Recorrer à memória não é esquecer o presente nem desprezar o futuro. É recuperar pedaços da vida, momentos que identificamos como marcantes. Pela positiva, os bons momentos! São lembranças que nos comovem, nos alertam, nos estimulam. São coisas boas! Algumas estão intimamente ligadas às viagens.
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O passaporte como calendário: saída a 10 e regresso a 18 de Setembro. |
Uma das primeiras teve como destino Bernidorm, na Costa Blanca espanhola. Seria uma estreia. De boa memória! A par de Torremolinos, onde havíamos estado no ano anterior, Benidorm era capital turística notável, um El Dorado de lazer, uma Shangri-La erótica. Deve ter sido esse exotismo que nos pôs na estrada, em Setembro de 1980, durante um Verão com temperaturas caóticas.
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À sombra, em Sevilha |
Foram 10 dias em que percorremos um pouco mais de 2500 kms, cerca de 40 em auto-estrada. Até Setúbal, concretamente. 10 mil escudos, pouco mais de 7 mil pesetas, foi um orçamento que pagou gasolina, refeições económicas e alojamento em quartos particulares (Torremolinos) no apartamento de Benidorm e na residencial de Beja. Seguro, alguns cigarros e "cubas-livres".
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Última página do passaporte: controlo de divisas... |
Nunca me tinham roubado nada da mota, até cerca de um mês antes da partida. A tampa lateral de fibra que cobria a bateria desaparecera da CB 750, sem que eu disso me apercebesse, durante a estada noturna num bar de S. João do Estoril. Devo ter esgotado o stock de fita isoladora na loja de ferragens para tapar aquela ausência. Porém, não foi essa situação que nos desmotivou.
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2 mil e quinhentos quilómetros, escassos 40 em auto-estrada. |
A moto ainda estava em nome do financiador. A CB era do Manolo Vidal, enquanto eu não acabasse de pagar uma quantidade de "letras". Na altura, o famoso galego financiava a compra de motos a meia-Lisboa. Por isso, fui obrigado a pedir-lhe autorização para sair do país. Era assim, desde Jarama, onde fora na Primavera anterior.
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Documento de autorização da saída da moto de Portugal |
Nem sequer nos demoveu o facto da moto não possuir qualquer bagageira, o vestuário (de motociclista) ser desadequado, dispormos de pouco dinheiro, termos poucas informações de outros viajantes sobre o caminho. Mas tínhamos uns folhetos antigos, daqueles que se iam buscar a uma embaixada para fazer um trabalho escolar para Geografia, algumas poupanças e uma espécie de vestuário que não nos comprometia demasiado...
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Alguns folhetos com 2 ou 3 anos de edição serviam perfeitamente como orientadores. |
Conhecíamos o caminho até Torremolinos, embora a Julieta o tivesse feito no ano anterior num "Mini" até às tantas da noite e eu de moto no pino do calor. Depois, era seguir a estrada que marginava o Mediterrâneo para leste. Uma dia até Torremolinos e outro até Benidorm. Quase 600 kms por dia. Dois dias debaixo de um sol abrasador. Era tentador.
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Um blusão da cor da carroceria do GS.... |
Nesta altura, dispunha de um par de calças grossíssimas (e caras, também), em cabedal, totalmente desajustadas para a temporada, um par de botas de cabedal mas sem qualquer ajuste motociclístico e um blusão feito por medida em pele fina. O equipamento da Julieta também era interessante: o blusão de cabedal creme, as calças de napa e as botas de salto alto davam-lhe um ar fashion.
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Outra sombra, a meio caminho |
A “bagageira” improvisada era enorme. Apenas levava roupa, calçado, higiene e a máquina fotográfica. Para tanto, comprei napa, desenhei o modelo, cortei a peça e pedi a um sapateiro para cozer tudo. Transportá-lo-ia preso ao depósito com “aranhas” elásticas. Não ficou mal: tinha dois “andares” e fechos éclair. Transportava tudo o que precisávamos: roupa, sapatos, ténis, artigos de higiene e a máquina fotográfica. Uma autêntica carroça de ciganos. Seguia direitinho, sobretudo quando rodava a direito. A curvar, pendia para o lado da curva. Durante a maioria da viagem não consegui ver os manómetros.
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O enorme saco de depósito que escondia os manómetros: quem precisava de vidro frontal? |
Saímos já com o sol a indicar-nos o destino. Naquela altura, a autoestrada acabava em Setúbal. Depois, eram mais 200 quilómetros até Badajoz, através de uma “nacional” que atravessava Vendas Novas, Montemor, Arraiolos e Elvas e passava perto de Estremoz e Borba. Mesmo de moto, era etapa para quase duas horas.
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Mais uma paragem para "arrefecer". |
A passagem na fronteira obrigava à compra do seguro. Uma casita improvisada, um empregado enfadado, o preenchimento do "papel cor-de-rosa", 87 pesetas por duas semanas. Acontecia logo após a verificação dos passaportes, uma operação que nunca nos levantou problemas.
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"Seguro contra terceiros": um pouco mais de 10 pesetas por dia |
Em Espanha, tomámos o caminho de Zafra com destino a Sevilha. Chegámos à capital andaluza no pino do calor. Não sei como aguentámos aquela temperatura: talvez tenha sido a juventude, talvez a aquela sombra onde “picnicámos”. Aposto na primeira. Foi um dia inteiro a andar, a comer mal, sob um calor intenso e ao longo de largos espaços áridos da Andaluzia. Chegámos a tempo de jantar e dar um passeio em Torremolinos. Aproveitei também para revisitar alguns locais onde havia estado em anos anteriores. Afinal, era o terceiro ano consecutivo naquela zona.
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Torremolinos |
No dia seguinte, era sobretudo a novidade do percurso que motivava. Tal expectativa confirmar-se-ia logo a seguir a Málaga. A estrada nacional passava a acompanhar o Mediterrâneo, seguindo o recorte da costa ao longo de uma sequência quer de praias abertas e recônditas, quer de planuras e falésias. Fiquei de tal forma entusiasmado com o cenário que, na década de 80, ainda lá voltámos por duas vezes.
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Em Torremolinos, na praia do Barrondillo. |
Apesar de o trânsito ser diminuto, o caminho era lento, a estrada sinuosa e o piso não ajudava. Notavam-se já bastantes quilómetros em obras que obrigavam a curtas paragens sob um sol intenso. Fizemos uma tentativa para almoçar em Almeria, mas foi mal sucedida. O sítio era feio, o sol queimava e a temperatura estava febril. Eu desidratei e perdi o apetite. A Julieta tinha arrepios devido ao calor.
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Paragem em uma das muitas estradas em obras na Costa Blanca |
No entanto, a paisagem surpreendia pela diversidade. Passámos pelas famosas estufas em socalcos, pelas planícies do Motril e de Almeria, andámos monte acima e abaixo. O talhe da costa, a beleza das falésias, a maresia, foi acompanhando a nossa jornada ao longo de estradas estreitas de piso razoável, mas já com alguns troços em obras.
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Na marina de Alicante. |
Mas, quanto mais nos aproximávamos de Benidorm, melhor surgia o piso. Alguns troços pareciam já parte do projeto de ligar toda a costa mediterrânica por via rápida, embora continuassem a existir alguns quilómetros em terra batida. Felizmente, não havia muito trânsito: os espanhóis quando vão de férias fixam-se num lugar e não saem de lá. Talvez isso permitisse a alguns animais atravessar a estrada a seu bel-prazer. A nós, calhou-nos um metro de cobra. Ia a caminho do mar. Devia ser uma cobra–de-água.
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Alicante. Vê-se o castelo ao fundo que só visitaríamos em 2008, quase 30 anos depois. |
Ao fim da tarde, chegávamos a Alicante. Mais fresco, o porto de recreio era o local ideal para nos refrescarmos. Andámos por ali, numa altura em que o acesso até próximo dos barcos era livre. Aliás, como em várias marinas mediterrânicas, incluindo a luxuosa Jose Banus, próximo de Marbella. Pouco depois, na aproximação a Benidorm, foi a altura dos prédios que surpreendeu. Entrámos pela parte mais recente, passámos pela zona antiga – um pequeno núcleo sensivelmente localizado a meio da localidade – e seguimos para as ruas interiores, sinónimo porventura de preços mais aliciantes de alojamento.
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Entrada em Benidorm. Gigantismo edificado surpreendente em finais de 80 |
Depois de uma caloraça violenta, o ideal era descobrirmos um apartamento janota e económico. Aconteceu precisamente isso. “Apartamentos Roma”, lia-se na lateral de um pequeno prédio de 3º andar com um quintal que dava acesso à recepção. Lá, foi uma família holandesa que nos acolheu. Eram os proprietários. Pelo nosso ar ansioso, devem ter percebido que era aquele sítio que nos interessava. Dissemos poder estar uma semana, mas ficámos quatro dias.
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Fachada dos Apartamentos "Roma". |
Era habitual darmos um passeio para conhecermos os arredores dos locais onde ficávamos alojados. Um dia fomos a Vilajoyosa e no seguinte a Alicante. A primeira pouco diferia em função de Benidorm: também era um lugar de férias. À segunda, fomos de noite. Com tanto "dedo" que, após estacionarmos a moto numa esquina, verificámos que havíamos desembocado no bairro mais "hard" da cidade.
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Visita a Alicante |
Depois, foi o domínio da praia, das discotecas, da paisagem, de um ou outro passeio pela zona antiga. Numa dessas ocasiões, fomos mesmo surpreendidos pela presença de um amigo, o Toninho, meu vizinho, colega de liceu, companheiro de muitos dias agradáveis. Estava com o Aragão. Jantámos juntos.
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Vista da varanda dos Apartamentos Roma: prédios da 2ª linha de praia. |
Estávamos alojados a dois passos da praia; a temperatura da água era excelente, quase quente; a areia, e um excelente dourado, rara nas praias mediterrânicas espanholas, era muito parecida com a nossa; os preços não eram exagerados; a praça ficava perto; tínhamos um bar do outro lado da rua; a marginal estava pejada deles. Era impossível abandonar Benidorm.
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Alicante |
Mas não podíamos ficar ali indefinidamente. Partimos cedo, tomando a mesma estrada que nos levara a Benidorm. O céu manteve-se irrepreensivelmente de um azul claro que só a natureza possui. Voltámos às falésias a espreitar o verde-esmeralda do Mediterrâneo e retornámos o trajeto das aldeias brancas alcantiladas nas escarpas. Foi assim até Málaga.
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Paragem em Múrcia para passagem de um andor. |
O
calor voltou a aparecer, a poeira das estradas a misturar-se com o suor, e as paragens por obras continuaram. Em Múrcia, uma procissão obrigou-nos a esperar ao sol a sua passagem. Tivemos, no entanto, mais ensejo em parar e admirar o que já na ida nos deleitara: a cor do mar, a majestade de algumas falésias, a dimensão do deserto de Almeria.
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Torrox, logo após Nerja. A torre ainda lá está. |
Voltámos a utilizar Torremolinos como etapa de ligação, preparação para atravessar o fogão andaluz e fritar na frigideira sevilhana. Nós éramos de novo o arroz daquela paelha que o Verão cozinha nesta zona. Tentámos não ficar apenas com a fama. Conhecia a piscina do Barrondillo de anos anteriores, que era "praticamente" pública para portugueses mais atrevidos. Passámos lá uma bela tarde de lazer, pensando apenas em deixar para trás os quilómetros de obras e esquecer os de calor que nos faltavam.
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Na piscina do Barrondillo, Torremolinos |
S
obrevivemos a todo aquele ócio. Mas era preciso continuar, voltar a enfrentar o calor. Recordo, uma paragem em Aracena. Procurávamos uma sombra, desesperadamente. Daí a pouco, demos connosco à porta de uma igreja, cuja rua estreita permitia a tão almejada sombra.
Estava uma tarde extremamente quente. De tal maneira que, também aqui, o asfalto convidada os animais de sangue frio a atravessarem a estrada. Foi o que aconteceu pouco antes da fronteira. Estava uma cobra esticada mesmo no meio do caminho. Tinha a pele escura e confundia-se com o alcatrão. Passei-lhe por cima com as duas rodas. A Julieta até levantou as pernas!
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Mais uma paragem devido a obras. |
Estávamos a dois passos de Beja. E o calor não dava tréguas. Por isso, resolvemos ficar por ali, alojados numa residencial. Jantámos cedo mas tivemos alguma dificuldade em sair do 1º andar do restaurante onde acompanhámos a refeição com um excelente “Redondo” branco gelado.
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1560 escudos: imposto de selo, em 1980, para uma moto de 750cc, com 7 anos. |
No dia seguinte, fizemos escala em vila Nova de Milfontes, onde o tempo quente da manhã já contratava com a frescura atlântica. Diz-se que “para ter prazer com a viagem não basta pensar apenas na meta”. Para nós, foi também o circuito que interessou. Mas Benidorm ficou para sempre na nossa memória. Talvez por isso, tenhamos voltado por mais três vezes, a última há cerca de 2 anos.