sexta-feira, 6 de julho de 2018

O (Um) Outro Mundo




É possível representar o mundo como um todo. 
Basta escolher algumas perspectivas adequadas. 
Como se fosse uma projecção do globo. 
Como um sólido geométrico. 
Como um mapa sequencial. 
Consegue-se perspectivar, (re)apresentar todo o mundo.
É  vulgar, também, identificar outros aspectos do mundo, outras visões, “outro(s)” mundo(s).  
Entre tantos outros, o mundo da superstição, da fantasia, da religião, dos negócios, da ficção, da arte.
Outras perspectivas, diferentes abordagens. 
Outros mundos.



Nos mundos das pessoas e das coisas há semelhanças e diferenças. 
Das pessoas que parecem ser como nós e das coisas que se parecem com as nossas coisas. 
E das relações entre umas e outras que parecem ser as que estabelecemos no “nosso” mundo.
Porém, no “outro” mundo, naquele que desconhecemos, as pessoas e as coisas podem ser diferentes de nós e das nossas coisas, e as relações entre umas e outras serem também diferentes. 
É esse mundo que ignoramos, a que chamamos “outro” mundo”, um mundo que fica do outro lado do mundo.


Do outro lado do mundo, os olhos das pessoas são mais rasgados do que os nossos, o cabelo é mais fino, os narizes não são tão pronunciados como os nossos. 
Do outro lado do mundo, há castas que determinam a endogamia, o mal e o bem não se escolhem, os deuses dançam sobre o cadáver de outros deuses.
Do outro lado do mundo, porém, também há muito do nosso mundo. 
Do mundo que se transforma, se transfigura. 
No resto do mundo, as transfigurações também são praticadas e assumidas. 
No outro mundo, também há mudanças e também há proximidades.




Do outro lado do mundo, também se assume a mudança. 
Esta, quer seja num contexto simbólico, com máscaras por exemplo, quer seja num contexto de passagem, é adoptada com um propósito, com um fim. 
Ora seja uma passagem de jovem a adulto, ora seja um apelo dos crentes ou veneração à divindade, a máscara aproxima os primeiros dos segundos como portadora de intenção e testemunha de avocação.
De vez em quando, os mundos aproximam-se. Através das pessoas e das coisas. 
De milhentas maneiras.
Através das instituições, da organização da memória, da realização de eventos de homenagem. 
Este, também  comemora os 30 anos da Fundação Oriente e os 10 do Museu do Oriente.


Uma das maneiras de entrar no(s) outro(s) mundo(s) é visitar uma exposição sobre esse(s) mundo(s). 
Partilhar com os outros e com as coisas, além da comemoração, o desafio de ver, recordar ou não, de perguntar, de ter uma opinião, de gostar ou não. 
Mas, sobretudo, de ir.  


OS OUTROS MUNDOS DE JOSÉ DE GUIMARÃES


Nas duas primeiras salas da exposição, o ambiente muda face ao átrio do museu. 
Os olhos confundem-se e a percepção queixa-se. 
A claridade modera-se, a luz estiliza-se, a cor ira-se.
O brilho e o contraste vibrante, monopolizam o espaço. 
Lentamente, os olhos habituam-se à mudança. 


Surgem as intervenções de José Guimarães.
Sobre a colecção Kowk On e sobre peças da sua colecção de arte chinesa. 
Domina o molde das caixas que, de alguma maneira, interagem esteticamente com as obras de colecção.


"Misturam-se" objectos, obras, utilidades, origens e simbolismos.
Reforça-se a ideia de diversidade que (também) está patente na mostra. 
Reconhecem-se paridades: a ênfase nas cores primárias, quer nas intervenções, quer as da colecção Kowk On.


Entre outras, estão lá os altares portáteis chineses e as máscaras singalesas do teatro Kolan e as indonésias do teatro Wayang Tpeng.
Mas também as muitas cabeças de marionetas de vara chinesas, as máscaras tailandesas do teatro Khon, bem como as tibetanas dos teatros Llamo e Cham.


E, também, em muitas das peças expostas, a presença da figura antropomórfica.
Sejam elas (na maior parte) representações de carácter religioso ou simbólico. 
E, ainda, estéticas das artes cénicas e das festividades.
Sempre mediadas pelas máscaras, muitas máscaras.


A figura humana está representada, não tão estilizada como no ambiente das máscaras.
Porém,está realçada pelas cores berrantes, pelos adereços cerimoniais, pela singeleza.
Por vezes, quase primitividade estética, talvez reforçada pela simplicidade dos traços e pela essência das cores.


Estamos num mundo de expressividade de olhares e feições.
Do confronto das tonalidades, das sombras e dos fulgores, da modernidade e da tradição.
Mas , também, do artesanal e do tecnológico, mediados pela obscuridade e pela luz plena.
Por cima, no museu, a colecção permanente mantém-se iluminada num ambiente soturno.


UMA COLECÇÃO DO OUTRO MUNDO


No primeiro andar, a claridade volta a atenuar-se. 
Ainda assim, os objectos expostos ganham uma identidade particular. 
As peças assumem uma data, uma idade maior, uma referência para além da própria peça. 
O ambiente torna-se mais intimista, mais “sério”, histórico.


A estética também lá está, moderada pela utilidade, pela gesta, pela ritualidade, pela guerra.
Mas, também, por encontros e desencontros, pela ilusão, pelos materiais locais. 
Tudo sempre burilado pelas múltiplas ascendências que a história lhes foi emprestando. 


Sente-se a Ásia, mas também a presença portuguesa.
Nos detalhes de um biombo chinês ou em peças de porcelana da Companhia das Índias.
Ou entre mobiliário, marfins, têxteis, ourivesaria e pintura que revelam a relação estabelecida entre os portugueses e os povos asiáticos.


Macau primeiro. 
Depois, Índia, China, Japão, Timor, ocupam espaços próprios significativos.
Em matéria de dimensão e importância dos objectos expostos.
Entramos e é uma porta que nos recebe.
Uma porta de Damão, setecentista, que nos leva para outro mundo.


Entramos num mundo que “descobrimos” antes de todos os outros europeus.
Reconhecem-se diversos biombos chineses e japoneses.
Um destes últimos, testemunho ilustrado do encontro primevo entre portugueses e japoneses no século XVI.


Próximo, mais peças da colecção Kwok On. 
São sobretudo objectos artísticos provenientes das artes cénicas – teatro e dança, especialmente.
E, ainda, representações religiosas hindus, budistas, animistas e cultos xamânicos.


Mais à frente, o outro mundo mantém-se disfarçado. 
Voltam a surgir as máscaras, marionetas e figuras do teatro de sombras chinês, indiano e indonésio. 
Mas também aparecem “retratados” outros elementos.
Como sejam, os pagodes, a vegetação, as pontes, os barcos e as pessoas.


Diferentes são, também, as armaduras de batalha dos guerreiros japoneses.
De inspiração e modelo anteriores, as expostas datam dos séculos XVII/XVIII.
Produzidas em metal lacado, latão, linho e lã, algodão, seda, tela.
Entre outros elementos, como sejam, a camurça estampada, corno e bambu.


Diversa é, também, a arquitectura das armaduras.
Quer no peito de armas, na simbologia identificativa do clã ou da escolha religiosa-filosófica, ou nos objectos hierárquicos de comando.
Diferença há no leque de guerra, no tipo de elmos, nos suportes de bandeiras existentes na parte de trás do peito de armas.


Distintos são, também, os trajos de personagens da Ópera de Pequim.
Correspondem a trajes de cerimónia, a vestuário de soldados, de sacerdotisas ou simples barqueiros.
A forma desigual das do resto do mundo e as cores vivas e brilhantes marcam a diferença.


À saída, continuamos noutro mundo.
No piso térreo, está patente uma exposição sobre casas timorenses.
Trata-se de um conjunto de maquetes que mostra os diferentes tipos de habitação daquele país, de acordo com o distrito de localização.


Outros usos, funções e simbolismos. 
Diferentes lugares, objectos, ideias. 
Diversas configurações artísticas, diálogos e encontros. 
Outros seres, outros universos, outras vidas, algumas para além da morte. 
E a referência, Oriente, um outro mundo, do outro lado do mundo.