"Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo / Dá-se a volta
ao medo, dá-se a volta ao mundo".
O Dia Seguinte, Sérgio Godinho
De El Gordo a Cuenca, com Aranjuez e Chincón de permeio
A noite esteve escura mas tranquila. Parecia que já tinha chovido tudo e o céu por cima da albufeira de Valdanas estava enevoado mas seco. Talvez
houvesse magia e o tempo se aguentasse. Em vez disso o sortilégio fez aparecer
uma chave de uma BMW em cima do depósito. Podia ser um bom sinal. Mas não foi.
Se o princípio da noite anterior
tinha estado chuvoso, a manhã acabou por não se fazer rogada e os aguaceiros
sucederam-se praticamente durante uma centena de quilómetros que nos separava de Maqueda. Quando a chuva deu tréguas parámos para beber café numa cafetaria
de estrada depois de Olias Del rey.
ARANJUEZ
Chegámos a Aranjuez, terra que
consagrou a música de Joaquim Rodrigo, Concerto de Aranjuez, já com o tempo
seco. Entramos devagar e prosseguimos à procura de estacionamento. Perto do
palácio real há poucos lugares. Por isso, deixámos as motos à espanhola, em
cima do passeio.
Em cima do passeio estava também uma
colecção de velhos Fiat, que se reuniam do outro lado da avenida,
irrepreensivelmente alinhados, antigos e mais recentes, coloridos, desportivos,
utilitários, carrinhas, quatro portas, etc, etc. As Pan não são tão antigas,
mas lá chegarão…
Aranjuez fica a cerca de cinquenta quilómetros de Madrid
e já foi feudo da Ordem de Santiago. O Tejo passa por lá envergonhado entre
margens estreitas, a abraçar o palácio e o jardim. Navegava-se nestas águas
após o palácio ter passado a ser residência campestre
dos réis espanhóis.
Apesar de a versão actual não ser a original, é notório que a
dimensão e a arquitectura do palácio lembram os anos áureos pós-descobertas,
quando a Espanha e a Portugal chegavam as riquezas do mundo e o fausto se
instalava. Por cá, não faltam exemplos dessa grandeza. O palácio de Mafra
bate-se com este de igual para igual.
Apesar de Aranjuez ser uma terra simpática, com casas baixas e
muito espaço para andar a pé, não nos demorámos. Demos apenas um passeio em
redor do palácio, vimos a fachada, passamos pelos edifícios de apoio e
regressamos às motos. Tínhamos almoço marcado em Chinchón.
Deixámos Aranjuez sob um céu de chumbo ao longo de uma avenida que
bordeja um jardim imenso. E não voltou a chover durante o percurso. Chinchón
apareceu daí a pouco com a silhueta do seu castelo que domina a paisagem mas se encontra em mau
estado de conservação.
CHICHÓN
Paramos na rua que dá acesso à Plaza Mayor mas rapidamente nos
dissuadiram em estacionar ali. A zona é estreita e não dispõe de muitos lugares
e, onde há espaço é proibido. Primeiro foi o dono de uma loja, depois o
comandante da Guardia Civil, que nos aconselharam simpaticamente a procurar
lugar mais acima. Foi o que fizemos.
Pouco depois, a caminho do restaurante La Iberia, fomos
descobrindo as particularidades sobretudo estéticas desta praça. Trata-se de
uma terreiro arredondado mas irregular, circundado por antigas casas de
ganadeiros cuja origem remonta ao século XV.
Tem sido um lugar de relevo para diversas actividades culturais
que incluem tourada, teatro, circo, festas populares e políticas, actos
religiosos, e até foi cenário de uma corrida de touros no filme, “Volta ao
Mundo em Oitenta Dias”. Hoje alberga alguns alojamentos turísticos, muitas lojas
com produtos típicos e restaurantes.
Nós almoçamos num deles, um cordero lechazo, numa sala com
decoração antiga. Também dispunha de um pátio – não é o único na praça – onde
decorria uma festa para crianças. Choveu bem, enquanto almoçavamos. Neste dia, não
seria a última vez que o céu se rompia com violência.
Quando deixámos a Plaza Mayor já um grupo de póneis retomara o
passeio de algumas crianças. Em redor, as esplanadas esperavam dias mais
soalheiros. Ali, o restaurante Columna, mais pequeno do que o La Ibéria, também tem boas propostas gastronómicas e um
pátio interior bem decorado.
CUENCA
Cuenca vale a pena. Pela miríade de ruas estreitas, pelas casas penduradas nos penhascos, pelo Centro de Ciência, pela paisagem desde os miradouros, pelas vestígios árabes, pelo Parador, pela Plaza Mayor, pela catedral, pelas pequenas praças, pela torre Mangana, pela limpeza, pelo sossego.
Das Casas Colgadas à Catedral,
Do Parador à Torre Mangana
Do Parador à Torre Mangana
Pouco depois de sairmos de Aranjuez, estavamos na A-3, a via rápida que culmina na rotunda
de entrada de Cuenca. Mais duzentos metros e estamos à porta do hotel
Torremangana. Trata-se de quatro estrelas na zona nova, com garagem e acesso
rápido ao centro histórico.
Como caiu uma forte bátega de água enquanto procurávamos restaurante, não ficamos
longe do hotel. Esgotámos as batatas fritas de um franchising de tapas, demos a
volta a meia dúzia de quarteirões e regressamos cedo ao hotel. Ainda estava húmido e havia
pouca gente na rua.
De noite e na zona nova, é impossível perceber que a zona histórica difere do resto da cidade. Essa divisão é rio Huécar que a faz. A área plana, com ruas largas e edifícios contemporâneos da zona nova e onde é fácil circular, contrasta com a zona histórica onde o ambiente é bastante diferente.
Logo de manhã, e após termos atravessado uma das pontes que ligam à zona antiga, percebemos que, para lá chegar, é preciso galgar ruas íngremes e
estreitas, típicas de um traçado medieval influenciado pela presença árabe.
Escalar este cerro é como subir a colina do castelo de São Jorge ou amarinhar
desde a Ribeira à Sé.
Continuamos a trepar para um núcleo de muralhas que alberga a
torre Mangana. Do miradouro é possível observar o desfiladeiro que envolve a
cidade a norte, os bosques que cobrem os rochedos e o rio Júcar. O cenário é
deslumbrante misturando os verdes da vegetação, os cinzentos das pedras e os
ocres dos telhados.
Percebem-se de imediato, os desníveis, os contrastes de cor e
textura, o alcantilado das casas, os patamares geológicos, o curso do rio – a
estrada que o margina é daquelas que apetece repetir sobretudo de moto (vai
aparecer outra semelhante antes de Albarracin – as passagens estreitas, os
arcos, a vegetação adelgaçada, os telhados matizados.
Com o Centro de Ciência fechado – que não se compara ao de
Valência, mas é interessante visitar -, a opção foi continuar pelas ruas
estreitas para a Plaza Mayor. Esta como habitualmente circunscreve o centro
histórico, que aqui coincide com o chamado “casco antíguo”.
Desemboca-se numa pequena praça fronteira ao edifício da Câmara, construído
em estilo barroco, cuja particularidade é dar acesso à Plaza Mayor através de
arcos romanos, desenvolvendo-se a parte habitável apenas a partir do 2º andar.
Na Plaza Mayor destaca-se ainda a catedral dos séculos XII e XIII,
mas cuja fachada foi reconstruída no início do século XX. Em redor da praça, os
edifícios esguios e coloridos, dão-lhe uma harmonia ímpar. Restaurantes,
galerias de arte, lojas de artesanato completam o cenário da praça.
Entretanto havíamos descoberto uma entrada curiosa, depois outra e
outra, para os túneis de Alfonso VIII. Compramos os bilhetes na loja de turismo
e à uma da tarde lá estávamos à porta. Colocámos uma rede e capacete na cabeça
e fomos ao longo de uma galeria.
Esta foi construída com recurso a detonações de pólvora, da
autoria dos vizinhos do lugar, para se protegerem dos bombardeamentos durante a
Guerra Civil Espanhola. Trata-se de um túnel com tecto e paredes toscas com
muitas saliências. Fomos ouvindo as explicações da guia que ia assinalando os
sítios onde se colocavam as cargas explosivas, chamando a atenção para os
espaços de armazenamento ou cuidado a dar aos feridos, as várias portas de
acesso.
Foi uma boa meia hora ao longo da história de Cuenca e da Guerra
Civil. Percebemos aqui o porquê do ex-libris da cidade serem as Casas Colgadas,
aquelas casas esguias, erguidas à beira dos penhascos, muitas delas com
passagem inferiores que se constituíram como ruas, uma vez que já não havia
espaço para outro tipo de acessos.
Parecem ninhos encavalitados nos rochedos, coladas umas às outras,
construídas em altura, com uma estética semelhante e cores harmónicas. Ocupam
sobretudo a zona adjacente à Plaza Mayor. Para as ver em pleno, fizemos o
Caminho de Ronda, um circuito que vai em redor da zona histórica sempre com
paisagens excelentes.
Aproveitamos para conhecer o Parador, um antigo mosteiro do século
XVI. Para lá chegar há que atravessar a ponte de São Paulo, construída em pedra
no século XVI e reconstruída em ferro no início do século XX. Ainda tive de me
ampara em dosi que asseguravam que a travessia era tão fácil como encontrar
wi-fi em restaurantes.
Paisagística é também a vista desde o alto das muralhas que
ladeiam a porta do castelo, mais acima da Plaza Mayor. Daí percebe-se a posição
estratégica do lugar. É possível praticamente uma visão de 360º, abrangendo
praticamente toda a cidade, mas seguramente toda a parte antiga.
Do cimo, percebe-se um mar de telhados mas não se vislumbram ruas.
Com efeito, só existe uma rua central e duas laterais, sendo as restantes pequenas
ligações ou túneis sob as casas. É dali que também fica bem visível o monumento
ao Sagrado Coração de Jesus, erigido no rochedo mais elevado que circunda a
cidade e que aparentemente não está longe. Mas é preciso percorrer mais de cinco
quilómetros por estrada para lá chegar.
Acabámos o dia no Marlo, um bar de tapas a dar para o fino, mas
que compensou bem os ovos com batatas fritas do fransuhing Lizzaran da noite
anterior. No fim, percebe-se que os becos, as escadarias, as passagens
estreitas, as pequenas praças, as cores das casas, a paisagem que se entrevê a
espaços, o panorama que se abre em certos lugares, as portas de madeira e
ferro, as janelas gradeadas, a cor da pedra, fazem-nos ficar.
Mas é Terruel, a capital do Mudejar, que nos espera no dia seguinte. Até lá, porém, há muito que ver. A Ciudad Encantada, o Nacimiento del Tajo e Albarracin. E também há que procurar melhor o caminho. Dois nacimientos podem baralhar a jornada. E mapas pequenitos também.
O vídeo de Cuenca, aqui https://vimeo.com/127411052