terça-feira, 11 de março de 2008

Hits de Marrocos


















Março/Abri 2007

Um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir.
Amyr Klink, navegador brasileiro

Surpreendemo-nos, habitualmente, quando o homem morde o cão. Isso deve-se à ditadura da mesmice, ao império da normalidade. Felizmente, há movimentos reaccionários que minimizam aquelas inevitabilidades. Viajar, por exemplo, é um deles. Viajamos, para alterar a nossa regularidade, à procura de surpresas.


A inspiração surgiu via Zé Barriga. Foi quem mais se abismou com a surpresa. E disso fez jus, bisando a menção dos episódios que mais o deslumbraram.

E eu vou ao encontro desse pasmo folião, tão atraente e derradeiro como os pulos do Zamith, o vocabulário árabe do Mendonça, o bailado do Arlindo, a alegria do Murta, as camisolas do Joaquim, as águas-furtadas do Jorge, a pachorra do Menau, a chave do António, o pneu do Armando, a bateria do Marques, o alarme do Mariano, o “môr” do Luís ou a tampa do óleo da minha Pan European.

Sexta-feira, cedo, não havia muito trânsito… a não ser na ponte do Cinquentenário, em Sevilha. Ninguém se perde numa ponte. Mas, naquele dia, com tamanho tráfego, tão compacto e abundante, deixámos de nos ver uns aos outros. Um salve-se quem puder!

O sítio das auto-estradas espanholas na Net assegurava existir
uma Área de Serviço na AE Sevilha-Cádiz. Mas o que encontrámos foi uma saída, já muito poeirenta e disforme, rumo a nenhures. É sabido que, de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento!

De Jerez a Algeciras, a via rápida deixou-nos inexplicavelmente a caminho de Tarifa. Eu já percorrera este itinerário há quase dois anos e a ligação directa existia. Afinal, todos os caminhos vão dar à ponte, mas quando o rio vai de monte a monte!



A entrada em Marrocos, por Ceuta, ali próximo de Fnideq, é um excelente caos organizado: angariadores, polícias, cambistas de ocasião, funcionários de fronteira, vendedores de droga, tudo numa roda-viva por clientes. Até é permitido tirar fotografias. E, uma imagem vale mil palavras!



Ainda não havíamos percorrido meia centena de quilómetros em Marrocos, e já havia dois grupos com itinerários diferentes. Uns foram pelo centro, outros pela periferia de Tetouan. Um mapa não e o território!
Foi no restaurante azul eléctrico da imagem. Discutir o preço de uma refeição é normal em Marrocos. Fazer baixar o preço significativamente, e depois dar uma gorjeta superior ao valor do diferencial negociado, é que é surpreendente. É ser mais papista que o Papa!


Habitualmente, os guias têm um percurso padronizado que leva aos estabelecimentos dos amigos de negócio, onde o grupo de demora com os vendedores. Em Chefchaoeun, o nosso não sofreu muito desse paradigma. Porém, o nosso guia deixou-nos numa ponta da medina, uma vez que havia acordado com outro grupo uma visita sensivelmente para a mesma hora. Era o "overbooking" a chegar às agendas dos guias marroquinos...

Uma professora portuguesa do grupo, guiada por um marroquino que estudou em Portugal, encontrou uma polaca a quem dava aulas em Aveiro, numa banca da medina de Chefchaouen. Afinal o mundo é pequeno!

No Hotel Parador, foi necessário discutir o preço dos alojamentos reservados. Pagámos menos do que constava no documento de reserva, valor que já era bastante favorável. Imita a formiga e viverás sem fadiga!

Numa das esplanadas de Chefchaouen, um dos empregados “pescava” os clientes assegurando ter cerveja, mas apenas podia vender chá. Fazia-o com aquela inocência dos argutos, e denunciava a atitude sem rodeios. Não existe verdadeira inteligência sem bondade.

Muitos pisaram o traço contínuo à saída de um posto de abastecimento, próximo de Chefchaouen. Afinal, o polícia só queriam saber se nós sabíamos para onde íamos, quando nos mandou parar a todos. A sorte é para quem a tem!

Em Meknes, passa quem mais apita. O alarme da moto do Mariano, que se ligava a espaços, contrariou a ordem de paragem do sinaleiro, que acabou por mandar parar os outros veículos e deixar-nos passar. Quem não chora, não mama!

Na Bab Al Mansour, um polícia autorizou o atravessamento do traço contínuo e permitiu o estacionamento de 14 motos, mesmo em frente da porta mais famosa de Meknes. Devia ser a tal “atenção ao cliente”!

Não sei se se queriam ver livres de nós. A verdade é que a Polícia escoltou a comitiva e abriu-nos caminho desde o centro até aos arredores de Meknes. Desta vez, não valeu a pena estar só, antes acompanhado!

Na imagem em que o branco apenas nos rodeava, ainda não nos caía em cima. Mal saímos da Floresta de Cedros começou a nevar. Estávamos no final de Março, eram 7 da tarde, e o termómetro marcava um grau negativo. Íamos para o deserto, era o que estava previsto. Lá como cá, Março marçagão, manhã de Inverno, à tarde verão…!

Os recepcionistas do hotel de Midelt, entregaram as chaves a quem as pediu, mas não registaram que quartos ocupava quem. Colocaram um casal num quarto triplo e três num duplo. Depois, assentaram um colchão no duplo. Uns comem os figos, a outros rebentam-lhe os lábios!

Às vezes, confunde-se conhecimento com sofisticação e tecnologia. Felizmente, a electricidade não tinha segredos para o electricista marroquino que desligou o alarme da moto do Mariano em dois minutos. Mais vale burro vivo, que sábio morto!

O deserto tem muitas pedras, terra e sobretudo
areia. Do acampamento, vislumbravam-se efectivamente dunas consideráveis a escassos 100 metros. Mas não se via um grão de areia por cima dos tapetes entre as tendas. Ver para acreditar!

Supõe-se que Marrocos é um país pobre. Dizia-se que se passava fome. Contudo, depois de um ‘couscous’ bem recheado de carne, no fim do jantar no albergue do deserto, surpreendeu-nos um cabrito gigantesco. Não há fome, que não dê em fartura!

Em todas as refeições, lá
estavam algumas garrafas de vinho. Ficámos admirados por saber que em Marrocos também se produz vinho. Afinal, estávamos num país muçulmano… Nem tudo o que luz é ouro!

Deserto que se preze, não tem nada nem ninguém. No Erg Chebbi, porém, um dos mais conhecidos desertos marroquinos, o trânsito fazia pasmar. Havia grupos de motos 4, jipes em caravana, Peugeots, Mobylettes, e até um Mercedes enterrado na areia. Um deserto… a tradição já não é o que era!

É do senso comum,
considerar que deserto é uma porção de terreno onde não há água. Mas o que vimos à chegada, era um lago imenso a escassos metros do albergue… e não era miragem. Aquele que procura a verdade, é capaz de a encontrar!

O Erg Chebbi tem riqueza mineral que é simultaneamente arqueológica. Os vendedores de fósseis, faziam-no precisamente ao lado de uma jazida a céu aberto. Não sei se vendem muito, sei que alguns de nós se abasteceram na fonte. Cego, é o que não quer ver!

Enquanto há quartos vagos, vão-se ocupando, independentemente da respectiva dotação. Quando chegámos ao albergue do deserto, não havia quartos duplos e individuais para todos. Alguns casais dormiram em quartos quádruplos. Há sempre
lugar para mais um!

Rissani tem pizzas típicas, uma espécie de bola de carne amassada e circular, com um sabor excelente. São as especiarias que lhe dão o travo peculiar, mas também se aventou a hipótese de ser o suor das mãos que emprestavam às fatias aquele sabor tão gostoso. Só é útil o conhecimento que nos torna melhores!

Fomos de moto. Mas em cerca duzentos quilómetros abanámos mais do que em toda a viagem, tal foi a tempestade de areia que nos sobressaltou entre Boulmane du Dades e as montanhas do Atlas. Por tal, almoçámos de lenço na cabeça e durante a refeição caíram alguns candeeiros. Não podemos dirigir o vento... mas podemos ajustar as velas!

Pelos meandros das medinas, andam burros, motorizadas, velhos, carregadores, turistas, locais a dirigirem-se para os mercados ou empregos. Não vimos qualquer incidente, o número de polícias não ia além do normal (poucos), e o tráfego pedestre fluía em boa ordem. Quem não quer trabalhos, não se mete em atalhos?

Na praça El Fna, em Marraquexe, ouvem-se estórias, exibem-se cobras, faz-se teatro, vende-se água a copo. Destacava-se na altura uma mesa, que expunha centenas de dentes (o que está mais branco) e uma dezena de dentaduras (mesmo ao lado dos dentes). Aqui há tudo, como na farmácia!

Marrocos devia ser um destino diferente, onde as motos fossem uma raridade, por exemplo. Mas, por lá, cruzámo-nos com o Clube Goldwing de Espanha, com uma caravana de motos da Motomil, com um grupo de espanhóis com cerca de 30 máquinas, e até vimos uma Harley com matrícula marroquina. As aparências iludem?

Temos fama em demorar o almoço. Lá, tal como cá, a tradição ainda é o que era. Duas horas e meia para manjar peixe. A surpresa veio, porém, do trânsito de Casablanca, onde levámos mais de uma hora para deixar a cidade. A pressa é má conselheira!

Buzinar em Marrocos, é dizer
“estou aqui!”. Mas não expressões iradas, apenas um coro de buzinas que se constitui como festa de muitos convivas. Surpreende ao princípio, depois atrai, e não tardou estarmos todos a apitar. Em Roma, sê romano!

Em Tanger, aproveitei para substituir a lâmpada de médios que estava fundida. Não paguei o material nem o serviço. Estranhamente, a nova lâmpada parecia não iluminar o chão à minha frente. Quando a mandei substituir, além de ter visto que não tinha quaisquer características gravadas, verifiquei que metade estava escurecida, exactamente a que devia iluminar o solo. Não há almoços grátis!

Já no regresso, e após a saída
do barco em Algeciras, todos já haviam traçado o seu destino, e cada um veio por onde quis. Muitos, só se voltaram a encontrar no passeio seguinte. Felizmente, todos os caminhos vão dar a Roma!

No entanto, Impunha-se saber por onde é que tinham andado os restantes comPANheiros, e as respostas à mensagem de boas-vindas que enviei a cada um.

Diziam o seguinte:

- Chegámos bem, com alguma chuva...
- Desde o Porto, tudo OK!
- Houve n alternativas. Eu fiquei na Isla Canela.
- Não estou a ver de quem é este sms mas se é de alguém das Pans, então cheguei bem. Até vim só desde Espanha…
- Obrigado pelo sms, obrigado pelo excelente viagem que nos proporcionaste. Está tudo bem.
- Ontem fiquei no Algarve. Só hoje cheguei a Lisboa. Um cozido à portuguesa, não tem nada a ver com uma tajine. Já tenho saudades.
- Só agora vi o teu sms. Só fiz asneiras no trajecto, mas cheguei bem.
- Cheguei bem cá a cima.

Não sei se todos encontraram as surpresas que procuraram, mas suspeito que gostaram de se espantar com as novidades, com as diferenças. Não sei se todos voltarão, mas sei que, se alguns o fizerem, se irão pasmar de novo por não encontrarem a placa indicando o “centro da cidade”, uma tabela de preços, um padre, aceleras de café, ou quem saiba dizer não.

"Tudo está bem, quando acaba bem".


o relato desta viagem pode ser lido em
http://www.rituais.com/Downloads/Marrocos2007-Carlos_Cordeiro/Marrocos2007-Carlos_Cordeiro.pdf


A maioria das imagens filmadas são da autoria de Lena Marques, a nossa realizadora de eleição. Há igualmente outras imagens - inclusivamente algumas das fixas que marginam o texto - que são da autoria dos participantes mencionados na 1ª parte do vídeo.

Música: Oliver Shanti & Friends. Álbum: Alhambra


quinta-feira, 6 de março de 2008

Ao longo da Poça Do Vau


















A Lagoa de Óbidos é uma zona húmida de particular valor económico e ambiental, já referida nos documentos das cortes de Évora de 1460, e que se encontra sujeita a uma grande diversidade de ameaças.
Maria João Carvalho in
http://www.naturlink.pt/canais/Artigo.asp?iArtigo=13318

Estimava que existisse uma, duas quanto muito. Afinal, a Poça estendia-se do Vau à foz do Arelho. Catita, este passeio! Pela entrega das pessoas, pela diversidade do percurso, pelo êxito das “surpresas”…

A proposta dos Rituais sugeria partirmos da Amoreira, perto de Óbidos, e terminarmos no Gronho, quando a Lagoa de Óbidos se funde com o mar. “Cerca de 13 quilómetros, quase sem relevo e em piso de terra”, assegurava o Paulo Alves. Assim foi, até que surgiu a água…

Com início numa pedreira, e sempre acompanhados pelo rio Rial, marchámos ao longo de um vale fértil, pleno de culturas hortícolas e frutícolas.

Está nublado. Há gente na faina agrícola: juntam canas, apanham morangos, chegam o tractor às leiras, regam as couves. Seguimos ao longo das hortas e do rio que pouca água leva.

Da pradaria à floresta, patos que levantam e retornam, rapinantes a sobrevoar a campina, e um cãozito guloso, foram quebrando a monotonia da paisagem.

Com a entrada no arvoredo, o terreno cresceu e minguou em picadas rasgadas por velhos sulcos de água. Ficou mais fresco, precioso face aos declives.

Subimos, descemos, espreitamos alguns cemitérios de mobiliário, paramos para um primeiro acerto do apetite. Em redor, a cor deixava o beije e o verde hortícola.
Surgem agora amarelos vivos, violetas fortes, verdes novos, carmins alegres. Como sentinelas, erigem-se pinheiros e eucaliptos.

Passamos a descer. As rugas do piso afundam-se, anunciam a proximidade da água, da lama, de um braço da lagoa.

O trilho empapa-se, os comentários animaram-se, as botas enterram-se, as silvas mordem-nos os polares. Saltamos, afastamos ramos, rimo-nos mais, em equilíbrio precário.

Pouco depois, sentamo-nos para picnicar em mesas de madeira, à beira do restaurante dos Musaranhos. O odor de um peixe grelhado mistura-se com o das sandes, com o ruído de um barco que puxa um esquiador, alguns ais de um entorse e estilhaços da abertura de várias minis.

A areia irrompe agora como praia tropical a ligar o pinheiral ao espelho de água. Aparecem bateiras, vestígios cais palafitas, algumas cabanas de pescadores.

O lado de lá vê-se melhor, o sol espreita mais vezes, reanima-se a passada. Não tarda a que a alternativa fique entre uma passagem a vau com água pelos joelhos ou voltar para trás. Descalçamo-nos.

Há lodo no fundo, a massajar a maioria dos pés nus. Há quem entre de ténis na água ou de calças de ganga, quem passe às cavalitas e quem grite sobre o que pisa no fundo da lagoa.

Depois, a bonança ao longo da margem de uma lagoa adormecida, agora mais arenosa, mais poluída, mais lodosa.

Uma espécie de caniçal abre-se como labirinto. Está encharcado. Dobram-se caniços, escolhe-se o trilho menos pantanoso, deixa-se de ver a cor das botas, das calças, do casaco…

A lama salta como gafanhoto apavorado. Pula-se sobre riachos. Atascamos. Uns safam-se com lama pela peúga, outros atiram-se para cima dos caniços como se o mundo acabasse lá fora.

Olhamos uns para os outros. Não havia provocações fáceis: estávamos todos impraticáveis. O creme pálido da areia ia tapando o castanhão da lama.

O último meio milhar de metros serenou o esforço, já à vista do Gronho, onde evoluíam alguns kites que se batiam com um solitário papagaio de papel.

Enfiámos alguns bolinhos, comentámos o inevitável, saudámos o sucesso da passeata.
Enquanto isso, a lagoa brigava com o mar e a tarde começava a esconder-se no horizonte. As nuvens haviam desaparecido.




Música: Beyond Words
Autor: Craig Chaquico