Toda a gente conhece Madrid, ou ouviu falar, ou já viu imagens, ou tem
amigos que já lá foram. Para além da monumentalidade – dizem que, império
oblige – também tem espanhóis, a maioria madrilenos. Rapaziada alegre,
brincalhona, barulhenta, como a maioria dos espanhóis. Amigos de festas e da
rua - tudo é pretexto para ir -, dá para imaginar que o Fim do Ano fosse uma
(das) festa de arromba. Vamos lá sentir a coisa, mas também para percorrermos
um itinerário. Afinal, no fim de ano, tudo está fechado e festa é coisa limitada. Vamos aproveitar para espreitar
o que ainda não espreitámos. Passamos pelo Alcazar de Toledo, entramos na
Almudena, vamos à Atocha, damos um passeio pela avenida das artes, passeamos
pelos bairros de La Latina, Delicias, Chueca, Lavapiés, visitamos testemunhos do Antigo
Egipto e vamos a caminho do fim do ano para estar à meia-noite na Puerta del
Sol. Venham espreitar como foi este fim de ano há meia dúzia de anos.
TOLEDO DE PASSAGEM
Toledo destacou-se no século XIII como importante centro
no capítulo cultural e político sob o domínio de Afonso X. Hoje florescem as
artes damasquinadas, incrustações de fios de ouro ou prata em peças de metal
feitas de aço ou ferro, bem como a exímia arte de fabricação de espadas, criada
na segunda metade do século XVII, com Fábrica de Espadas de Toledo. e, obviamente, D. Quixote, também por lá anda, ou não estivessemos em La Mancha.
Cervantes havia descrito Toledo como a "glória da Espanha", fascinado
pela síntese cultural de cristãos, muçulmanos e judeus. , já havíamos
percorrido Toledo a pé, desde a ponte de San Martin, passando pela Porta de
Bisagra, pela ponte do Alcazar, pela Plaza De Zocodover. Entre outros locais de
interesse, faltava o Alcazar.
Já lá tínhamos estado por mais do que uma vez, mas nunca conseguimos
visitar o Alcazar. Nas anteriores tentativas, ora estava em obras, fosse
qualquer fosse o impedimento – ora estava em obras, ora havia fila, ora por
falta de tempo -, nunca tínhamos conseguido entrar.
O Alcazar e a Catedral são o dois edifícios que se destacam e reconhecem
imediatamente em Toledo. O primeiro é um edifício monumental, com origem num
palácio romano do século III, restaurado e depois modificado na primeira metade
do século XVI, por Carlos I.
Durante a guerra civil espanhola o Alcazar foi destruído, tendo sido
reedificado após o conflito. Alberga actualmente a Biblioteca de Castilla-La
Mancha e o Museu do Exército. Foi este último que visitámos. Desta feita, andámos por lá mais do que uma hora, sem contar com o périplo
próximo, incluindo o respectivo miradouro.
Vista dos arredores, sobretudo de sul, Toledo parece uma ilha. Em seu
redor, o Tajo quase a envolve totalmente, criando uma barreira natural de
acesso. Toledo tem muitos monumentos religiosos, tais como a Sinagoga de Santa
María la Blanca, a sinagoga de El Tránsito e a mesquita de Cristo de la Luz,
que não conhecemos.
NOCTURNA EM LA ALMUDENA
Na noite em que chegámos a Madrid, passámos pela Catedral
de La Almudena, datada de finas do século XIX. Esta igreja, palco da última
união real em Espanha, em 2004 – havia uma década -, situa-se paredes-meias com
a Muralha Árabe, parte de uma fortaleza do século IX, considerada a zona que
deu origem a Madrid.
Notórios são, a quantidade de túmulos existentes na cripta, considerada uma das maiores de Espanha, bem como os espetaculares vitrais das 20 capelas que envolvem o templo.
A Catedral de Madrid possui uma mistura de estilos, do exterior ao
interior, passando pela cripta, que vão do neoclássico ao neogótico e ao
neo-romântico.
PASSEIO PELAS ARTES
Com o fim do ano a poucas horas, os locais de interesse para visita fecham.
Museus, galerias, casas culturais, actividades lúdicas, suspendem-se até depois
do Ano Novo. Cá e lá, é assim. Tal proporciona o passeio , mais que não seja,
pelas fachadas. È isso que vamos fazer: passear por um itinerário que nos leva
pelos caminhos da arte.
Por lá, vamos descobrindo o que ainda não descobrimos, ao mesmo tempo que
nos divertimos ao longo do último dia do ano, na expectativa de que o terminar
de um ano seja auspicioso para desejar e querer que o seguinte seja ainda
melhor do que este. Fazê-lo aqui, longe de casa, como estreia, pode potenciar
esse ideal.
AO LONGO DO REINA SOFIA
É por ali, na fachada lateral do Museu reina Sofia que
iniciamos o nosso périplo. Originalmente, o edifício albergava o Hospital Geral
de San Carlos. Desde a década de 80 do século passado que foi convertido em
museu que guarda muito da arte contemporânea espanhola.
O Centro de Arte Reina Sofía abriu ao público em 1986
apenas com exposições temporárias e, pouco mais de dois anos depois, foram
construídas as três torres de elevadores
panorâmicos em vidro e aço. Dez anos mais tarde, em 92, foi criada a exposição
permanente e o espaço foi considerado museu.
PASSAGEM POR ATOCHA
A inauguração da estação de Atocha data de finais do século XIX, a primeira
estação de comboios de Madrid que, na altura, apenas dispunha de um cais em
madeira. No início da última década daquele século, surge um dos elementos de
destaque da estação, a cobertura da nave principal, em vidro, com mais de 150
metros de comprimento.
Sendo a principal estação ferroviária da capital espanhola, Atocha está
hoje dividida na parte nova e na parte antiga, é nesta última que está
instalado um enorme jardim tropical com mais de 7 mil plantas de 400 espécies
diferentes rodeado por um amplo centro comercial.
NA AVENIDA DAS ARTES
Não há muita gente na estação. Deixamos a Atocha no
início do Passeo del Prado, a tal avenida das artes, com museus de um lado e de
outro. Mais à frente, a novidade é um jardim vertical, construído numa parede
com mais de 30 metros de altura, que faz parte integrante do Caixa Forum Madrid,
uma instituição do banco La Caixa.
Este centro sociocultural é uma das instituições de arte,
a par do museu do Prado e do Thyssen, que ladeia o Passeo del Prado. Polivalente
e com conteúdos diversificados, o Caixa Forum dedicado a debates e workshops,
recebe festivais de música e poesia e exibe arte, desde arte antiga a
multimédia.
Vamos subindo ligeiramente a avenida e damos uma Victory, na versão Vision Street,
uma moto americana, raramente vista, com 1730 cc, quase 100 cavalos, motor
Vtwin e caixa de 6 velocidades, com um design que junta o clássico e o
sofisticado, seguramente uma moto que “dá nas vistas”.
Muito próximo, vislumbramos uma râ, denominada Râ da Fortuna, uma escultura
do artista espanhol, Eladio de Mora, criador multifacetado, de estilo popular e
estética incomparável, com obras expostas em Londres ou Nova Iorque.
Espreitando melhor, percebe-se que a escultura está à porta do Gran Casino.
Lendo, fica-se a saber que foi oferta do casino à cidade.
A poucos passos, surge outra escultura, esta mais identificável para
conheça as obras de Botero, a Mulher com Espelho. Botero tem um estilo inconfundível,
de figuras rotundas e cheias, e está também patente em muitas cidades mundiais,
em Lisboa, com “Maternidade”, por exemplo, no Parque Eduardo VII.
Muito próximo, ao descer uma escadaria, outro relance vai para o Museu de
Cera de Madrid, não para o respectivo conteúdo interior, mas para os espelhos
concavos e convexos exteriores que nos transformam rotundamente o parecer, mas
que nos divertem imensamente o ser.
Já nos arredores do bairro Chueca, alia próximo de Lavapies, muitas janelas
exibiam cartazes, alertando para os imensos despejos dos centros das capitais,
o que criou no país vizinho, um movimento anti-despejos, que nasceu em Barcelona,
cresceu em Madrid e se estendeu por toda a Espanha.
Aproveitámos estar próximo da Cocina de San Anton, um restaurante situado
no topo de um centro comercialem pleno bairro Chueca – o Mercado de San Anton,
recuperado há poucos anos, tal como alguns dos nossos em Portugual – para
admirar almoçar e preparar o périplo da tarde.
Até aqui, já havíamos palmilhado cerca de cinco quilómetros. Saímos do
Hotel Porta de Toledo, passámos pela Casa Encendida - centro social e cultural da Fundação
Montemadrid – pelo Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, pelo Caixa Forum
Madrid, pelo Museo del Prado, pelo Museo Nacional Thyssen-Bornemisza e pelo Museo
de Cera de Madrid. Arte, até dizer chega!
O ANTIGO EGIPTO EM MADRID
O Antigo Egipto também está representado na capital espanhola. A iminência
da inundação do vale de Assuão, no Egipto, levou este país a oferecer a Espanha
um templo do século II a.C. Este foi instalado no Parque do Quartel de
Montanha, perto da Praça de Espanha, na zona de Arguelles.
Dedicado inicialmente aos deuses Amon e Isis, a decoração obedeceu aos
padrões tradicionais, com relevos e esculturas de significado religioso. Porém,
só estaria terminado após a anexação do Egipto pelo Império Romano, altura em
que o edifício recebeu elementos decorativos romanos.
Mais tarde, já sob conversão cristã no século VI d.C., a Níbia abandonou o
o templo. Em pleno século XX, o Egipto viu-se perante o dilema de o ver
inundado. Por tal, ofereceu-o a Madrid, tendo sido desmontado,, depois
transportado e reconstruído, pedra por pedra. No lago que o envolve tinha, no último dia do ano, pequenas lages de gelo a flutuar....
O templo está implantado num local algo
lúgubre, conhecido como a Montaña de Príncipe Pío, cenário de dois episódios
dramáticos da vida espanhola, onde as tropas francesas de Napoleão fuzilaram os
sublevados da revolta de 2 de maio de 1808, e da sublevação militar, em 1936,
que daria lugar à Guerra Civil espanhola.
A CAMINHO DO FIM DE ANO
Sem conhecermos o programa estaria previsto para o Fim de Ano, sabíamos
contudo que o epicentro das comemorações teria lugar na famosa Puerta del Sol,
no centro de Madrid, e que seria o relógio do edifício da Real Casa de Correos
a dar a meia-noite. Por tal, ainda andámos por lá a reconhecer o espaço antes
de jantar.
Aquela hora, eram sobretudo as família que já andava de um lado para o
outro, ao longo da animação das “estátuas”, dos mascarados, dos restantes
animadores de ocasião, que até incluia um avô ciclista, cuja bicicleta tinha
mais luzes do que uma árvores de Natal. Até que, ás tantas, parecia estarmos em plena cerimónia do Fim de Ano. Sim, que os madrilenos insistem em treinar para essa ocasião...
Entretanto, já espreitávamos o urso que trepa o medronheiro, emblema de
Madrid, representa a constelação da Ursa Menor e simboliza fertilidade. Às
tantas, estávamos em cima do “Km 0”, originalmente “Légua Zero” quando o rei
Filipe V mandou construir seis estradas a partir daquele ponto, que seria,
nessa altura, o centro da capital.
Entretanto, já havíamos passado pelas lojas ambulantes com artigos de
ocasião, entre máscaras, rocas, serpentinas e, claro, o típico “cagón de la
suerte”, pequeno boneco de barro pintado, em posição de defecar, associado à
boa sorte e à prosperidade, e que assume por vezes a identidade de
personalidades famosas.
Agora, bastava sobreviver à marcação do último jantar do ano. Conseguimos uma
mesa num restaurante da calle Toledo, depois de espreitarmos uma dezena de outros
que já estavam lotados. Acabamos por jantar bem, relativamente apertados, mas
numa sala privativa da Cerveceria de San Milan.
ESTAR QUASE LÁ
Perto da 11 da noite, fomos espreitando o destino da “movida” madrilena.
Com efeito, a maioria ia a caminho da Puerta del Sol. Quanto mais perto
estávamos, mais gente convergia para as
ruas que lhe davam acesso. Até que se começaram a formar filas nos
passeios da Calle Mayor.
Era por aí que íamos ao encontro do Fim de Ano, espreitar o tal lugar de
eleição da turba madrilena. Mas não conseguimos lá chegar. Havia gente já
parada no final da da rua que não conseguia avançar para a praça. O motivo era
o controlo do acesso á Puerta del Sol, proibido a quem levasse garrafas ou
copos de vidro.
Tudo o que era vidro ficava em sacos e o líquido passava para copos de
plástico fornecidos pela autarquia. Tudo aquilo controlado pela polícia
municipal. Claro que deixámos por lá as garrafas de espumoso e continuámos. Mas
não andámos muito mais. Ficámos barrados por uma plateia de gente que já lá
estava.
Por estarmos relativamente longe da praça, nem sequer percebemos que é o movimento
e o som do relógio do edifício dos Correios que, quando faltam apenas alguns
segundos para a meia-noite, faz com que a esfera situada na parte superior da
torre comece a descer, acompanhada pelo som dos carrilhões, para logo após
assinalar a meia-noite do dia 31 de Dezembro.
MEIA NOITE NA PUERTA DEL SOL
O burburinho começa a fazer-se sentir pouco antes da meia-noite e a
apoteose vai crescendo até que, de lá para cá, o som de música vai antecedendo
a meia-noite. Depois, a turba faz o resto: a excitação aumenta ao ritmo do
barulho e vice-versa, há contagem descrescente, pouco antes já há grupos a
celebrar.
Acompanhamos a movida até podermos, “reservarmos” um espaço junto a uma
árvore, de modo a podermos mexer minimamente braços e pernas. Conseguimos
celebrar como habitualmente a passagem de ano, na companhia dos amigos, com um
copo de espumoso na mão e com a esperança de que o novo ano seja melhor do que
o anterior.
Tudo se passa entre o quarto de hora que antecede a meia-noite e o primeiro
quarto de hora do Ano Novo. Depois, a multidão desaparece. Não se ouve música vinda da Puerta del Sol. Menos se percebem destinos de outra folia. Os (poucos) bares abertos estão
cheios até à porta e, quanto mais longe da Puerta del Sol, menos gente se vê. E, lá, passámos mais um ano.
Música: Anwar Amr, Epicness; Remake Cinematic Music, Interstellar (no copyright music)