Toda a gente conhece o Palácio de Sintra. Durante o dia tem muito brilho, muita luz. A fachada virada a sul ganha o sol por inteiro. Janelas e pátios distribuem-no pelo interior. À noite, porém, as sombras aproveitam-se das paredes, dos tectos e dos objectos. Em certos sítios, oculta coisas, em outros potencia a beleza de outras.
Sintra, Palácio da Vila. Acesso gratuito e uma noite de calor em Sintra como há poucas. Até havia lugar de estacionamento no parque do Rio do Porto, no fundo da Curva do Duche. Porém, a convidar a trepar as íngremes Escadinhas do Hospital.
ALI, TUDO É PRECIOSO
O motivo - como se fosse necessário um para lá ir -, era mesmo uma novidade, um Leito de Aparato, uma cama do século XVII, peça rara, sendo esta a única em Portugal. Chegou da Casa Ducal de Cadaval. Custou 360 mil euros à Parques de Sintra. Sofreu intervenções de restauro durante 3 anos.
Os objectos, o simbólico e a ostentação também andam de braço dado. Alguns objectos, quando ostentados pela elite, por vezes, mesmo pechisbeque, até passam por precisos. Porém, quando a qualidade e/ou o possuidor são expressivos, os objectos tornam-se símbolos de poder.
E, neste casos, são mesmo valiosos. Valiosos, porque relevantes nos materiais – pau-preto de Moçambique e prata. Valiosos, porque marcantes em termos de utilização – rituais de passagem. Valiosos, em matéria simbólica – reforço de poder.
Valiosos, ainda, pela identificação do elevado estatuto socioeconómico dos possuidores. Neste caso, a pertença às elites nobiliárias. Valiosos, por fim, devido à incorporação artística. O Leito de Aparato é um caso desses, uma peça de arte.
NATUREZA E SIMBÓLICO
Primeira busca: um tecto cheio de cisnes. Depois da escadaria lateral, abre-se o primeiro salão, o dos Cisnes, construído ainda no reinado de D. João I. No tecto, estão pintados 27 cisnes brancos, símbolos da virtude e da sinceridade. A arte, para além da natureza.
A colecção de azulejos. Nas paredes brilham azulejos, maioritariamente dos séculos 15 e 16, recuperados após os estragos provocados pelo terramoto de 1775. A azulejaria do palácio é, aliás, uma referência, sobretudo a colecção de azulejos hispano-árabes.
Notória, colorida, exclusiva e diversa, a azulejaria do palácio tem na Capela Palatina e no quarto onde Afonso VI esteve preso – o tal cujo piso, dizem, está desgastado pelos passos do prisioneiro -, dois dos pavimentos hispano-mouriscos mais antigos portugueses. Mas não só.A Sala das Pegas, outro espaço ligado ao simbólico – diz-se das conversas conspirativas e de maldizer da corte, ou que a menção “por bem” está ligada a uma infidelidade do rei -, estão retratadas neste tecto. Nas paredes, o padrão de azulejos é excelente.
A Sala das Sereias mantém o ambiente decorativo simbólico ligado aos Descobrimentos e à poética camoniana. Diz-se que numa das varandas do palácio, D. Sebastião ouviu pela primeira vez a narrativa dos Lusíadas. O quarto deste rei também está decorado com azulejos do século XVII, notáveis pelos motivos de parras em relevo.
Da Sala dos Brasões ao Pátio Central, passando ainda pela Capela do palácio e pela belíssima Sala Árabe, estão sempre presentes. Da flor de lis à esfera armilar, a azulejaria passa também pelos motivos geométricos, vegetalistas, encordoados e laçarias.
A arte da azulejaria não espelha apenas a questão estética. Especialmente o revestimento monumental das paredes, funde também estilos, árabes, portugueses e hispânicos que, neste palácio, valoriza de forma distinta os espaços decorados.
Além do estético, também o simbólico está presente um pouco por todo o palácio. Da Sala das Sereias à deslumbrante Sala dos Brasões, passando pela Capela Palatina e até mesmo pela cozinha, os elementos simbólicos estão patentes em diversos elementos decorativos.
Sereias, brasões, serpente alada, escudo de armas e pombas. Os salões e a capela com profusa decoração simbólica. As sereias e o apologético lusitano, os brasões e o poder dos barões, a serpente alada e a Ordem de Aviz, o escudo de armas e as alianças políticas de Portugal e Saboia, as pombas e o Espírito Santo.
AMBIENTE E SOFISTICAÇÃO
O Pátio Central é um espaço emblemático, estético e ambiental. É, também, tecnicamente sofisticado. Privilegiado pelo rei João I como pátio dos seus aposentos, testemunho da tradição arquitectónica árabe, é agradável, fresco, intimista e rico em azulejaria.
A sofisticação está patente na Gruta dos Banhos. Além dos motivos decorativos representados nos azulejos – temas mitológicos, as quatro estações e a Criação do Mundo –, é um engenhoso sistema de duche de água constituído por duas filas de pequenos repuxos.
Aproveitar a noite para recordar e/ou saber do passado. É, também para isso, que os palácios existem. Para nos mostrar o anterior, alimentar a curiosidade, oferecer um detalhe ou um cenário, espantar-nos. Ajuda a manter o passado, a perceber o presente e, por vezes, a antever o futuro.