domingo, 18 de abril de 2021

Kamakura, Japão

Toda a gente conhece a serra de Sintra, a cerca de três dezenas de quilómetros de Lisboa, um lugar histórico, com a vila no sopé, acessos íngremes, escorregadios, estreitos e misteriosos, vegetação abundante, com trilhos que trepam a caminho do castelo e do palácio. Em Kamakura, a pouco mais de meia centena de quilómetros da capital nipónica, o cenário é semelhante. 

Aqui, as árvores, as casas, a penedia, o piso, as cores, o ambiente húmido, as veredas, as grutas, os trilhos, são em tudo semelhantes. O silêncio estende-se pelas encostas, a reverência pelos templos, a paisagem vai do vale ao topo da montanha, os caminhos rompem a floresta e trepam pelas fragas.

Tal como Sintra, embora situada a uma altitude inferior, também Kamakura se situa próximo do mar, banhada pelo Oceano Pacífico onde a prática de surf se bate com o de Ribeira de Ilhas. Até é possível surpreender um Mini numa garagem. Em Sintra, porém, não se reconhecem avisos nem ruas de evacuação em caso de tsunami...

TREPAR A SERRA

Desde a planura da cidade, é sempre a trepar, no meio de um bosque cerrado, com piso instável, flora lúbrica, colorida e frondosa, templos recônditos, penedos gigantescos, miradouros e recantos tão românticos e fascinantes como aterradores. Felizmente, as zonas íngremes são raras, mas foi por aí que trepámos, num dia tão húmido como desafiante.

De Tóquio, através da Linha Ueno, não chega a uma hora de viagem. Atravessámos os arredores de Tóquio, mais urbano, passámos por uma zona campestre, tão plana como a capital, e saímos quando o relevo já crescia frondoso. Chegados à estação de Kita-Kamakura  é possível, de ali, iniciar a escalada.

Está húmido e o trilho começa a subir mal deixamos o comboio naquela primeira estação de Kamakura. Levamos apenas um mapa com algum detalhe, mas o percurso está facilitado com indicações universais assim que saímos da zona urbana. O casario multiplica-se em pequenas aldeias, umas a seguir às outras, com pequenas moradias dispostas ao longo da estrada, com jardins exíguos, decorados com uma singeleza ímpar.

Avançamos por estreitas ruelas onde não há passeios e raros ou privativos são os lugares de estacionamento automóvel. Há pouca, muito pouca gente a circular nestas ruas, parecendo que todos trabalham fora. Há mais turistas do que autóctones, mesmo considerando que muitos desses turistas são japoneses ou asiáticos. Estamos todos a percorrer o mesmo trilho.


EM KINPOZAN JŌCHI-JI, COM O BUDA DA FELICIDADE

Numa curva da estrada, abre-se uma escadaria valente que leva a um templo budista zen, Kinpozan Jōchi-ji, fundado em finais do século XIII. Hoje, pouco resta do grande templo original, constituído por mais de uma dezena de edifícios, destruídos pelo terramoto Kanto. O edifício principal, que não é grande, tem no átrio três estátuas de Buda que representam o passado, o presente e o futuro.

Próximo, fica um cemitério budista envolto num bosque de bambus. Um dos acessos faz-se através de um túnel que leva à estátua de um Buda da Felicidade, de aspecto simpático, mas cuja devoção dos fiéis é de tal ordem já lhe alisaram, a barriga, uma orelha e o indicador, de tanto os afagarem.


Passeamos sozinhos pelo cemitério envoltos na habitual serenidade destes lugares, todavia sob um vasto manto de humidade, ao longo das inúmeras campas e das pedras lapidares de forma geométrica. Junto à rocha, em pequenos espaços cavados na pedra, surgem lápides e esculturas de animais.

Trata-se de túmulos escavados nas encostas das colinas, muitos originários da Idade Média, sepulturas destinadas a sacerdotes e personalidades de alto estatuto. Praticamente todos os túmulos têm uma lápide, embora algumas sejam iguais. Na maior, onde cabem várias pessoas, está o Buda da Felicidade.

Apesar de o ambiente ser acinzentado pelas rochas que nos rodeiam, as cores nunca desaparecem dos diversos cenários, quer na zona urbana, quer já ao longo dos trilhos, junto dos cemitérios e dos templos. Verdes, vermelhos e dourados juntam-se à profusão dos brancos rosados das sakuras. 


ZENIARAI BENZAITEN, UM TEMPLO NA CAVERNA


Deixámos o cemitério por um trilho que nos levou de novo a uma pequena zona urbana. Pouco trânsito na estrada, pouca gente nos exíguos passeios, um grupo significativo de estudantes caminhava de forma organizada a caminho de casa. Almoçámos num pequeno restaurante à beira da estrada e saímos na direcção do Zeniarai Benzaiten, um templo construído numa caverna, fundado em finais do século XII.

Da planura da aldeia voltámos ao trilho pedregoso e escorregadio. O envolvimento continuou a assemelhar-se à nossa Sintra, todavia sempre acompanhados pelas flores de cerejeira que iam abrindo a claridade do caminho. Encontramos um mapa informativo e confirmarmos estar em pleno Parque Genjiyama.

Andamos já num trilho exclusivamente pedestre. Primeiro amplo, depois cada vez mais estreito, entre penedias. Não tarda que se perceba que o cenário já teve um perfil de defesa. Tal data de 1333, quando Kamakura se tornou um campo de batalha sangrento, na época da invasão perpetrada por Nitta Yoshisada.

Vamos entrar por um dos sete “pass” da montanha. O solo pétreo continua escorregadio o que obriga a caminhar com muito cuidado. Passamos a andar entre vegetação frondosa e densa onde, por vezes, somos obrigados a escalar os degraus da penedia. 

Ainda caíram uns pingos de chuva no topo da montanha, a deixar o chão ainda mais escorregadio. Prosseguimos, já acompanhados por mais turistas. Entretanto, o tempo melhorou assim que começámos a descer. E, nesta descida, surpreendemo-nos numa passagem entre rochas, ao descobrir uma espécie de caverna. 

Passámos o túnel de acesso, onde não cabiam mais de duas pessoas lado a lado. Depois, um corredor sob um conjunto de torii, portais japoneses da tradução xintoista que assinalam a proximidade de um santuário. Entrávamos em Zeniarai Benzaiten, num espaço pequeno, mas pleno de gente, parecendo ser um dos locais mais visitados da serra.

E esse facto talvez esteja relacionado com o sincretismo do kami – deus – que ali é adorado, que combina um espírito tradicional nativo e uma deusa budista de origem indiana. Essa fusão de crenças religiosas nota-se quer nos componentes decorativos, quer nos elementos dos rituais, desde os torii ao incenso.

Acompanhamos um dos rituais xintoistas, o temizu – ritual de purificação simbólica – que consiste em lavar a mão e a boca, e significa a limpeza da alma e da mente. Mais à frente, já dentro da caverna, os rituais multiplicavam-se e havia fila para aceder a alguns dos recantos. 

A claridade é ténue. Os visitantes tentam não cair e evitar ir de encontro uns aos outros. Mais perto dos altares, numa fonte famosa pelos predicados de multiplicação de dinheiro, havia pessoas a lavar moedas...


KŌTOKU-IN, ONDE SE SENTA O GRANDE BUDA

Almoçámos pouco depois, no regresso à zona urbana. Voltámos a sair da rua principal, passámos um túnel rodoviário e, em 10 minutos, estávamos perante o Grande Buda, Daibutsu, uma estátua de bronze, com mais de 13 metros de altura, de interior oco, que ocupa o espaço do santuário Kotoku-in. 

Maior do que este, no Japão, só o do templo Todai-ji, em Nara. O Daibutsu data de finais do século XIII, inicialmente construído no interior de um templo, está agora no meio de um jardim. Inicialmente, era dourado e ainda é possível distinguir folhas de ouro junto das orelhas da estátua.

Em seu redor, nos jardins, as sakuras dominam formando um tecto rosado sobre a passagem de milhares de pessoas. Voltou a chover, mas as pessoas continuam a circular, habituadas a este tipo de clima. Tudo é calmo, silencioso e reverente, uma característica que a serra de Kamakura empresta ao ambiente.

SURF NA BAÍA DE SAGAMI


Kamakura já foi capital do Japão há quase 7 séculos, tendo sido a região com maior população no século XIII, durante o período Kamakura. Hoje, a cidade geminada com Nice, em França, junta a profusão de templos na floresta da serrania, aos seus próprios na zona urbana, aos muitos festivais culturais anuais e, ainda, à prática de surf. Dispõe ainda de, em caso de tsunami, muitas vias de fuga assinaladas.


É sobretudo à vista da praia de Yuigahama - comprida, larga e com ondulação suave -, na baía que banha a cidade, que o surf é popular desde há muitos anos. Neste dia, eram muitos os praticantes de windsurf que por ali andavam, indiferentes ao tempo chuvoso que assolava a praia, a marginal e a cidade.


Além destes, que davam um colorido agradável ao mar cínzeo da baía, também os cafés e as lojas de surf emprestavam alguma identidade estética ao ambiente. Curiosas, as decorações das bóias dos pescadores, neste dia confinados nas suas pequenas barracas de madeira. Tal como um clássico Mini branco, um dos carros ideais para guardar numa exígua garagem japonesa.

Um dia bem passado em Kamakura. Na floresta e na zona urbana, entre templos budistas e xintoístas, em subidas e descidas, pouco mais de seis quilómetros em percurso pedestres, íngreme por vezes é verdade, mas suficientemente suave para repetir. Porque Kamakura está lá, tem muito mais para descobri, para ver e para sentir, quer no bosque quer na cidade. 



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