Diz-se que o bichinho
fica, quando nos pomos a jeito. De moto, porém, a coisa parece mais radical,
mais rara, mais exótica. Funciona como qualquer ritual primitivo. É uma espécie
de kula(1): “uma vez no kula, sempre no kula”, diz-se nas Trobiand. Aqui, nas
motos, as corridas parecem parte de um ciclo ritual. Mas, se o “uma vez nas
motos, sempre nas motos” é aceitável, o “uma vez nas corridas, sempre nas corridas”
já não é tão linear.
As corridas de motos,
as provas nacionais e os grandes prémios, são ritos que fazem parte do ritual
das motos. Estivemos lá, durante alguns anos, do Estoril a Paul Ricard, de
Jarama à Granja do Marquês, de Jerez a Santo André. Estivemos, no plural,
porque eram rituais colectivos, celebrações de amizade, de novidade, de
aventura. Sobretudo uma glorificação do risco - do nosso (e dos que estavam em prova) - mercê do endeusamento da mudança, do teste à diferença, da apoteose do nós versus outro sítio. Talvez nem tanto de competição entre os pilotos.
O rito começou cá,
mas rapidamente passou a fronteira. Jarama ficava a cerca de 6 horas de viagem. Viagem(ns) que, considerando as estradas, as motos e os custos, não deixavam de ser uma aventura, um risco, uma proeza arriscada. Depois, esse risco foi sendo atenuado pela melhoria de todas aquelas condições.
Durante alguns anos, o autódromo de Jarama, perto de Madrid, foi palco dos despiques espectaculares protagonizados por Cecotto, Hartog, Sheene, Spencer ou Roberts. No tempo em que as “dois tempos” dominavam as pistas do motociclismo. Íamos, já nessa altura, pelo despique dos campeões, mas sobretudo pelo desafio da viagem.
Durante alguns anos, o autódromo de Jarama, perto de Madrid, foi palco dos despiques espectaculares protagonizados por Cecotto, Hartog, Sheene, Spencer ou Roberts. No tempo em que as “dois tempos” dominavam as pistas do motociclismo. Íamos, já nessa altura, pelo despique dos campeões, mas sobretudo pelo desafio da viagem.
Porém, no início dos
anos 80, o autódromo de Jarama já não era uma pista segura para as motos. Por
tal, em meados da década, o destino do Grande Prémio passou para terras
andaluzas. Foi para os domínios dos Osbornes e dos Domecqs. Já lá haviam corrido espanhóis (e alguns portugueses) num circuito urbano que incluía, salvo
erro, o atravessamento de uma linha férrea.
Os espanhóis são
adeptos incondicionais do motociclismo. Além disso, tinham conseguido construir um autódromo com
condições excelentes. Assim, as corridas do campeonato do mundo de motociclismo
em Espanha passaram a ter lugar no novíssimo autódromo de Jerez de la Frontera. Estava situado a uma dezena de quilómetros da cidade andaluza, terra de bom vinho, bom
clima, bons petiscos e boa estrada, e ainda de muitos alojamentos a preços
acessíveis.
Jerez de la Frontera ficava mais perto do
que Jarama, possibilitava várias opções de itinerário, era um sítio novo. Essas
novidades permitiram também o surgimento de um novo ambiente em redor do Grande
Prémio de Jerez. E não apenas na capital do vinho doce andaluz, mas também nas
localidades vizinhas. Assim, além de Jerez, as localidades de Chipiona e Puerto de Santa Maria modificaram-se durante o período das "corridas".
Ali perto, talvez Cádis nunca tenha beneficiado dessa transformação. Porém, Chipiona, Jerez e o Puerto passaram a gozar do estatuto de lugar de eleição, aventura e
transgressão, praticamente impossível de copiar em terras portuguesas. Um ambiente de festa que Madrid e Jarama nunca tinham conseguido. Para além da novidade do circuito, havia agora
também um envolvimento mais rural, mais “humano”. Habituadas a um turismo sazonal de praia, também ele contribuiria para um ambiente mais permissível do que o de Madrid implicava.
Nos primeiros anos,
defrontaram-se Gardner, Lawson e Doohan, entre outros. Eram despiques que entusiasmavam
sobretudo espanhóis e portugueses. Mas também se via por lá franceses, ingleses, italianos e alguns alemães. Tal como em Jarama. Mas a festa era sobretudo dos
latinos, com os espanhóis a encherem cada vez mais o autódromo.
Jerez de la Frontera
era de onde emanava a animação. Mas Puerto de Santa Maria, em frente da angra
de Cádis, era o local mais animado. Depois, Chipiona, já para lá da baía de
Cádis, passou a ser também um lugar de extroversão importante. Talvez até o mais genuíno, o mais imponderável, o menos "controlado". Por isso,
Chipiona passou a ser para nós um sítio de romaria anual durante alguns anos.
Aliávamos a excitação das corridas à agitação da movida. Juntávamos a festa das rivalidades na pista com a do folclore motociclístico. Jerez, Puerto e Chipiona tinham rituais ímpares. Alugar um quarto em Chipiona, beber um copo de Jerez, degustar atum fumado, "picar" os acepipes estremenhos, ir e vir ao autódromo, fazer a "marginal" de Chipiona a Jerez, passando por Rota.
Mas o mais castiço era visitar os "curros" e apreciar as proezas dos habilidosos, assistir aos “cavalos”, “burros”, derrapagens e mais que fosse. Muitas vezes, nem sequer se ia aos "curros”. Era mesmo na via pública que os "artistas" actuavam, rodeados de um público disponível para qualquer desempenho que envolvesse duas rodas. Ou seja, era acompanhar um circo onde os temas iam desde as rodas da frente e de trás no ar, motos a andarem de lado, a queimarem pneus (burnouts), a distribuir "rateres". Mas, sobretudo, motos por todo o lado.
Aliávamos a excitação das corridas à agitação da movida. Juntávamos a festa das rivalidades na pista com a do folclore motociclístico. Jerez, Puerto e Chipiona tinham rituais ímpares. Alugar um quarto em Chipiona, beber um copo de Jerez, degustar atum fumado, "picar" os acepipes estremenhos, ir e vir ao autódromo, fazer a "marginal" de Chipiona a Jerez, passando por Rota.
Mas o mais castiço era visitar os "curros" e apreciar as proezas dos habilidosos, assistir aos “cavalos”, “burros”, derrapagens e mais que fosse. Muitas vezes, nem sequer se ia aos "curros”. Era mesmo na via pública que os "artistas" actuavam, rodeados de um público disponível para qualquer desempenho que envolvesse duas rodas. Ou seja, era acompanhar um circo onde os temas iam desde as rodas da frente e de trás no ar, motos a andarem de lado, a queimarem pneus (burnouts), a distribuir "rateres". Mas, sobretudo, motos por todo o lado.
Era também por ali
que se viam as últimas novidades de vestuário. Mas também do restante equipamento. Era por ali que passavam os últimos modelos, muitas vezes
protagonizadas em primeira mão pelos portugueses.
Mas também era o lado kirsch dos capacetes com cornos, das motos sem roda da frente, das bonecas insufláveis à pendura, dos “rateres” (cortes sincopados de corrente em aceleração) até à exaustão do motor, dos “burnouts” (roda traseira a derrapar com a moto parada) em motos que iam, algumas em atrelados, exclusivamente para os fazer.
Mas também era o lado kirsch dos capacetes com cornos, das motos sem roda da frente, das bonecas insufláveis à pendura, dos “rateres” (cortes sincopados de corrente em aceleração) até à exaustão do motor, dos “burnouts” (roda traseira a derrapar com a moto parada) em motos que iam, algumas em atrelados, exclusivamente para os fazer.
Íamos pelas provas,
mas em grande medida pelo ritual daquele fim de semana. Era uma espécie de romagem
que implicava um périplo por Chipiona, Jerez e Puerto de Santa Maria. Todavia,
essa peregrinação que, de início juntava o gosto pela competição ao gozo da
animação, foi dando lugar apenas ao segundo prazer.
Parte da nossa satisfação decorria da viagem, do ambiente naquelas três localidades e, cada vez menos, do ambiente e das corridas no autódromo. Era sobretudo nas ruas que as motos e as pessoas (e também os muitos portugueses), se cruzavam todos os anos. Nós fomos lá, durante vários. Eis um pedaço da memória desses tempos que contemplam três anos de corridas. Já lá vão mais de 20. As fotos em cima têm mais. São de 1990.
Parte da nossa satisfação decorria da viagem, do ambiente naquelas três localidades e, cada vez menos, do ambiente e das corridas no autódromo. Era sobretudo nas ruas que as motos e as pessoas (e também os muitos portugueses), se cruzavam todos os anos. Nós fomos lá, durante vários. Eis um pedaço da memória desses tempos que contemplam três anos de corridas. Já lá vão mais de 20. As fotos em cima têm mais. São de 1990.
1991,
11/12 de Maio - TEMPO DE PRAIA
Três motos, quatro
amigos. Uma Kawazaki ZX-10, uma CB 500 e uma Honda VF Sabre 750. A CB foi a que
mais sofreu, sobretudo a tentar acompanhar alguns trechos do percurso. O trajecto espanhol era propício ao esticar da ZX-10.
Jerez 1991 - Parte 1 - A Caminho de Jerez
Música: Santana, Let The Childreen Play
ver neste formato
Como habitualmente, as etapas ligavam postos de abastecimento. Voltámos a parar na bomba de gasolina que ficava no início da auto-estrada que ligava Sevilha a Cádis. Estava quente, com temperaturas semelhantes às da primeira vez em que havíamos assistido ao GP de Jerez. Cem quilómetros mais abaixo, estava mesmo tempo de praia.
Jerez 1991 - Parte 2 - Um Passeio Por Chipiona
Música: Santana, Let The Childreen Play
ver neste formato
Para nós, Chipiona
não era uma estreia. Mesmo assim, andámos pela rua principal, passámos pelo
farol, percorremos a marginal, voltamos à avenida, virámos para o “El Gato”,
onde havíamos jantado no ano anterior. Mais tarde, fomos por Rota até Puerto de Santa
Maria. Bebemos um copo no
bar do parque de campismo e demos um passeio pela localidade. Naquela tarde, ainda fomos até ao autódromo tomar-lhe o ambiente.
No dia das corridas fomos obrigados a deixar as motos longe da entrada. Por isso, atravessámos o extenso parque de estacionamento ao longo do habitual mar de motos e enxame de cores. Escolhemos uma bancada de onde víamos quase meio autódromo, embora com uma rede de arame de permeio. Fomos brindados com alguns "cavalos" protagonizados por um casal numa BMW K100. Divertimo-nos com os aficionados espanhóis, sobretudo com uma deliciosa rábula de bolinhos e vinho que envolveu uma fotógrafa, e assistimos à vitória de Michael Doohan nas 500cc.
No dia das corridas fomos obrigados a deixar as motos longe da entrada. Por isso, atravessámos o extenso parque de estacionamento ao longo do habitual mar de motos e enxame de cores. Escolhemos uma bancada de onde víamos quase meio autódromo, embora com uma rede de arame de permeio. Fomos brindados com alguns "cavalos" protagonizados por um casal numa BMW K100. Divertimo-nos com os aficionados espanhóis, sobretudo com uma deliciosa rábula de bolinhos e vinho que envolveu uma fotógrafa, e assistimos à vitória de Michael Doohan nas 500cc.
Jerez 1991 - Parte 3 - Nas Corridas
Música: Santana, Let The Childreen Play
ver neste formato
Abastecemos na primeira área de serviço da auto-estrada após Jerez. Foi uma má opção. Nossa e a de mais de uma centena de motos. Valeu o tempo excelente que nos acompanhou
até casa.
Desta vez, optámos por regressar por Vila Real de Santo António. O Guadiana ainda se atravessava apenas de barco. E o pôr do sol indicava-nos o caminho para casa.
Desta vez, optámos por regressar por Vila Real de Santo António. O Guadiana ainda se atravessava apenas de barco. E o pôr do sol indicava-nos o caminho para casa.
Jerez 1991 - Parte 4 - O Regresso
Música: Santana, Let The Childreen Play
ver neste formato
Saímos cedo. Desta
vez, apenas dois. Fizemos uma etapa até à fronteira, entramos na nacional espanhola
e parámos perto de Zafra, quando a ZZR 6000 “já tinha bebido 10 litros”, o que
indicava não termos andado devagar até ali. Passámos por Zafra,
já depois do meio-dia. Mais à frente, fomos ultrapassados por um Kevin Schwantz
espanhol que parecia estar em plena pista, joelho no chão e a tirar partido das
duas faixas de rodagem, neste ano excelentemente recuperadas e alargadas. Por volta de Dos
Palacios, pouco depois de Sevilha, fomos rodando ora devagar, aproveitando para
filmar os outros a passar, ora mais rápido fruindo das longas rectas do
percurso, ultrapassando cada vez mais motos. Jerez estava próximo.
Ainda parámos para
reabastecer e a meio da tarde chegávamos a Chipiona. Demos um passeio rápido
pela localidade, com o Manel aos comandos da máquina e parámos para comer uns aperitivos no
restaurante Alfonso. Depois, seguimos para o autódromo. A noite, a avenida principal de Chipiona fervilhava de animação e não tardou que alguns
aficionados da roda no ar a transformassem numa espécie de “curro”, onde
”cavalos” e “éguas” tomaram conta do espanto de todos, inclusivamente quando
uma moto-serra apareceu no passeio “guiada” por outro artista.
No dia da prova, chegámos tarde ao autódromo. Apesar de existirem muitas bancadas e um enorme "peão" - onde ficámos na estreia dos GP's anos antes - desta vez, assistimos
às corridas atrás do arame, com quase tanta gente nas bancadas como no
exterior, uma moldura humana impressionante. Também notável, a logística da
prova enchia o parque das boxes como se fosse uma praia algarvia no verão.
Uma das bizarrias desta
jornada esteve sem dúvida no comentador da prova de 500 cc, um irrepreensível
admirador de Michael Dooham, que seguiu a corrida do australiano, que a
disputava ao milímetro com Schwantz, gritando em todas as curvas “Mick, Mick,
Dooooohan!”. Nas 250cc, o ídolo do comentador de serviço era indubitavelmente
Luis D’Antin, pelo que passou a prova a berrar “D’Ántin! D’Antin!”.
O norte-americano
acabou por vencer a prova, mas Doohan ganhou o campeonato. Também lá andavam
Rainey e Criville. Voltámos pela inevitável Sevilha, onde parámos numa ponte à vista
do espaço da Expo 92, naquela altura aparentemente inóspito.
Música: Pat Metheny, Still Life, Letter From Home
1994,
7/8 de Maio: O ÚLTIMO ANO NO AUTÓDROMO
Em 1994 ainda fomos
ao autódromo. Mas apenas no sábado. Já não assistimos às provas. Não sei se
pela chatice da saída após as corridas – anos antes, havíamos ficado parados à
vista do circuito durante uma hora! – se pela comodidade dos ecrãs gigantes,
deixámos de assistir in loco às corridas. Nesta altura, Lisboa
já estava ligada ao Algarve pela A2, mas a Via do Infante ainda não passava do
primeiro troço. Do lado espanhol, a auto-estrada também só começava depois de
Huelva, pelo que o itinerário para Jerez também podia passar por Beja, Rosal de
La Frontera, Aracena e, só em Sevilha, seguir pela auto-estrada que ligava a
Cádis, elegendo praticamente estradas nacionais.
Saímos numa
sexta-feira. Neste ano, a opção de Sevilha a Chipiona, incluiu também a estrada
nacional. À chegada, escolhemos ficar de novo num quarto alugado como
habitualmente à Mari Carmen. Depois, o folclore passou por Chipiona, Jerez, mas sobretudo pelas ruas de Puerto de Santa Maria. Nesta altura, ainda estava montado
o “curro” motociclístico. Numa rua fechada ao trânsito, colocavam-se barreiras laterais e
deixavam-se entrar os aficionados para fazer “cavalos”, “burros”, derrapagens e, mais o que quisessem fazer, desde que mantivessem a adrenalina em alta aos milhares
de espectadores que ladeavam essa alameda de energia, desempenho e loucura. O domingo de manhã
foi dedicado às corridas. Uma vez mais, Doohan ganhou, mostrando continuar a
perseguir o recorde de Agostini. O tempo esteve sempre irrepreensível.
Música: Ryan Farish - Full sail
O QUE FICA
Uma memória imensa de
tempos de maior risco, aventura e agilidade física e mental. Um conjunto de
imagens, cheiros, palavras, ruídos e episódios de viagem. Uma mão cheia de
ideias e experiências, num tempo em que as responsabilidades familiares não
eram exigentes.
Contudo, ao contrário
das viagens mais longas de verão, Jarama /Jerez não viciou, talvez pela mesmice
do ambiente, pela unanimidade do abandono, pelas alternativas surgidas. As
corridas continuaram, mas nós também continuámos a andar de moto. Há um tempo
para tudo, parece.