sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Museu, Várias Coisas


As palavras que têm duas consoantes juntas são esquisitas. Parecem vocábulos estrangeiros. “Etnologia” é um caso desses, é uma palavra estranha. E o que representa, delicado é. Porque envolve singularidades sociais, porque observa as pessoas, porque estuda as culturas. É algum desse património cultural que está actualmente exposto no museu de Etnologia.
O Museu, Muitas Coisas é uma nova proposta museológica. Parte de particularidades, objectos sobretudo – talas, instrumentos musicais, tampas de panelas, bonecas, máscaras – para o geral, para a organização social das comunidades, explicando qual a importância de cada elemento no contexto peculiar das actividades em que se insere.
A área de exposição foi reconfigurada. A luz está semelhante à do Museu do Oriente. A distribuição das peças faz-se de forma temática, por módulos temáticos. Está esteticamente agradável, pedagogicamente organizada, diversamente ilustrada. A explicação escrita é sucinta - excelente para um primeiro olhar - o que sugere a possibilidade da existência de visitas guiadas para efeitos de enquadramento e explicação complementar.
E era importante que fosse possibilitado esse apoio. Sobretudo do ponto de vista de contextualização do objecto na área cultural, na estética, na organização dos ciclos de vida, no lazer, na aprendizagem através da oralidade e da representação, enfim do carácter e funcionalidade social dos objectos nos diversos contextos – económico, histórico, social, simbólico, etc - da vida das pessoas.
Aliás, por alguma razão se escolheram determinados objectos e se abordaram temas específicos. Dos instrumentos musicais que surgem do princípio dos tempos, às representações teatrais que tocam figuras míticas, dos brinquedos tradicionais a representações da natureza e do quotidiano social, todos elementos também representativos de uma identidade colectiva.
Alguns dos objectos já foram alvo de exposições anteriores. “Sogobó, máscaras e marionetas do Mali (2004), já mostraram algumas das que estão agora expostas; “Onde Mora o Franklim? um escultor do acaso” (1994/96?), já trouxera algumas daquelas esculturas. Diversas exposições já haviam versado o tema dos instrumentos musicais portugueses. Agora, reaproveitando o espólio, há uma outra abordagem mais dedicada e escolhas mais pragmáticas.
A opção audiovisual é uma proposta arrojada. Confina-se a uma estreita faixa horizontal numa das paredes laterais. As imagens e os sons correm em sequência tipo repetição por superfície, com uma distorção que não afasta a vista mas pode comprometer o olhar.


SOMBRAS DA MEMÓRIA 

É originário da China, mas as figuras vêm da Ilha de Bali, na Indonésia. Já foi declarado pela Unesco como Património Oral e Intangível da Humanidade. Wayang Kulit significa teatro de couro, em javanês. Mas também é interpretável como “sombra”, “imaginação” ou mesmo “espírito”.
Parecem figuras fantasmagóricas em papel recortadas meticulosamente. Mas são em couro. Nos dias de hoje, o protagonismo vai para as sombras das marionetas. Mas nem sempre foi assim. Não tivessem as figuras um colorido tão rico, um detalhe tão minucioso, um objectivo tão forte.
Se bem que as estórias que representam sejam tradicionalmente relacionadas com o panteão tradicional hindu – algumas figuras pertencem ao famoso Mahabharata – estórias que suplantaram as da cultura nativa, o surgimento do islamismo levou à eliminação da representação artística dos deuses.

DA BRINCADEIRA À ORGANIZAÇÃO SOCIAL



São uma espécie de bonecas de trapos. Das crianças do sudoeste de Angola. Tal como tantas outras, construídas à imagem da realidade. Estas estão sobretudo associadas à construção social da nupcialidade, à feminidade, aos rituais de fecundidade. As aqui mostradas são as chamadas bonecas-tronco.

Apesar de serem brinquedos, há aspectos que vão para além do carácter lúdico imediato. O mimetismo do brinquedo com a realidade social é ilustrativa da importância dada à aprendizagem através dos brinquedos e das brincadeiras. É o valor simbólico (e pedagógico) do objecto que se destaca, um objecto que apesar de ser tão rudimentar é sinónimo de regra, ilustrativo da uma norma social.
No caso da boneca da imagem acima, por exemplo, o detalhe do cabelo, onde algumas ripas parecem “encanadas” (envolvidas em canas minúsculas), representa uma condição social, a condição da mulher casada, envolvendo por tanto o conceito e o contexto matrimonial.

ESCULTURAS FANTÁSTICAS

Mostram-se obras de Franklin Vilas Boas. Trata-se de um escultor que levou a arte popular para caminhos do imaginário, esculpindo figuras híbridas, deformadas, míticas. Talvez se associem à arte popular pela sua “primitividade”, rudeza e expressividade, mas também roçam as fronteiras da arte bruta e do surrealismo.
Sem melhores explicações, é difícil enquadrar o artista e a sua obra. São animais, objectos, figuras humanas, ou híbridos, num padrão de arte popular tradicional. E daí, ser arriscado conseguir-lhe um estatuto icónico na produção estética (e simbólica, e funcional) capaz de uma maneira imediata a associar à representatividade das restantes peças da exposição no contexto da produção popular. Do ponto de vista meramente estético, é pela marginalidade expressiva que muitas das peças se destacam.

INSTRUMENTOS DA MÚSICA POPULAR 


Entre alguns instrumentos musicais, destacam-se tambores e flautas. Evidencia-se também a sua primitividade. Sobretudo a sua sonoridade primeva, associando-se facilmente o tambor ao estouro do trovão, e a flauta ao assobio do vento. Estão muito ligados às celebrações ou festas que acontecem durante a invernia.

Mas, em geral, os instrumentos musicais tradicionais percorrem todo o calendário de celebrações, festas e romarias, chegam a acompanhar peregrinações e excursões, e são testemunhas de diversas fainas ou tarefas rurais.   

PROVÉRBIOS EM TAMPAS DE PANELAS

Ou testos. São de madeira, feitos de uma só peça com figuras em alto ou baixo-relevo, tradicionais entre algumas comunidades de Cabinda. Nos testos, encontra-se um ou vários provérbios, um registo estético que substituiu os da escrita inexistente. A criação artística associa-se ao imaginário social.

Quando a tradicional oral se transpôs para as tampas de panela estas passaram a mostrar particularidades que contemplam a estética, a comunicação e as relações sociais, ou seja, passam a constituir-se como veículos culturais por excelência. As representações gráficas nas tampas das panelas são peças artísticas com valor estético que fazem parte do panteão de saberes tradicionais.
Aparentemente simples são suficientemente elucidativas de uma maneira de comunicar particular, funcionando como elemento mediador das relações entre a mulher que faz a comida e o marido. Mas o âmbito dos provérbios vão para além dessa relação. Um deles, mostrava um homem com uma mão lesionada a ser transportado numa padiola, enquanto outro, com um pé partido caminhava... 

MEMÓRIA COLECTIVA ESCULPIDA NUMA TALA



Rio de Onor é um dos paradigmas do universo da etnologia portuguesa. Um dos aspectos mais estudados desta aldeia raiana transmontana foi o da respectiva organização tradicional comunitária. Partilhavam-se terrenos, instrumentos agrícolas, fornos, tratava-se do gado à vez.


As tarefas de subsistência estavam asseguradas com a participação dos (maioria dos) vizinhos sendo todas registadas nas famosas talas. As talas eram varas em chopo onde se registavam através de golpes de navalha – cuja forma e profundidade estavam devidamente indexadas - todas as tarefas partilhadas. Anotava-se ainda multas decorrentes de faltas ou incorrecções cometidas no âmbito da vida comunitária da aldeia.


MÁSCARAS E MARIONETAS DO MALI

Num dos extremos da exposição, mostram-se diversas máscaras e marionetas que fazem parte da dramatização de um conjunto de aspectos inspirados nas experiências do quotidiano que influenciam a cultura maliana, como sejam, a morte, a magia e a natureza.
Algumas das máscaras e das marionetas representam animais, outras representam pessoas, outras ainda seres mágico-religiosos (espíritos do bosque). Misturam-se de uma maneira particular as esferas da natureza e da cultura, não fosse ténue também a separação entre actores e espectadores  e promove-se o acesso às crenças e aos valores das comunidades por onde passam estas representações/rituais.

Música: Nils - Pacific Coast Highway
(ver neste formato)