Sisnando Davidiz
foi um tipo enigmático, talvez até fora do seu tempo, uma época de compromissos
curtos e diversos, mas de horizontes amplos e auspiciosos. O seu contributo enquanto governador de Coimbra em finais do século XI, tornaria a cidade num bastião significativo na formação
da nacionalidade.
Isto,
independentemente da permanência romana, céltica, visigótica e árabe na cidade.
Na época árabe, a cidade era conhecida como al-Qulumriyya ou Colimbria, tendo o
topónimo evoluído para Coimbra depois da Reconquista. E foi lá que nasceram
seis dos réis da primeira dinastia.
Ainda lá está a herança
árabe, bem patente no Arco e na Torre da Almedina – que faziam parte da entrada
na antiga medina - e na Porta da Barbacã, um reforço da muralha. Percebem-se
depois os meandros da antiga medina que tanto abrigam do sol como obrigam a
trepar.
Porta da Barbacâ |
Sé Nova |
Coimbra tem mais
do que ruas estreitas, espaços muralhados, arcos, torres. Não é preciso trepar,
basta ficar pelas margens do Mondego para passear à sombra dos chorões, entrar
em outra dimensão no Portugal dos Pequenitos, ou estrear o medieval pelo
Mosteiro de Santa Clara-a-Velha.
Porta da capela de São Miguel |
E tem tradições. O
fado de Coimbra é uma delas. A forma peculiar de o cantar, a lírica
característica, a melodia exclusiva da guitarra única, fazem do fado de Coimbra
um património particular dentro do património imaterial da humanidade que é o
fado.
Sé Velha, vista da Universidade |
Coimbra possui por
tanto vários patrimónios. Escolhemos quatro. A parte medieval, a Universidade, o
museu Machado de Castro (que preenche a maior parte da exposição) e o fado de
Coimbra. Comecemos
I
A
PÉ, DA BAIXA ATÉ À ALTA
Antes de começar a
trepar a Almedina, é interessante andar pela “Baixa”, pelas ruas estreitas,
algumas apenas com trânsito pedestre, onde ainda existe inclusivamente uma
habitação do século XVI, hoje um centro de interpretação que promove a história
e a cultura da cidade. Aqui, a seguir.
Casa medieval |
Ali perto, fica a
igreja de São Tiago, do século X reedificada após quase dois séculos, um
exemplar excelente da arquitectura românica em Portugal. A cobertura no
interior ainda é em madeira, sendo que, dadas as boas condições de preservação
ainda é lugar de culto.
Igreja de São Tiago |
Continuando é atraente
passar pela igreja de Santa Cruz, fundada no início do século XII por quem
seria o primeiro rei de Portugal. E é logo ao olhar para a fachada que se dá com
um pórtico singular. A igreja nasceu românica e foi renovada no século XVI, de
quando data o pórtico.
No interior,
destacam-se vários elementos, de entre os quais, a abóbada de nervuras, obra de
mestre Boitaca, bem como os túmulos dos primeiros reis de Portugal, Afonso
Henriques e seu filho, Sancho I. Outro elemento que se destaca é o órgão
profusamente decorado e bem conservado.
Torre da Almedina |
Depois, é continuar
pela rua de trânsito pedestre – onde é possível ir espreitar a igreja de
Santiago, (mais antiga do que Sé) - e entrar pela Porta da Barbacã, passar a
Torre da Almedina, trepar a rua do Quebra-Costas, escalar as escadinhas do dito
e avançar até à Sé Velha.
Escadas do Quebra Costas |
Algumas dezenas de
escadas mais acima, já não estão longe, por esta ordem, o museu Machado de
Castro e a Sé Nova pela esquerda e a Universidade no topo direito. É fácil dar
com a Universidade uma vez que os edifícios do complexo são volumosos e dominam
a ”Alta”.
Música: Ananga Ranga, Regresso às Origens
II
DO MUSEU
Deixamos os
meandros medievais e ficamos perto da Universidade e do museu Machado de
Castro. É para lá que vamos. Fazemos uma pausa à entrada, ambientamo-nos à
atmosfera circundante – com a Universidade de um lado, a Sé Nova de outro, a Sé
Velha ainda noutro - e entramos no museu pelo pátio do antigo Paço Episcopal.
Da varanda, a
vista é excelente sobre os telhados mais próximos, sobre a Sé Velha, a
Universidade, e ainda sobre a “baixa”, Mondego incluído. Não admira que o Fórum
romano tivesse sido erigido ali, tal o amplo horizonte que se abarca. Só a
universidade está num plano mais elevado.
Antes ou depois da
visita, é imprescindível olhar sobre Coimbra. Nós fizemo-lo nas duas ocasiões,
desde o pátio do museu e desde uma das varandas da universidade do lado poente.
Entramos lentamente na direcção do museu mas o olhar vai de imediato para a
varanda colunada que domina o pátio. A vista eclesiástica tinha bom gosto,
naquele tempo.
O museu vai além
da clássica organização de colecções, embora estas lá estejam, sejam excelentes
e constituam uma parte significativa do espólio. O superlativo vai para a
arqueologia que faz parte integrantes do edifício. Mas está lá a escultura com
exemplares admiráveis de cariz religioso em barro, a ourivesaria e a joalharia
com peças magníficas, a pintura e o desenho rivalizam-se e muitas peças de
mobiliário fundem-se com a história portuguesa.
CRIPTOPÓRTICO – As
Árulas Funerárias
Começamos por
baixo. Após a recepção, descemos dois andares e entramos em outro tempo, no
Criptopórtico do Fórum romano de Aeminium (Coimbra). São dois pisos de galerias
constituídos por um enfiamento de celas de dimensões diferentes com portas de
acesso de distintos tamanhos.
O criptopórtico
sustentava o templo que se encontrava dois andares acima do solo. Tratava-se de
uma construção que ao mesmo tempo que albergava diversas dependências sustinha
o fórum, a praça pública onde se discutiam os principais assuntos políticos,
económicos e religiosos da cidade.
No extremo sul do
criptopórtico estende-se um grande esgoto, sendo visitável uma câmara de
manutenção, utilizado inclusivamente até ao século passado. A água corrente
também foi alvo de encanamento no subsolo na época romana que corria para um
fontanário público. Ainda no interior
do criptopórtico e em posições de destaque encontramos alguns elementos
arqueológicos que nos dão conta, por exemplo, do quotidiano da estética, da
relação com a morte ou da imponência do poder.
A cabeça de Lívia
– intitulada Retrato de Lívia - que se supõe ser uma figuração da mulher do
imperador Augusto, ou a ara funerária de Aurelio Rufino, pertencente às
famílias ricas da cidade, são dois exemplos dessa representatividade.
O espaço
arqueológico encerra algumas peças desde o período pré-histórico até aos finais
do século XVI, mas é no interior do criptopórtico que se encontram os melhores
exemplares de lápides sepulcrais antes mencionadas em espaço que esteve em
utilização durante quase vinte séculos.
ESCULTURA – A
Última Ceia
A escultura é uma
das colecções mais ricas e com maior número de peças expostas. São
principalmente símbolos e imagens, sendo estas últimas sobretudo de cariz
religioso, e abrangem um período de cerca de sete séculos, desde o século XII
ao século XVIII.
Um dos conjuntos
escultóricos mais emblemáticos (e também mais notórios) é o que representa a
“Última Ceia” cujos protagonistas – Jesus Cristo e os apóstolos – são modelados
com um realismo incrível sobretudo devido à expressividade conseguida. Muitas
já não estão completas…
Outra escultura de
relevo é a do Cavaleiro Medieval, ícone da espiritualidade e da importância
militar, que representa Domingos Joanes, senhor de Touriz, a quem foi outorgada
pelo primeiro rei de Portugal a localidade de Esgueira. O seu túmulo na Capela
de Ferreiros (Oliveira do Hospital) é considerado um dos mais importantes
espaços funerários góticos portugueses.
Cavaleiro Medieval, Domingos Joanes |
Os exemplares mais
antigos são esculturas decorativas que ornamentavam as igrejas e os edifícios
monásticos. Afastada da arquitectura, a escultura vai acolitar-se nas arcas
funerárias, nos retábulos, nos altares, nos capitéis, na representação de
santos e das figuras mais importantes do catolicismo.
O acervo
escultórico é capaz de ser dos mais ricos e numerosos da exposição, mas também
dos mais notórios, parecendo estar presente na maioria das peças expostas. Uma
das figuras esculpidas do período de ouro da escultura portuguesa, e ícone da
época barroca, é a de S. Francisco, de autor desconhecido.
OUTROS ACERVOS
O espaço do
sagrado volta influenciar as obras de ourivesaria e joalharia, expostas num
ambiente mais intimista, destacando-se os relicários, as cruzes e as custódias,
sendo algumas peças do século XII, mas a maioria datada do século XVI.
A pintura abrange
os séculos XV e XVI, enquanto o mobiliário contempla os séculos XVI a XVIII. O
desenho é praticamente todo originário do século XVIII, assim como quase toda a
cerâmica.
Alguns azulejos,
aliás um conjunto de mais de duas dezenas, e que representam vários temas de
ensino, faziam parte dos materiais de ensino dos jesuítas do antigo Colégio de
Jesus, depois entregue pela reforma pombalina à Universidade.
A IDEIA QUE FICA
O MNMC é um misto
de museu de arqueologia, com ênfase nos achados da necrópole do antigo Fórum, e
de Arte Antiga, expondo sobretudo arte sacra. Relevante é também, por um lado,
o espaço de exposição que contempla o edifício (incluindo o Criptopórtico
romano) e as dimensões das salas dos pisos de exposição.
Alguns espaços
dispõem de dimensões muito generosas, que permitem expor objectos – em alguns
casos, fragmentos de arcaria ou partes de fachadas – que de outro modo não
poderiam estar em instalações de reduzidas dimensões.
Universidade, vista da varanda do museu Machado de Castro |
Podem ser quase
duas horas de um périplo por cerca de duas centenas de séculos. O espaço cativa
e os objectos dominam. A visita guiada é sugestiva, com conteúdos necessários e
suficientes, os guias são conhecedores e empáticos.
Música: Tantra, Mistérios e Maravilhas
III
UNIVERSITAS
A Universidade de Coimbra é a mais antiga de Portugal e uma das mais antigas do mundo que ainda lecciona. A chegada à Universidade, à zona mais antiga do complexo, faz-se pela Porta Férrea, da terceira década do século XVII, construída sob o edifício que dá acesso ao extenso átrio do antigo Paço Real da Alcáçova, depois Paço das Escolas.
O núcleo histórico da Universidade, o Paço das Escolas, remonta ao reinado de Afonso Henriques e é actualmente Património Mundial da UNESCO. Mais antiga é a Alcáçova que data de finais do século X, mandada erigir pelo célebre Almançor, governador do antigo reino Al-Andaluz.
Na fachada principal do antigo paço destaca-se a Via latina, uma extensa varanda com um frontão central ladeado por uma colunata neoclássica, lugar típico para plasmar qualquer grupo de turistas que se preze. Na imagem, um insuspeito Clube de motociclistas…
Do lado esquerdo da fachada ergue-se uma torre, a Torre da Universidade, cujo relógio está associado ao quotidiano lectivo ao marcar o ritmo das aulas, ou seja, a “empurrar” os alunos para as aulas. Daí o seu sobrenome de “cabra”.
Outro edifício que domina o átrio da Universidade é a capela de São Miguel. Trata-se de uma construção da segunda metade do século XI renovada no século XVI e cujo portal manuelino também data dessa época. Ainda hoje está aberta a visitas e ao culto, destacando-se um órgão imponente do século XVIII.
Capela se São Miguel |
Do mesmo século data a Biblioteca Joanina, uma joia do barroco cuja arquitectura relembra uma capela, contando inclusivamente com uma pequena abside onde domina o retrato do patrono, João V. Tal como outra biblioteca que se preze também ela dispõe de “condóminos nocturnos” encarregues de preservar os livros de insectos.
Biblioteca Joanina |
Trata-se de um espaço utilizado ainda como biblioteca ou lugar para manifestações culturais. Fascina sobretudo pela altura do “pé direito” e pelos cerca de 40 mil volumes que alberga no piso principal ou piso nobre (tem mais dois pisos inferiores).
Outro lugar curioso, a prisão académica, está relacionado com a autonomia da Universidade e, por esse facto, dispor de juiz, intitulado o Magnífico Reitor, uma guarda própria e uma prisão para os que não cumpriam o código judicial da instituição, intitulado “foro privado”.
O edifício principal, ou seja, o do antigo Paço Real, é o mais nobre e o que alberga três grandes salas profusamente decoradas. Foi neste paço que teve lugar a reunião da Cortes de 1385 que aclamaram o Mestre João de Aviz como rei de Portugal, cerimónia que decorreu na Sala dos Grandes Actos.
Hoje é sala principal da universidade, também conhecida por Salas dos Capelos – capelo, é como se denomina a capa nobre usada pelos doutorados acreditados - lugar onde acontecem as cerimónias académicas de maior relevo, nomeadamente as provas de doutoramento.
Sala dos Capelos |
Também fazem parte do edifício principal, os antigos aposentos do Rei onde ainda tiveram lugar provas de doutoramento, a chamada Sala do Exame Privado, bem como a Sala das Armas, onde estão guardadas as armas da Guarda Real Académica, que apenas reaparece em cerimónias cruciais do ano académico.
Música: Balada de Coimbra, Carlos Paredes
IV
FADO
DE COIMBRA
Se há especificidades culturais que podemos apelidar portuguesas, o fado de Coimbra é uma delas. Com ele, “aprende-se a dizer saudade”, a reconhecer as 'Coimbras' do Choupal, da Lapa, dos Doutores, da Sé Velha, a identificar os “amores”, a “despedida”, os “sofrimentos”.
“Balada da
Despedida”, “Coimbra é uma Lição” ou “Do Choupal Até à Lapa” são títulos
sobejamente conhecidos que associam Coimbra à Universidade, que juntam a cidade
aos estudantes, mas que casam sobretudo a poesia ao som das guitarras
portuguesas, com a voz e a entoação particular dos fadistas.
E se o fado,
Património Imaterial da Humanidade, é uma das nossas particularidades culturais
universalmente reconhecidas, o fado de Coimbra é certamente uma peculiaridade
dentro do fado, caracterizado por especificidades como o género do cantor, só há
homens a cantar, e pela etiqueta do fadista, vestindo capa e batina de cor
preta, além das sonoridades diferentes dos instrumentos musicais e vocais.
Memoráveis são as
serenatas que têm lugar à frente da Sé Velha, momentos em que são exaltadas a
vida de estudante e a da cidade, através de baladas cuja lírica contempla líricas
de importantes poetas portugueses e intérpretes
de nomeada, como sejam, Fernando Machado
Soares, Manuel Alegre, Adriano Correia de Oliveira, Armando Góis, Luís Cília,
José Afonso, entre muitos outros.