II
– DE LAUSANNE A QUELUZ
O
texto seguinte foi publicado no número 350 da revista “Motojornal”, em Agosto
de 1994, há mais de três décadas por tanto. Foi legendado com oito fotografias
reproduzidas a partir de slides que nunca me foram devolvidos. Felizmente
sobraram outras cem imagens da viagem. Bem como o respectivo texto. É esse
texto que reproduzo a seguir, bem como uma ou duas fotografias captadas da publicação. Assinalo também alguns lugares que pela
novidade, beleza ou originalidade se destacaram na viagem. Esta é a segunda
parte da narrativa.
A
CAMINHADA
No dia seguinte, a
chuva mantinha o ritmo do dia anterior. Com os fatos de chuva novamente
vestidos pusemo-nos a caminho de Basileia. Com a entrada na Suíça as condições
do piso pioravam, especialmente nas estradas de montanha.
As curvas
sucediam-se e a Honda escorregava lentamente. Nem as belas paisagens suíças
distraíam da sinuosidade da estrada e da degradação do piso. As paragens
tornaram-se frequentes e, numa delas, fomos mesmo obrigados a fazê-lo junto a
uma vacaria onde o cheiro da bosta ultrapassava em muito o da humidade.
Apesar dos fatos
de chuva serem impermeáveis, a jornada foi bastante desagradável até ao parque
de campismo de Vidy, em Lausanne, que alcançamos por volta das quatro horas da
tarde e onde deixámos uma mensagem na recepção dirigida aos nossos
companhei-ros. Só antes de jantar
nos encontramos à entrada do parque. Perdidos uns dos outros, todos optamos por
entrar em França, já que o alojamento era mais barato. Enquanto nós parámos
logo a seguir à fronteira, eles optaram por procurar um parque de campismo,
mesmo apesar da chuva que persistia. Acabamos por ficar a alguns quilómetros
uns dos outros.
Já que a
intempérie se mantinha, montamos as tendas ainda com os fatos de chuva vestidos
e só os dispensamos à noite no restaurante. A foto que o Manuel ou a Cila nos
tiraram, onde mais parecemos extraterrestres, diz bem da necessidade de
armarmos os igloos protegidos da chuva e só depois os transportarmos para a
relva.
A manhã surgiu
ensolarada, convidando ao passeio. Aproveitamos para visitar o castelo de Saint-Maire, a
igreja de Saint-François, a Universidade
– que conta com um museu de história natural e uma galeria de arte – e ainda o
porto de recreio.
À tarde,
desposemo-nos a percorre a pé a parte baixa da cidade. Eu conhecia vários
pontos de interesse, visto ter sido esta a terceira vez que estava em Lausanne
e, por tal, podia servir de guia. Percorremos demoradamente – levou a tarde
toda – a margem do lago Lemans, apreciando as belas casas e jardins lacustres
e, ao fim de alguns quilómetros estávamos cansadíssimos. Sobretudo eles,
que haviam passado uma noite mal dormida – choveu sempre -, estavam estafados.
A meio da caminhada começou a chover e as pernas passaram a queixar-se. No
final do dia reconhecemos termos andado cerca de oito quilómetros a pé, o que
não estava minimamente nos nossos planos. Ainda assim ainda
pudemos apreciar as instalações
olímpicas e as ruínas
romanas existentes junto ao lago na área de Vidy, onde ficava o parque
de campismo. Mais uma vez a limpeza e o cuidado com a preservação dos edifícios
da cidade e das ruas da cidade, deixaram uma sensação de mágoa quando nos
lembrámos dos nossos burgos.
A esplêndida
situação do parque de campismo de Vidy, enquadrado por uma extensa zona verde
junto do lago, permitiu adormecermos embalados ao som das pequenas vagas que
batiam nas margens ao longo de uma noite calma.
A manhã surgiu
soalheira. Saímos cedo, rumo a Montreux, pela estrada que percorre a margem do
lago, entre o azul do céu e o verde das colinas. Depois de uma breve paragem no
castelo de Chillon,
dirigimo-nos a Montreux onde estacionámos junto ao casino local.
CAMPISMO
NO ASFALTO
Aproveitamos uma
aberta, arrumamos as tendas e deixamos Lausanne percorremos a estrada nacional
que leva a Genève, sempre à beira do lago, onde parámos para beber um café, por
sinal o mais caro da jornada - que rondou os duzentos escudos – apesar de ter
sido tomado á vista do espectacular “repuxo” que, em estilo ‘geiser’, leva água a algumas
dezenas de metros na vertical. E nem por isso,
havia desperdício, uma vez que era posteriormente reaproveitada. Diga-se, em
abono da verdade, que a Suíça na altura detinha o record mundial de
abastecimento de água sem problemas.
A próxima etapa
levar-nos-ia até Platja de Pals, junto a Barcelona, onde
chegámos por volta das duas da manhã. O vento forte que se fazia sentir na
auto-estrada próximo de Perpignan, ainda em França, obrigou-nos a rodar
lentamente e a um esforço adicional para manter as motos a direito.
Mesmo recorrendo
ao sistema da perna flectida para o lado do vento – prática que o João me havia
ensinado anos antes quando passamos por Tarifa – tanto a CB como a GPZ
dificilmente rodavam perpendiculares à estrada, isto durante umas boas dezenas
de quilómetros.
Depois de termos
jantado próximo da fronteira de La Junquera, mas já numa área de serviço na
auto-estrada catalã, dirigimo-nos ao parque de campismo Cyplesaa, em plena
Platja de Pals, onde nos esperavam dois guardas, bem bebidos, que nos queriam
obrigar a montar as tendas – igloos, sem espias – no asfalto, fora do parque. Alguma
negociação permitiu-nos passar as tendas para um espaço relvado dentro do complexo e, finalmente,
descansar.
Nessa etapa
percorremos cerca de 800 quilómetros, com chuva, vento e mais tarde um calor
abrasador. As tampas do motor da CB apresentavam já uma coloração acinzentada e
os cabos do acelerador e da embraiagem tornavam-se menos operacionais.
Dedicamos o dia
seguinte à visita a Pals, uma pequena
localidade situada a alguns quilómetros da costa, uma joia do património
arquitectónico catalão, cuja traça típica dos edifícios estava rigorosamente
conservada. Além de possuir uma cerâmica singular, a par do artesanato, o facto
de apenas ter ruas para pedestres emprestava-lhe uma tranquilidade especial. A
estrada de acesso era pitoresca e de bom piso.
SOL
E CHUVA
A etapa seguinte
previa terminar em Guadalajara. A auto-estrada até Saragoça foi percorrida
rapidamente debaixo de um calor tórrido. As paragens tornaram-se obrigatórias
uma vez que a ventoinha do radiador da GPZ começava a queixar-se as tampas de
motor da CB já queimavam.
A chegada ao hotel
Pax, bem situado mas sem condições, deu-se por volta das sete da tarde, quando
o céu se começava a toldar. De manhã, à saída, os fatos de chuva voltaram a ser
necessários. A montagem das malas Krauser já foi feita à chuva. Nessa altura, os
sacos-cama e a tenda também regressaram à bagageira do Uno.
Mais tarde, o sol
reapareceu, o que permitiu darmos alguma folga aos fatos de chuva. Mas não foi
por muito tempo. Atravessar Madrid foi o cabo dos trabalhos: uma valente carga
de água abateu-se sobre a capital espanhola e obrigou-nos a parar de emergência
por baixo de uma ponte, uma vez que os fatos estavam ligeiramente abertos mas a
chuva entrava abundantemente. Por pouco, dada a precipitação da manobra, com a
viseira e os retrovisores embaciados, quase fomos abalroados por um camião.
MALDITOS
PNEUS
À saída de Madrid
fazia sol. Este acompanhou-nos até ao princípio da serra de Gredos, assim como
nos perseguia, um pouco mais atrás, uma enorme e ameaçadora nuvem negra. Logo
após termos parado numa área de serviço da serra – aquela onde habitualmente
reabastecíamos entre Madrid e a fronteira – percebemos que o devíamos ter feito
com mais rapidez.
O sol desapareceu
num instante e deu lugar à colossal nuvem negra. Vestimos os fatos de chuva,
dissemos ao Manuel e à Cila para irem andando e arrancamos no intuito de
ultrapassar a chuvada que devia estar próxima. E começou a chover.
À medida que íamos
trepando a serra a chuva aumentava e a velocidade das motos diminuía. O Uno
foi-se distanciando. As condições do piso pioraram e as curvas passaram a ser
feitas cuidadosamente. A bagagem, mesmo reduzida ao saco de depósito e às duas
Krauser, não permitia o equilíbrio habitual das motos. A continuação da chuva
estava a prejudicar significativamente a condução.
Praticamente no
sítio mais alto da serra, a GPZ foi para a frente e distanciou-se ligeiramente.
Logo após uma esquerda larga, não sem antes ter sentido uma escorregadela da
Honda, deparei com a Kawasaki a deslizar com a carenagem pelo asfalto.
Pouco depois, dei
com o João a levantar-se lentamente, mas a Paulinha, de rabo no chão, não
parecia poder mexer-se. Parei a CB com alguma dificuldade na berma junto ao
precipício do lado direito da estrada e fomos ver o que se passava.
Abatido, o João
bramava: malditos pneus (Yokohama, de nylon…)! Entretanto, a Paulinha começava
a sentir dores no tornozelo. A Kawasaki tinha a manete da embraiagem partida, o
saco de depósito havia saltado e uma das malas estava raspada bem como a
carenagem.
De repente, a
chuva parou. O tornozelo da Paulinha inchava. Entretanto, pararam alguns carros
e, de um deles alguém se intitulou médico e, pouco depois, diagnosticou que a
Paulinha teria algo partido. Do Uno, nem sinal.
Amavelmente, o
médico espanhol prontificou-se a levar a Paulinha até ao hospital mais próximo,
em Navalmoral de la Mata, a cerca de 40 quilómetros do local do acidente, no
sentido de Madrid. O médico e um amigo que com ele viajava eram caçadores e
voltavam de uma caçada, pelo que o interior do Renault5 contava, além de uma
ferida e de outra não menos abatida, com uma quantidade de peças de caça. Eu
cheguei a pensar que o sangue que andava por ali era da Paulinha…
Depois de tentar
solucionar o problema da manete de embraiagem recorrendo à fantástica fita
isoladora, inventariámos rapidamente os outros estragos da moto. Não eram
importantes, podíamos continuar. Logo após, o sol voltou o tempo aqueceu. De
tal maneira que a fita isoladora começou a amolecer e a manete chegou já
pendurada ao hospital.
O hospital de
Navalmoral de la Mata era uma espécie de s. Francisco Xavier em ponto pequeno
ma mostrou-se eficaz. Entretanto, a Pauinha foi assistida e confirmou-se que
tinha o tornozelo partido e que seria necessário engessá-lo. Depois,
contactámos a GESA, Assistance, de Barcelona, que rapidamente se inteirou do
estado das pessoas e do veículo e pôs à nossa disposição um táxi para
transportar a Paulinha para Portugal.
Nesta altura, o
Uno já estaria próximo da fronteira portuguesa, mas após duas horas à nossa
espera, decidiram voltar para trás à nossa procura. Entretanto, o táxi chegara
ao hospital e visivelmente bêbado teve ainda a lucidez suficiente para passar o
serviço para um colega.
A
TEMPESTADE
Por volta das 7 da
tarde, surgiu a Paulinha com o pé engessado e numa cadeira de rodas, à porta do
hospital, pronta para regressar a casa. O táxi saiu primeiro, a Honda e a Kawa
– esta “armadilhada” com nova fita isoladora e com uma espécie de tala –
seguiram-no.
No início da serra
de Gredos, e dada a previsibilidade de noa chuvada, parei para vestir o fato de
chuva. A paragem foi suficiente para que o táxi e a Kawa se tivessem afastado.
Foi também o tempo necessário para que as nuvens negras que novamente nos
acompanhavam, voltassem a produzir uma tempestade de tal ordem que não tenho
memória de uma chuvada daquelas.
Próximo do local
do acidente, o vendaval e a chuva transformaram-se numa tromba de água. A dada
altura, já com a visibilidade nula, e praticamente a “passo de caracol”, fui
obrigado a parar em plena faixa de rodagem. Eu e todos os restantes veículos
que circulavam naquela ocasião.
Mantive o motor a
trabalhar, não fossem as velas pregar-me alguma partida, mas foi com dificuldade
que consegui manter a moto na vertical, tendo mesmo de recorrer ao descanso
lateral para não a deixar cair. Durante um minuto pareceu-me que o mundo iria
acabar com uma inundação. E, logo eu, estava na primeira fila!
E o João…? Que era
feito dele? Sortudo, havia conseguido, tal como o táxi, atingir praticamente o
final da serra – eles não tinham parado - pelo que não teve a necessidade de
parar, embora tenha apanhado, tal como eu, a “chuvada da vida”.
Mais à frente, foi
a vez de encontrar o Manuel e a Cila, que já tinham feito cerca de 200
quilómetros desde a fronteira. O escape do Uno, praticamente partido, deixava
já escapar o som de um Fórmula 1, barulheira que os seguiu no regresso a casa.
A partir da
fronteira do Caia, depois de uma sopa especialmente servida à Paulinha ainda
dentro do táxi, percorremos os derradeiros quilómetros que nos separavam de
Queluz, não sem antes termos experimentado alguns encandeamentos e manobras
perigosas por parte dos nossos conterrâneos e sofrido mais 100 quilómetros
debaixo de uma chuva miudinha que só nos deixou cerca da uma da manhã,
finalmente, à porta de casa.
EPÍLOGO
Percorrer cerca de
7000 quilómetros, em 16 dias, afigurou-se uma tarefa desgastante e deixou-nos
uma sensação nostálgica quanto ao que poderíamos ter aproveitado se tivéssemos
mais tempo disponível. Ficará, no entanto, para outras andanças.´
As condições
climatéricas, mais de 30 graus centígrados em Espanha contrataram com a extrema
humidade de Haia e com as chuvadas de Barcelona, Madrid e Gredos. Contando com
a chuva fraca mas ininterrupta na Alemanha, era impossível não chegarmos a casa
que nem “pintos”. Molhados, mas felizes.
Tínhamos terminado
mais uma viagem, “mais uma corrida”. Uma “corrida“ que, entre outros, teve o
condão de nos mostrar outras realidades, outras maneiras de fazer, diferentes
maneiras de pensar o quotidiano. Foi, digamos, didáctico e enriquecedor, mais
não seja, pelo facto de ter permitido mudar, alterar rotinas e, inclusivamente,
diversificar s temas de conversa, bem como o teor das discussões.
Podemos perceber
melhor os nossos próprios comportamentos, quer individuais quer enquanto grupo
e, desta feita, exprimir e modificar posições que antes se mostravam radicais.
A “viagem”, nesta perspectiva, teve um valor acrescentado que, por enquanto, é
tributado apenas na memória dos protagonistas e fará parte da nossa “história
particular”. Por outro lado, o “estar lá” foi sinónimo e justificação de, “eu
sei”, um pouco à imagem do, “ver para crer”.
Tudo o que
aconteceu, vimos, fizemos, visitamos e sentimos juntou-se à memória de tantas
outras ocasiões que, ainda hoje, e faço votos que por muito tempo, preenche os
momentos mágicos que partilhamos com aqueles cuja paixão é também viajar de
moto.
Porquê, de moto?
Esta poderia ser uma nova “viagem” teórica à causa das coisas. Fica para outra
oportunidade. Também em jeito de tributo a essa paixão, dedico esta narrativa,
especialmente aos que me acompanharam numa das mais bonitas aventuras em que
participei.