segunda-feira, 22 de maio de 2017

Convento da Arrábida

“Se não estou no Céu, estou nos seus arrabaldes»,
disse um dia Frei Martinho de Santa Maria,
sobre o êxtase que sentiu quando viu o lugar
onde fundaria o convento da Arrábida, 
imerso numa colina cuja vegetação trepa a serra desde o mar.


Vai-se por múltiplos motivos. Nós avançámos pela atracção paisagística, pelo desafio da descoberta. Talvez também pela aura de mistério que o espaço, durante muito tempo vedado a estranhos, pode suscitar. Porém, nota-se de imediato que outrora a religiosidade, a solidão e a vida contemplativa moraram ali.  
Basta estar inserido no Parque Natural da Arrábida para ser alvo de demanda por quem gosta da natureza. Basta ser um conjunto de degraus verdes sobre um mar que vai do turquesa ao verde escuro, para encher a vista. Basta estar a um passo de Tróia para que o olhar se estenda pela costa alentejana até Sines.
O Convento da Arrábida está situado a cerca de 250 metros acima do nível do mar. A paisagem que o rodeia e a que se contempla é soberba. Por vezes, e como ouvimos em comentário, parece que estamos numa ilha grega. O mar, neste dia tão calmo como o sereno Mediterrâneo, também contribuía para tanto deslumbre.
Não se pense que, porém, o nosso fascínio estético e lúdico contemple, também, instalações como sejam as celas, o refeitório, a cozinha ou outras dependências do convento. Estas são aquilo que se espera que sejam, despidas de conforto, funcionais, elementares.
Os fundadores do convento eram franciscanos, monges austeros mas humanitários, que baseavam o seu credo na pobreza e na humildade. Começaram por construir celas escavando a rocha da serra da Arrábida, junto de quatro capelas guaritas de veneração dos “Mistérios da Paixão”, formam um conjunto denominado “Convento Velho”, hoje também visitável. Desta vez, ficámos pelo “Convento Novo”.
Construído em meados do século XVI, foi fundado pelo monge castelhano Frei Martinho de Santa Maria, acompanhado por outros três monges. O convento foi construído em terras cedidas pelo duque de Aveiro, João de Lencastre. Nos anos 30 do século XIX, logo após as ordens religiosas terem sido extintas, os monges arrábidos abandonaram os conventos Velho e Novo, e as diversas dependências foram alvo de pilhagem e vandalismo, tendo sofrido estragos significativos.
Após 30 anos de abandono, a Casa de Palmela adquiriu as instalações mas só as recuperou cerca de 90 anos depois, já nas décadas de 40 e 50 do século XX. Quarenta anos depois, em 1990, o convento passou para a posse da Fundação Oriente. Vamos então entrar na parte visitável do Convento Novo, um complexo que, durante muitos anos apenas se viu de longe, de alguma curva da estrada ou de um dos miradouros da Arrábida. 
E durante todo esse tempo interrogou todos os que viam o acesso barrado com correntes e sinais de trânsito proibido. Trata-se de um agrupamento de dezenas de pequenas dependências: celas (não muitas), capelas, igreja, pátios, corredores, escadas, túneis, refeitório, cozinha, e ainda outras salas que, por entre o arvoredo, se dispõem assimetricamente a trepar a encosta.
É essa disposição que, quer de longe, quer lá, fascina e leva a estar. Atribui-se a Frei António da Piedade a mais antiga descrição do convento: “subindo os que forem pelo mar e descendo os que caminham por terra, dirigindo-se por áspera vereda, chega-se a um largo onde se depara a entrada do convento, ante a qual se ergue um penhasco, sobre que está uma cruz de pedra e defronte dela a imagem do segundo fundador, S. Pedro de Alcântara, com os braços abertos para a mesma Cruz».
Apesar de o grupo ser numeroso – cerca de 50 pessoas – a tranquilidade do espaço manteve-se. Ouviam-se alguns pássaros, mas como até as conversas eram em voz baixa, o sossego manteve-se praticamente inalterado, por vezes até integrando momentos de silêncio. Imagina-se a tranquilidade do lugar com apenas uma dezena de monges...

Ao início, passamos uma espécie de portal – onde está inscrito o nome de um dos companheiros de Martinho de Santa Maria, São Pedro de Alcântara - através do qual se acede, por cada um dos dois lados, ao átrio de entrada do convento. Começa assim, com a ocultação da passagem, um conjunto de elementos que testemunha o simbolismo do ambiente.
É aqui que percebemos essa prerrogativa de silêncio. A escultura de um monge pregado na cruz – que representa o sacrifício de Cristo e a figura São Pedro de Alcântara – e que tem os lábios cosidos, é testemunho do voto de silêncio que os eremitas arrábidos haviam feito. Mas não é apenas esse tabu que a figura do monge anfitrião mostra. Além da boca cosida, o coração também está fechado (para o mundo) e a cadeado. 
Sob a figura do monge crucificado, há uma inscrição numa esfera de pedra que identifica a data de construção do convento e sinaliza aos monges o sacrifício do fundador, outro elemento simbólico que utiliza a forma esférica/mundo para consolidar o esforço terreno para alcançar a redenção. 
Pouco depois de entrarmos na porta que ladeia a figura do monge, estamos na igreja, onde um altar em madeira com uma das faces vidradas encerra a figura jazente de Jesus. A igreja, aliás como todas as restantes dependências, é pequena e com poucas figuras sagradas.
Todavia, tal como os templos mais antigos, sobretudo os medievais, a igreja encerra sepulturas de notáveis, como sejam o quinto Duque de Aveiro, ou o poeta Frei Agostinho da Cruz. Mas também tem sepultado Frei Tomé de Jesus, que foi um humilde frade que viveu praticamente toda a vida no convento.
Nota-se que muitas das imagens, da virgem, de santos ou de anjos, são muito simples possivelmente obra dos próprios monges. No corredor que sai da igreja para o exterior, estão representadas figuras da Ordem Franciscana. Quando saímos, a paisagem que surge seduz de imediato.
Para sul, a vegetação parece cercada pelo mar azul e límpido, estendendo o horizonte até o céu se misturar com a água. Para poente, pequenas capelas espaçadas, como silhuetas num ecrã celeste, seguem disciplinadamente o traço da encosta. Em redor, o ambiente tranquilo, claro, amplo e belo pode ajudar a reflexão, a criação e o bem-estar. 
A simbologia simples muito artesanal que vai surgindo nas paredes, nas fontes, em pequenos elementos decorativos, ainda que escassa, também leva ao recolhimento. A espectacularidade da paisagem, quer para o mar ou para o topo da montanha, quer para qualquer dos lados, contrasta ainda assim com a pequenez dos espaços, com a sóbria decoração, com materiais primários e naturais como pedras ou conchas. 
Aliás, esta escassez de sofisticação quer material quer estética era um dos apanágios dos franciscanos, cuja tradição se estendia às refeições grandemente parcas, falhas de carne e de peixe, satisfeitas sobretudo à base de legumes, pão, ovos e pouco mais, rudeza que nem todos os monges suportaram.
A frequência das refeições também era diminuta, chegando a existir apenas uma durante o dia. A água, porém, nunca faltou. O convento era abastecido pela fonte da Samaritana, situada abaixo da igreja, que nuca secou e, em tempos idos, era um dos locais melhor adornados com mosaicos.
Aliás, em matéria de azulejaria, ainda se podem ver alguns mosaicos pintados, por exemplo, com motivos da Paixão, alguns danificados ou incompletos. Por outro lado, a maioria das dependências estão vazias, como seja a cozinha, ou pouco mobiladas, caso do refeitório que só tem mesas e bancos corridos.

O branco domina a fachadas, os telhados são cobertos por telhas, tem alguns portões em ferro, janelas generosas e uma miríade de pequenos corredores, escadas e pátios, que lhe criam um ambiente muito agradável. A complementar a harmonia está a paisagem que nunca deixa de surpreender.

O vídeo em, https://vimeo.com/217050053