agora quase vazias, excelentes para andar à vontade e à procura de uma ou outra recordação. Hoje andaríamos a pé e percorreríamos todas as ruas. Na caminhada, entre outras coisas, encontramos uma “Varanda da Virgem” e um “600” vermelhão.
O centro histórico não é muito grande, mas as lojas são deveras atractivas. Nas ruas, havia muitas flores coloridas em vasos no chão e nas paredes, que contrastavam com o branco das fachadas. Aqui e ali, havia arbustos e trepadeiras, muitas buganvílias que, apesar da secura do ambiente, iam escalando as fachadas das casas.
Marina de Marbelha
Passamos por uma igreja cuja fachada não consegui colocar dentro de um slide. Descobrimos mais uma fonte, mas ou a muralha do castelo estava tapada, com obras talvez, ou não demos por ela. Percebemos que, para aqui, não valia sequer a pena trazer a moto. Havia ruas onde eu não conseguia esticar os braços sem bater nas grades das janelas…
O resto do dia foi dedicado à zona da marginal de acesso às praias, embora ainda tenhamos estado sentados na avenida principal, por onde passava todo o trânsito que vem de Málaga para Cádiz. Havia sempre movimento. Era certamente a mais poluídas das avenidas da cidade.
Explorada a zona pedestre marginal à praia e a área da marina (que não é extensa), o dia seguinte foi dedicado à experiência de tomar banho em plena Marbelha. Má prática, aliás. Como se não bastasse a inexistência de ondas, pareceu-nos que aquele “caldinho” tinha mais objectos a boiar do que o rio Jamor.
Praia de Marbelha, La Venus
A temperatura da água aproximava-se da de um banho de imersão caseiro, estava muita gente nas praias, mas poucos nadavam. Havia muitos estrangeiros, talvez por isso as pessoas na água apenas estivessem a conversar ou simplesmente a refrescar-se.
Simpatizámos com o ambiente, cálido, cosmopolita e calmo, mas não gostámos da água. Parecia estar engordurada e tinha demasiadas coisas em suspensão. Talvez fosse melhor ir tomar banho a outro lado. E não voltámos a pisar a água do mar em Marbelha.
Por isso, no dia seguinte, voltámos a andar de moto. Passámos pelo Puerto Banús, andámos nas imediações entre chalets, urbanizações turísticas e hotéis de luxo. Subimos e descemos um troço na montanha a caminho de Ronda e regressámos ao apartamento. Já conhecíamos (quase) tudo dos anos anteriores. 
Última noite em Marbelha
No dia seguinte, iríamos tentar descobrir uma praia decente e sítios novos. Saímos cedo de Marbella e não chegámos a percorrer cinquenta quilómetros. Ultrapassámos São Pedro de Alcántara, depois Estepona e parámos pouco antes de La Chullera. Nas duas próximas noites, ficaríamos no…

…CAMPING LA BELLA VISTA


Aqui, a água da praia já era aceitável. A temperatura, o espaço e a limpeza valiam a pena. Tínhamos praticamente a praia toda para nós, bem como uma quantidade de algas à ordem, prontas para obsequiar qualquer selvagem que aparecesse.
No parque de campismo havia sombras, pouca gente, muito espaço para montar a tenda e armar as cadeiras. O dia seguinte, passámo-lo na praia, ora dentro de água, ora a ler, ora a espiolhar o que se passava à nossa volta. 
Foi aqui que revimos o programa para o tal passeio especial. Ouvíamos falar, mas nunca ninguém nos havia descrito a cidade nem incentivado a ir. Sabíamos que os portugueses do início 500 a haviam conquistado, mas pouco sabíamos como estava hoje…

…CEUTA



Partimos do parque de campismo ainda de noite. À medida que íamos avançando e o dia ia surgindo atrás de nós, o céu ia-se tornando rosado, um cor-de-rosa que eu nunca tinha visto, uma claridade rosácea tão serena como deslumbrante.
Vislumbrámos Gibraltar já com essa aura rosada. Em Algeciras, onde apanhámos o barco, o céu também parecia coberto por um véu cor-de-rosa que, daí a pouco, se foi alaranjando. Quando entrámos no barco, parecia que o nascer-do-sol havia acontecido àquela hora.
Ainda fomos de moto ao porto perceber onde as iríamos deixar. Aconselharam-nos uma garagem onde ficariam mais seguras. E assim foi, deixamos blusões e capacetes nas malas das motos e fomos o mais leve possível para o barco. Esperámos pela saída deitados nas “butacas” do convés superior a apanhar os primeiros raios de sol matinais.
Era a primeira vez que pisávamos África, embora fosse um território espanhol. Contudo, íamos sobretudo pelo “tax free”. Já havíamos ouvido falar dos preços competitivos que se praticavam no enclave. Aliás, em Espanha, era assim em todas as nesgas de terra “entaladas” entre países - Andorra, Gibraltar - os preços eram tentadores.
Como não tínhamos preparado o passeio, deambulámos ao sabor da estética e da facilidade de acesso, uma vez que desde o porto se trepava até ao centro e mais se subiria se quiséssemos ir à Península de Santa Catalina. Ficámos pela zona histórica central, onde se erguiam as Muralhas Reais, mas também onde havia mais lojas.
Essa facilidade deu como resultado ter na mochila, ao fim de algum tempo, um teleconversor e um filtro para a máquina fotográfica, que ficaram por cinco mil e seiscentas pesetas. Mais à frente, foram dois blusões de cabedal que trocamos por mais dez mil pesetas. Um rolo fotográfico depois, dávamos por terminada a incursão na zona das compras.
Calle Real, Ceuta
As impressões sobre a cidade não foram muito agradáveis na altura. Visitámos um mercado onde a carne que estava pendurada atraía moscas como o mel encanta abelhas, passámos por alguns prédios de fachadas mal cuidadas, andámos em ruas com mau aspecto. Não ficámos adeptos.
Passagens marítimas – quase quatro mil pesetas – e um dia de garagem por quatrocentas pesetas, também não ajudaram a melhorar a ideia que trouxemos de Ceuta. Hoje, um bilhete de ida e volta para Ceuta ou Tanger custa cerca de 120€, seis vezes mais do que em 1984.
Gibraltar
Regressámos a Algeciras e fomos buscar as motos à garagem. Voltámos a Alcorrin e ao camping Bella Vista onde chegámos já de noite. Eram cerca de quarenta quilómetros quase sem trânsito. Jantámos no restaurante do parque de campismo. No dia seguinte, iríamos…

…ATÉ BEJA, POR CÁDIZ E SEVILHA

Neste dia, tínhamos cerca de quinhentos quilómetros pela frente. Voltámos a vestir os fatos de cabedal e daí a pouco o calor instalou-se como habitualmente. Parámos duas vezes, pelo menos, até Cádiz, uma para reabastecer o depósito e outra para reabastecer o estômago.
Entrámos em Cadiz pela longa avenida que leva à zona antiga, uma recta com quase dez quilómetros, ladeada por prédios que escondem outros tantos quilómetros de praias. Como não sabíamos da existência de um centro histórico, parámos na área mais moderna da cidade mas também a menos aprazível.
Cádiz
Bebemos um café, comemos qualquer coisa e partimos a caminho de Sevilha pela auto-estrada. Anos antes, ainda no final da década de 70, tinha sido obrigado a parar na berma para proteger os olhos da extrema luminosidade do piso, uma vez que era pavimento com cimento muito claro.
Auto-estrada Cádiz-Sevilha
Separámo-nos da F1 em Sevilha. Nós optámos pelo Alentejo e eles por entrar em Portugal através do Algarve. Fomos seguindo ao ritmo do calor local e aguentámos a cadência até Aracena. Aqui, porém, andámos propositadamente à procura de sombras, que só encontrámos perto de uma pequena igreja.
Estávamos a meio da tarde os pássaros ou não voavam ou faziam-no baixo. Não havia uma única brisa e o sol mantinha-se impiedoso. Mesmo assim, ainda conseguimos tirar fotografias na zona antiga, depois de nos sentarmos durante bastante tempo nos degraus da porta das traseiras da igreja.
Igreja do castelo de Aracena
Dali até à fronteira foi um ápice, ilustrado todavia pelo aparecimento de uma cobra, a meio da estrada e no meio de nenhures, que não consegui evitar. Eu supus que a cobra não tivesse sofrido grande coisa e que tivesse fugido para o campo. A Julieta já não foi tão optimista e levou as pernas até à fronteira em alerta, não fosse a desgraçada estar agarrada ao motor…
Felizmente tal não aconteceu e chegámos a Vila verde de Ficalho sem qualquer vestígio de ter existido um churrasco no carter. Registámos a passagem pela fronteira em fotografia e continuámos para Beja. Este foi o último slide da jornada. Não sei se o rolo comprado em Ceuta não estaria nessa altura praticamente esgotado.
Fronteira de Vila Verde de Ficalho
A verdade é que esse fim do dia ficou memorável, sobretudo ao jantar, quando a sede se sobrepôs a um branco alentejano capaz de ressuscitar um morto. A odisseia teve ainda passagem por Vila Nova de Milfontes, antes do regresso a casa no dia 31 de Agosto. Já lá vão trinta e dois anos.