segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Holanda 1987 - Regresso às Origens - II De Lausanne a Queluz




II – DE LAUSANNE A QUELUZ

O texto seguinte foi publicado no número 350 da revista “Motojornal”, em Agosto de 1994, há mais de três décadas por tanto. Foi legendado com oito fotografias reproduzidas a partir de slides que nunca me foram devolvidos. Felizmente sobraram outras cem imagens da viagem. Bem como o respectivo texto. É esse texto que reproduzo a seguir, bem como uma ou duas fotografias captadas da publicação. Assinalo também alguns lugares que pela novidade, beleza ou originalidade se destacaram na viagem. Esta é a segunda parte da narrativa.

A CAMINHADA

No dia seguinte, a chuva mantinha o ritmo do dia anterior. Com os fatos de chuva novamente vestidos pusemo-nos a caminho de Basileia. Com a entrada na Suíça as condições do piso pioravam, especialmente nas estradas de montanha.
As curvas sucediam-se e a Honda escorregava lentamente. Nem as belas paisagens suíças distraíam da sinuosidade da estrada e da degradação do piso. As paragens tornaram-se frequentes e, numa delas, fomos mesmo obrigados a fazê-lo junto a uma vacaria onde o cheiro da bosta ultrapassava em muito o da humidade.
Apesar dos fatos de chuva serem impermeáveis, a jornada foi bastante desagradável até ao parque de campismo de Vidy, em Lausanne, que alcançamos por volta das quatro horas da tarde e onde deixámos uma mensagem na recepção dirigida aos nossos companhei-ros. Só antes de jantar nos encontramos à entrada do parque. Perdidos uns dos outros, todos optamos por entrar em França, já que o alojamento era mais barato. Enquanto nós parámos logo a seguir à fronteira, eles optaram por procurar um parque de campismo, mesmo apesar da chuva que persistia. Acabamos por ficar a alguns quilómetros uns dos outros.
Já que a intempérie se mantinha, montamos as tendas ainda com os fatos de chuva vestidos e só os dispensamos à noite no restaurante. A foto que o Manuel ou a Cila nos tiraram, onde mais parecemos extraterrestres, diz bem da necessidade de armarmos os igloos protegidos da chuva e só depois os transportarmos para a relva.
A manhã surgiu ensolarada, convidando ao passeio. Aproveitamos para visitar o castelo de Saint-Maire, a igreja de Saint-François, a Universidade – que conta com um museu de história natural e uma galeria de arte – e ainda o porto de recreio.
À tarde, desposemo-nos a percorre a pé a parte baixa da cidade. Eu conhecia vários pontos de interesse, visto ter sido esta a terceira vez que estava em Lausanne e, por tal, podia servir de guia. Percorremos demoradamente – levou a tarde toda – a margem do lago Lemans, apreciando as belas casas e jardins lacustres e, ao fim de alguns quilómetros estávamos cansadíssimos. Sobretudo eles, que haviam passado uma noite mal dormida – choveu sempre -, estavam estafados. 
A meio da caminhada começou a chover e as pernas passaram a queixar-se. No final do dia reconhecemos termos andado cerca de oito quilómetros a pé, o que não estava minimamente nos nossos planos. Ainda assim ainda pudemos apreciar as instalações olímpicas e as ruínas romanas existentes junto ao lago na área de Vidy, onde ficava o parque de campismo. Mais uma vez a limpeza e o cuidado com a preservação dos edifícios da cidade e das ruas da cidade, deixaram uma sensação de mágoa quando nos lembrámos dos nossos burgos.
A esplêndida situação do parque de campismo de Vidy, enquadrado por uma extensa zona verde junto do lago, permitiu adormecermos embalados ao som das pequenas vagas que batiam nas margens ao longo de uma noite calma.
A manhã surgiu soalheira. Saímos cedo, rumo a Montreux, pela estrada que percorre a margem do lago, entre o azul do céu e o verde das colinas. Depois de uma breve paragem no castelo de Chillon, dirigimo-nos a Montreux onde estacionámos junto ao casino local.
À tarde, já no regresso a Lausanne passamos por Vevey, sede da conhecida Nestlé, e aventuramo-nos colina acima, por uma estrada secundária, entre mansões de montanha de onde desfrutamos um panorama ímpar sobre o largo e respectivas margens. À medida que nos aproximávamos de Lausanne o céu tornar-se-ia mais escuro, como que prometendo nova chuvada para o dia seguinte.


CAMPISMO NO ASFALTO

Aproveitamos uma aberta, arrumamos as tendas e deixamos Lausanne percorremos a estrada nacional que leva a Genève, sempre à beira do lago, onde parámos para beber um café, por sinal o mais caro da jornada - que rondou os duzentos escudos – apesar de ter sido tomado á vista do espectacular “repuxo”  que, em estilo ‘geiser’, leva água a algumas dezenas de metros na vertical. E nem por isso, havia desperdício, uma vez que era posteriormente reaproveitada. Diga-se, em abono da verdade, que a Suíça na altura detinha o record mundial de abastecimento de água sem problemas.
A próxima etapa levar-nos-ia até Platja de Pals, junto a Barcelona, onde chegámos por volta das duas da manhã. O vento forte que se fazia sentir na auto-estrada próximo de Perpignan, ainda em França, obrigou-nos a rodar lentamente e a um esforço adicional para manter as motos a direito.
Mesmo recorrendo ao sistema da perna flectida para o lado do vento – prática que o João me havia ensinado anos antes quando passamos por Tarifa – tanto a CB como a GPZ dificilmente rodavam perpendiculares à estrada, isto durante umas boas dezenas de quilómetros.
Depois de termos jantado próximo da fronteira de La Junquera, mas já numa área de serviço na auto-estrada catalã, dirigimo-nos ao parque de campismo Cyplesaa, em plena Platja de Pals, onde nos esperavam dois guardas, bem bebidos, que nos queriam obrigar a montar as tendas – igloos, sem espias – no asfalto, fora do parque. Alguma negociação permitiu-nos passar as tendas para um espaço relvado dentro do complexo e, finalmente, descansar.
Nessa etapa percorremos cerca de 800 quilómetros, com chuva, vento e mais tarde um calor abrasador. As tampas do motor da CB apresentavam já uma coloração acinzentada e os cabos do acelerador e da embraiagem tornavam-se menos operacionais.
Dedicamos o dia seguinte à visita a Pals, uma pequena localidade situada a alguns quilómetros da costa, uma joia do património arquitectónico catalão, cuja traça típica dos edifícios estava rigorosamente conservada. Além de possuir uma cerâmica singular, a par do artesanato, o facto de apenas ter ruas para pedestres emprestava-lhe uma tranquilidade especial. A estrada de acesso era pitoresca e de bom piso.

SOL E CHUVA

A etapa seguinte previa terminar em Guadalajara. A auto-estrada até Saragoça foi percorrida rapidamente debaixo de um calor tórrido. As paragens tornaram-se obrigatórias uma vez que a ventoinha do radiador da GPZ começava a queixar-se as tampas de motor da CB já queimavam.
A chegada ao hotel Pax, bem situado mas sem condições, deu-se por volta das sete da tarde, quando o céu se começava a toldar. De manhã, à saída, os fatos de chuva voltaram a ser necessários. A montagem das malas Krauser já foi feita à chuva. Nessa altura, os sacos-cama e a tenda também regressaram à bagageira do Uno.
Mais tarde, o sol reapareceu, o que permitiu darmos alguma folga aos fatos de chuva. Mas não foi por muito tempo. Atravessar Madrid foi o cabo dos trabalhos: uma valente carga de água abateu-se sobre a capital espanhola e obrigou-nos a parar de emergência por baixo de uma ponte, uma vez que os fatos estavam ligeiramente abertos mas a chuva entrava abundantemente. Por pouco, dada a precipitação da manobra, com a viseira e os retrovisores embaciados, quase fomos abalroados por um camião.

MALDITOS PNEUS

À saída de Madrid fazia sol. Este acompanhou-nos até ao princípio da serra de Gredos, assim como nos perseguia, um pouco mais atrás, uma enorme e ameaçadora nuvem negra. Logo após termos parado numa área de serviço da serra – aquela onde habitualmente reabastecíamos entre Madrid e a fronteira – percebemos que o devíamos ter feito com mais rapidez.
O sol desapareceu num instante e deu lugar à colossal nuvem negra. Vestimos os fatos de chuva, dissemos ao Manuel e à Cila para irem andando e arrancamos no intuito de ultrapassar a chuvada que devia estar próxima. E começou a chover.
À medida que íamos trepando a serra a chuva aumentava e a velocidade das motos diminuía. O Uno foi-se distanciando. As condições do piso pioraram e as curvas passaram a ser feitas cuidadosamente. A bagagem, mesmo reduzida ao saco de depósito e às duas Krauser, não permitia o equilíbrio habitual das motos. A continuação da chuva estava a prejudicar significativamente a condução.
Praticamente no sítio mais alto da serra, a GPZ foi para a frente e distanciou-se ligeiramente. Logo após uma esquerda larga, não sem antes ter sentido uma escorregadela da Honda, deparei com a Kawasaki a deslizar com a carenagem pelo asfalto.
Pouco depois, dei com o João a levantar-se lentamente, mas a Paulinha, de rabo no chão, não parecia poder mexer-se. Parei a CB com alguma dificuldade na berma junto ao precipício do lado direito da estrada e fomos ver o que se passava.
Abatido, o João bramava: malditos pneus (Yokohama, de nylon…)! Entretanto, a Paulinha começava a sentir dores no tornozelo. A Kawasaki tinha a manete da embraiagem partida, o saco de depósito havia saltado e uma das malas estava raspada bem como a carenagem.
De repente, a chuva parou. O tornozelo da Paulinha inchava. Entretanto, pararam alguns carros e, de um deles alguém se intitulou médico e, pouco depois, diagnosticou que a Paulinha teria algo partido. Do Uno, nem sinal.
Amavelmente, o médico espanhol prontificou-se a levar a Paulinha até ao hospital mais próximo, em Navalmoral de la Mata, a cerca de 40 quilómetros do local do acidente, no sentido de Madrid. O médico e um amigo que com ele viajava eram caçadores e voltavam de uma caçada, pelo que o interior do Renault5 contava, além de uma ferida e de outra não menos abatida, com uma quantidade de peças de caça. Eu cheguei a pensar que o sangue que andava por ali era da Paulinha…
Depois de tentar solucionar o problema da manete de embraiagem recorrendo à fantástica fita isoladora, inventariámos rapidamente os outros estragos da moto. Não eram importantes, podíamos continuar. Logo após, o sol voltou o tempo aqueceu. De tal maneira que a fita isoladora começou a amolecer e a manete chegou já pendurada ao hospital.
O hospital de Navalmoral de la Mata era uma espécie de s. Francisco Xavier em ponto pequeno ma mostrou-se eficaz. Entretanto, a Pauinha foi assistida e confirmou-se que tinha o tornozelo partido e que seria necessário engessá-lo. Depois, contactámos a GESA, Assistance, de Barcelona, que rapidamente se inteirou do estado das pessoas e do veículo e pôs à nossa disposição um táxi para transportar a Paulinha para Portugal.
Nesta altura, o Uno já estaria próximo da fronteira portuguesa, mas após duas horas à nossa espera, decidiram voltar para trás à nossa procura. Entretanto, o táxi chegara ao hospital e visivelmente bêbado teve ainda a lucidez suficiente para passar o serviço para um colega.

A TEMPESTADE


Por volta das 7 da tarde, surgiu a Paulinha com o pé engessado e numa cadeira de rodas, à porta do hospital, pronta para regressar a casa. O táxi saiu primeiro, a Honda e a Kawa – esta “armadilhada” com nova fita isoladora e com uma espécie de tala – seguiram-no.
No início da serra de Gredos, e dada a previsibilidade de noa chuvada, parei para vestir o fato de chuva. A paragem foi suficiente para que o táxi e a Kawa se tivessem afastado. Foi também o tempo necessário para que as nuvens negras que novamente nos acompanhavam, voltassem a produzir uma tempestade de tal ordem que não tenho memória de uma chuvada daquelas.
Próximo do local do acidente, o vendaval e a chuva transformaram-se numa tromba de água. A dada altura, já com a visibilidade nula, e praticamente a “passo de caracol”, fui obrigado a parar em plena faixa de rodagem. Eu e todos os restantes veículos que circulavam naquela ocasião.
Mantive o motor a trabalhar, não fossem as velas pregar-me alguma partida, mas foi com dificuldade que consegui manter a moto na vertical, tendo mesmo de recorrer ao descanso lateral para não a deixar cair. Durante um minuto pareceu-me que o mundo iria acabar com uma inundação. E, logo eu, estava na primeira fila!
E o João…? Que era feito dele? Sortudo, havia conseguido, tal como o táxi, atingir praticamente o final da serra – eles não tinham parado - pelo que não teve a necessidade de parar, embora tenha apanhado, tal como eu, a “chuvada da vida”.
Mais à frente, foi a vez de encontrar o Manuel e a Cila, que já tinham feito cerca de 200 quilómetros desde a fronteira. O escape do Uno, praticamente partido, deixava já escapar o som de um Fórmula 1, barulheira que os seguiu no regresso a casa.
A partir da fronteira do Caia, depois de uma sopa especialmente servida à Paulinha ainda dentro do táxi, percorremos os derradeiros quilómetros que nos separavam de Queluz, não sem antes termos experimentado alguns encandeamentos e manobras perigosas por parte dos nossos conterrâneos e sofrido mais 100 quilómetros debaixo de uma chuva miudinha que só nos deixou cerca da uma da manhã, finalmente, à porta de casa.

EPÍLOGO


Percorrer cerca de 7000 quilómetros, em 16 dias, afigurou-se uma tarefa desgastante e deixou-nos uma sensação nostálgica quanto ao que poderíamos ter aproveitado se tivéssemos mais tempo disponível. Ficará, no entanto, para outras andanças.´
As condições climatéricas, mais de 30 graus centígrados em Espanha contrataram com a extrema humidade de Haia e com as chuvadas de Barcelona, Madrid e Gredos. Contando com a chuva fraca mas ininterrupta na Alemanha, era impossível não chegarmos a casa que nem “pintos”. Molhados, mas felizes.
Tínhamos terminado mais uma viagem, “mais uma corrida”. Uma “corrida“ que, entre outros, teve o condão de nos mostrar outras realidades, outras maneiras de fazer, diferentes maneiras de pensar o quotidiano. Foi, digamos, didáctico e enriquecedor, mais não seja, pelo facto de ter permitido mudar, alterar rotinas e, inclusivamente, diversificar s temas de conversa, bem como o teor das discussões.
Podemos perceber melhor os nossos próprios comportamentos, quer individuais quer enquanto grupo e, desta feita, exprimir e modificar posições que antes se mostravam radicais. A “viagem”, nesta perspectiva, teve um valor acrescentado que, por enquanto, é tributado apenas na memória dos protagonistas e fará parte da nossa “história particular”. Por outro lado, o “estar lá” foi sinónimo e justificação de, “eu sei”, um pouco à imagem do, “ver para crer”.
Tudo o que aconteceu, vimos, fizemos, visitamos e sentimos juntou-se à memória de tantas outras ocasiões que, ainda hoje, e faço votos que por muito tempo, preenche os momentos mágicos que partilhamos com aqueles cuja paixão é também viajar de moto.
Porquê, de moto? Esta poderia ser uma nova “viagem” teórica à causa das coisas. Fica para outra oportunidade. Também em jeito de tributo a essa paixão, dedico esta narrativa, especialmente aos que me acompanharam numa das mais bonitas aventuras em que participei.